Como maltratar o 25 de Abril com uma discussão surreal
Paulo Ferreira
19 Abril 2020
Claro que o 25 de Abril pode e deve ser assinalado na
Assembleia da República de forma solene, como sempre acontece. Não há nenhum
motivo para que isso não aconteça. A questão não é “se”, mas “como".
“Aigreja de S.
Paulo em Faro vai realizar uma missa Pascal (por não ter sido permitida no
próprio dia uma das celebrações mais importantes para todos os cristãos) no
próximo domingo. A entrada é sujeita a inscrição pois só serão admitidas 130
pessoas na igreja. (…) Não serão admitidas máscaras de proteção individual”. Na
manhã deste domingo cruzei-me com este post no Facebook, na página pessoal de
uma professora universitária.
O conteúdo do
post não é verdadeiro, confirmei depois – não há, sequer, uma igreja de S.
Paulo em Faro. Mas ilustra o que a quebra de autoridade moral do Estado e dos
seus órgãos políticos pode vir a representar no comportamento das populações. E
o pior que pode acontecer numa discussão destas é o tribalismo habitual, ao
nível do pior das claques de futebol: quem não está comigo está contra mim. Mas
é aí que já estamos.
Sou
religiosamente agnóstico e fanaticamente devoto do 25 de Abril, da liberdade e
do patrono Salgueiro Maia. Mas isto não tem a ver com celebrações da Páscoa de
um lado e a evocação da data política mais importante do país do outro lado.
Nem sequer sobre defesa da liberdade e da democracia.
Estávamos mal se
a solidez e saúde do nosso regime estivesse dependente da forma como se
celebra, num determinado ano, o dia que lhe abriu caminho. Vamos ser todos um
pouco mais exigentes e inteligentes nos argumentos e mais pragmáticos nas
análises.
Claro que o 25 de
Abril pode e deve ser assinalado na Assembleia da República de forma solene,
como sempre acontece. Não há nenhum motivo para que isso não aconteça. A
questão não é se deve ou não deve acontecer mas sim na forma como pode e deve
ser feito no contexto extraordinário que vivemos.
Se ninguém se
opõe ao princípio da celebração nem ninguém defende que a cerimónia seja, na
sua dimensão, idêntica à dos anos anteriores, então o que está em causa é a
quantidade de pessoas que estarão no Parlamento no próximo sábado.
As 130 pessoas
previstas – entre deputados e convidados – são demasiadas e passam a mensagem
errada aos cidadãos ou não? Metade seria mais adequado? E porque não 46, simbolicamente
a idade do 25 de Abril? E se fossem só 15?
Já há pelo menos
duas petições públicas sobre o assunto, uma delas encabeçada pelo inevitável
Manuel Alegre.
É caricato e até ridículo que se chegue a esta discussão
com o tremendismo e o rasgar de vestes que se vai vendo por aí. Como quase
sempre, o método é determinante e foi ele que nos trouxe a este debate a cujo
desfecho parece hipotecada a liberdade e a democracia.
Primeiro, o
formato da cerimónia devia ter sido acertado com as autoridades de saúde antes
de ser decidido. É a Direcção-Geral de Saúde que, desde o início, tem definido
as regras impostas aos cidadãos o que pode e não pode ser feito nas mais
variadas circunstâncias. Adiar ou cancelar todos os eventos que impliquem, ou
possam implicar, a concentração de mais de 100 pessoas e limitar a 10 pessoas
as que podem assistir a um funeral são apenas algumas dessas regras.
Mas o Parlamento
não fez nada disso e decidiu a cerimónia sem articulação prévia vinculativa com
as autoridades. Este domingo a ministra Marta Temido afirmou: “neste momento
estamos a trabalhar com a Assembleia da República e com o MAI [neste caso a
propósito do 1º de Maio] para a definição das regras precisas para que possam
ocorrer [essas duas celebrações]. Estamos ainda a detalhar os termos precisos,
que têm que ser envolvidos com os próprios”.
Mas quais “regras
precisas” se os deputados já decidiram quantas pessoas vão lá estar, onde e
durante quanto tempo? Não vamos tomar as pessoas por parvas. O que os técnicos
da DGS vão fazer é assinar de cruz uma decisão política que o Parlamento já
tomou num contexto de Estado de Emergência de saúde pública.
Isto não abona a
favor da independência técnica que devem preservar para que a população possa
confiar e seguir as suas recomendações.
A alternativa é a
DGS desautorizar o Parlamento e obrigar a uma cerimónia com menos
participantes. Há coragem de uns e humildade de outros para que isso aconteça?
Isto seria tudo
escusado e salvaguardaria a posição do Parlamento se tivesse sido feito “by the
book”. Mas a arrogância e condição de excepção que a Assembleia da República
gosta de reservar para si vieram à tona mais uma vez.
Basta reparar que
os deputados têm violado regularmente as regras que eles próprios definiram
para o funcionamento do Parlamento neste período excepcional. Até o próprio
Ferro Rodrigues, sempre tão condescendente quando o Parlamento e deputados
violam regras e leis, já o assinalou publicamente por duas vezes. Numa delas,
Rui Rio até abandonou a sala criticando os deputados da sua bancada que não
sabem contar até 18 (o número máximo que deviam estar na bancada do PSD).
Como essa arrogância e dualidade de critérios são
habituais é fácil pensar que estamos, mais uma vez, perante um desses casos: os
órgãos do Estado escolhem para si o laxismo enquanto fazem exigências duras aos
cidadãos. E esta já é, só por si, uma traição às boas práticas democráticas que
o 25 de Abril nos permitiu.
Mas há sobretudo
nesta forma de decidir e actuar uma enorme falta de empatia com o que se está a
passar no país e com os cidadãos.
Não são apenas as
cerimónias religiosas que estão em causa, embora elas sejam importantes para
muita gente. Nem as regras para funerais ou casamentos.
São os familiares
que não se podem ver há quase dois meses em nome da protecção comum.
Não são
caprichos. São as dezenas de milhares de desempregados ou o mais de um milhão
que está em lay-off com um corte de um terço no ordenado. E todo o custo social
e económico que virá a seguir. Estas coisas são uma consequência única e
directa das regras de isolamento social que tiveram que ser impostas pelo
Estado.
O problema é o sinal errado que pode estar a ser dado e
que podia ser evitado com um pouco de bom senso e menos arrogância.
Queremos
aligeirar já o confinamento e o isolamento social, correndo os riscos
inerentes? Ou ele deve ser mantido com o mesmo rigor nas próximas semanas e o
Estado deve estar munido da autoridade moral necessária para continuar a
impô-los?
Até para mostrar um alinhamento com o que se está a
passar na sociedade, o Parlamento faria um favor a todos mas também a si
próprio se mantivesse a celebração do 25 de Abril, como se impõe, mas da forma
mais minimalista possível: a presença no hemiciclo do Presidente da República,
presidente da Assembleia da República e deputados que vão fazer os seus
discursos em representação das suas bancadas e dos eleitores que os elegeram.
Seria inatacável
e exigente no cumprimento das boas regras sanitárias, como se pede a um órgão
de Estado. O país assiste, como sempre, pela televisão. O simbolismo do momento
era muito mais eficaz do que muitos apelos e prestaria uma homenagem mais digna
à generalidade dos cidadãos que estão zelosamente a respeitar as regras,
pagando um preço pessoal – não viram o Papa sozinho na Praça de São Pedro?
E Abril seria,
como sempre, homenageado como merece. O que não merece é estar envolvido nesta
discussão surreal que não lhe faz justiça, atenta contra o seu simbolismo e
divide quando devia unir em nome de um bem único: a liberdade e a sua
celebração.
Nota: Por opção
própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico.
Paulo Ferreira
Colunista
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