A Galp tem de cair
A indústria petrolífera à escala global já está de mão
estendida para receber apoios públicos e reclamar-se como paladino de uma
futura recuperação económica. Mas os fósseis são uma âncora genocida que
arrasta a Humanidade para o fundo.
João Camargo
João Camargo
Investigador em
alterações climáticas; activista do Climáximo
22 de Abril de
2020, 12:42
Na segunda-feira
o mercado de futuros de petróleo do West Texas fechou a negociar em 37 dólares
negativos o barril. Não existe paralelo histórico para isto. É o tempo em que
vivemos: a História não acabou nem abrandou. No entanto, também não faz sentido
achar que o mundo se descontrolou repentina e inadvertidamente. Os riscos
sociais, económicos e ambientais do capitalismo global sempre estiveram
presentes e sempre foram ignorados na troca pelo rendimento rápido e sem
restrição. Hoje começamos a sentir esses efeitos. É também o tempo de escolher
entre assistir à História ou participar nela.
Ironicamente, uma
década da catástrofe do Deepwater Horizon da BP no Golfo do México, o maior
derrame petrolífero da história da indústria, o contrato para as entregas
petrolíferas de Maio de 2020 nos Estados Unidos bateu o preço mais baixo de
sempre — na verdade as petrolíferas pagaram para se livrar do petróleo —,
batendo o recorde de 10 dólares de 1986. Os preços do contrato das entregas de
Junho também caíram 15% para os 20 dólares, e poderão continuar a cair por
contágio e porque os problemas que deram origem a este preço negativo não
passaram. No Canadá, o petróleo também está a ser “vendido” a preços negativos,
o que tenderá a arruinar a caríssima e também altamente destrutiva indústria
das areias betuminosas.
Em Janeiro, o
barril estava acima dos 60 dólares, mas com a crise do novo coronavírus a
procura colapsou, enquanto a produção tentou manter-se (na verdade, na Arábia
Saudita e Rússia até aumentou). A economia hoje consome menos 30 milhões de
barris de petróleo por dia do que aquilo que consumia em Janeiro, enquanto
produz uma quantidade similar — cerca de 100 milhões de barris por dia. O custo
de fechar os poços de petróleo e voltar a reactivá-los é muito elevado ou mesmo
impossível, especialmente quando falamos da indústria americana, baseada na
extracção por fracking. Todo o petróleo produzido tem de ficar dentro de
infra-estruturas: tanques, refinarias, armazéns, oleodutos, petroleiros. Como
se produz muito mais do que se consome, a infra-estrutura está a ficar cheia. O
mundo tem uma capacidade global estimada de armazenamento de 6,8 mil milhões de
barris, que já está ocupada acima de 70%, embora distribuída regionalmente.
Estima-se que nos próximos dias o Brasil, a Nigéria e Angola esgotem a sua
capacidade de armazenamento, enquanto a capacidade de armazenamento dos EUA
deverá esgotar-se nas próximas duas semanas.
A procura de
petróleo caiu portanto 30% desde o início do ano, mas nos Estados Unidos, a
produção só foi reduzida em 5%. As garantias que Trump deu desde o primeiro
momento à indústria americana terão levado a esta situação. Mesmo agora, os
Estados Unidos só prevêem reduzir a sua capacidade produtiva para 11 milhões de
barris por dia até ao final do ano (comparando com 13,3 milhões do final de
2019). Trump vai comprar 75 milhões de barris para armazenar na “reserva
estratégica”, mas só consegue armazenar 500 mil barris por dia, e o
Departamento da Energia propôs um plano para apoiar empresas que têm reservas não
exploradas de 365 milhões de barris de petróleo, e pagar-lhes para não
produzirem até ao preço subir. Para fazer os preços subirem fez também um
acordo com o OPEC+ para cortar 9,7 milhões de barris por dia (o que é muito
menos do que a redução de 30 milhões), pagando ao México para cortar quase 25%
da sua produção, mas o corte só entra em vigor para o mês que vem, o que
significa que neste momento há navios a ser carregados para levar petróleo para
sítios onde poderão nem sequer ser descarregados.
Haverá falências
em massa de pequenos produtores nos Estados Unidos e resgates e/ou
nacionalizações. Com um preço até ao final do ano de 20 dólares por barril,
mais de 500 produtores petrolíferos entrarão na bancarrota, enquanto se o valor
for mais baixo, poderão ser mais de 1100 petrolíferas, segundo análise da
Rystad Energy. As gigantes Chevron e Exxon Mobil poderão vir a ser
beneficiárias destas bancarrotas, se sobreviverem ao colapso (a Exxon perdeu
38% em bolsa desde o início do ano e a Chevron perdeu 31%). Em 2019, houve um
investimento privado de 64,2 mil milhões na indústria americana. Milhares de
empresas de participações privadas vão colapsar por causa disto, mas abutres
com capital deverão avançar na perspectiva de uma recuperação rápida da procura
e confiando nos resgates públicos. Não é por isso de estranhar que Trump tente
de todas as maneiras que acabe a quarentena por causa da covid-19, apesar de o
número de infectados e de mortes nos Estados Unidos continuar a aumentar. Ainda
assim, o actual estado da indústria deverá ser o fim da revolução do fracking,
que só era possível por causa do petróleo caro. Com o barril de Brent em Abril
a 20,82 dólares, menos de um terço do valor de Janeiro, há também uma forte
ameaça para os petroestados: Rússia, Venezuela, Arábia Saudita, Angola, Iraque,
Nigéria, entre outros.
“A campanha Galp
Must Fall ("Galp tem de cair") irá contestar esta assembleia-geral no
dia 24. Os dividendos devem ser utilizados para formar quem trabalha na Galp
para a transição energética e para preparar esta empresas para uma modificação
fundamental: ela tem de ser nacionalizada e transformada numa das bases (em
conjunto com a Efacec) de uma indústria nacional de energias renováveis, em
todas as suas vertentes.”
O preço pode
subir? De 40 dólares negativos, claro, mas o desemprego em massa nos Estados Unidos
(e no mundo) significa que mesmo o extremo optimismo de esperar um regresso
rápido às deslocações de carro, férias, viagens e comércio não passará disso. A
procura pelo petróleo também não vai explodir.
No dia 24 de
Abril, a Galp, a maior petrolífera portuguesa, vai ter a sua assembleia-geral
de accionistas. Apesar do seu enfoque principalmente na refinação (tendo parado
já as refinarias de Matosinhos e Sines), é a maior produtora de petróleo e gás
portuguesa (com concessões em Angola, Moçambique e Brasil) e, apesar da florida
retórica sobre combate às alterações climáticas e transição energética, baseada
em mais gás fóssil, esta empresa anunciou no início deste ano que queria
duplicar a sua produção de petróleo e gás. Nesta assembleia, os accionistas vão
votar remunerar-se em 318 milhões de euros, depois de ainda agora terem
despedido trabalhadores na refinaria de Sines por causa da quebra de produção
(ao mesmo tempo que aumentaram unilateralmente o horário de trabalho). A crise
da indústria petrolífera já chegou à Galp, e o seu administrador aproveitou a
quebra do valor das acções para reforçar o seu peso na estrutura accionista (a
Galp desvalorizou 35% em bolsa desde o início do ano).
A campanha Galp
Must Fall ("Galp tem de cair") irá contestar esta assembleia-geral no
dia 24. Os dividendos devem ser utilizados para formar quem trabalha na Galp
para a transição energética e para preparar esta empresas para uma modificação
fundamental: ela tem de ser nacionalizada e transformada numa das bases (em
conjunto com a Efacec) de uma indústria nacional de energias renováveis, em
todas as suas vertentes. Este é um passo essencial para termos uma energia
pública e não-fóssil em Portugal, apesar não ser suficiente. Vivemos numa crise
climática global que tem de ser travada e para isso tem de se salvar quem
trabalha e deixar cair accionistas e fósseis (petróleo e gás).
A indústria
petrolífera à escala global já está de mão estendida para receber apoios
públicos e reclamar-se como paladino de uma futura recuperação económica. Mas
os fósseis são uma âncora genocida que arrasta a Humanidade para o fundo.
Resgatá-la para manter a produção, encher de biliões os bolsos de accionistas
privados enquanto são libertadas para a atmosfera as moléculas de gases com
efeito de estufa que nos condenam a destruir as condições que nos permitiram
criar civilizações humanas seria um dos maiores crimes da História da
Humanidade. Resgatar estas empresas e manter o seu modelo de negócio (quer com
propriedade pública, quer com propriedade privada) seria a consumação de que,
de facto, os governos à escala global querem acelerar o colapso climático.
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