terça-feira, 14 de abril de 2020

“Há empresas que deixaram de ser viáveis e o crédito não vai ajudar”



ENTREVISTA CORONAVÍRUS
“Há empresas que deixaram de ser viáveis e o crédito não vai ajudar”

Sérgio Rebelo, professor da Kellogg School of Management, alerta que Portugal tem pouca capacidade orçamental. Ainda assim, considera que “há algum espaço de manobra desde que o BCE esteja disponível para comprar dívida portuguesa”.

Sérgio Aníbal e Andrea Cunha Freitas 14 de Abril de 2020, 6:58

Abandonar a contenção e limitar pouco a actividade, apostando na chamada “imunidade de grupo”, não é a melhor opção nem mesmo no plano económico, já que, mesmo podendo trazer aumentos temporários no consumo, os efeitos económicos de longa duração serão negativos. Esta é um das conclusões de um estudo publicado recentemente por Sérgio Rebelo, economista português residente nos Estados Unidos há várias décadas, em conjunto com Martin S. Eichenbaum e Mathias Trabandt. No trabalho, os especialistas analisam, com base nos dados da gripe espanhola de 1918, os equilíbrios entre a protecção de vidas humanas através de medidas de contenção da actividade e o impacto na economia dessas medidas.

Em resposta às perguntas enviadas por e-mail pelo PÚBLICO, o professor da Kellogg School of Management defende que “de uma forma geral, os governos estão a fazer aquilo que é preciso para adequar o curso de epidemia à capacidade hospitalar”. Do ponto de vista económico, afirma que aquilo que é necessário nesta fase é “tomar medidas que aliviem o sofrimento das famílias mais desprotegidas, que preservem as empresas viáveis e que mantenham os empregos”, alertando contudo que “há infelizmente empresas que deixaram de ser viáveis e a essas o crédito não vai ajudar”. Para o Estado, deixa um aviso: “se a situação económica piorar vai ser preciso tomar mais medidas, mesmo que isso signifique um endividamento maior”. O que é preciso, diz, é “preservar a capacidade produtiva”.

No vosso artigo – “Pandemics Depress the Economy, Public Health Interventions Do Not: Evidence from the 1918 Flu” - falam, por um lado, na influência desta perturbação na economia com um possível aumento de mortes por suicídio e, por outro, numa redução de mortes nos acidentes de viação e poluição por causa do seu abrandamento. Porquê fazer este tipo de contas?
O modelo que construímos tem em conta os custos da recessão causada pela epidemia em si e pelas medidas de contenção adoptadas para reduzir o número de fatalidades. Mas um modelo é sempre uma simplificação da realidade em que tentamos incluir apenas aquilo que é crucial. No nosso caso, o modelo não leva em consideração aspectos como acidentes de viação e fluxos de poluição.

Onde é que se encontra, no presente caso, o ponto ideal entre a aplicação de medidas de contenção e a manutenção de alguma actividade económica?
É exactamente esse ponto ideal que o modelo permite determinar. É claro que é mais fácil fazer isto no computador do que na realidade. O modelo é apenas um instrumento para nos ajudar a pensar sobre escolhas que são muito difíceis de fazer.

Há muitas informações e variáveis que não conhecemos. Por exemplo, porque escolheu a (optimista) taxa de mortalidade de 0,5%, quando a OMS fala numa previsão de 2%?
A taxa de mortalidade é o número de pessoas que faleceram devido à covid-19 dividido pelo número de pessoas infectadas. Temos uma ideia razoável do numerador deste rácio, mas uma ideia muito imprecisa do denominador. Há muitas pessoas infectadas sem sintomas que não são incluídas no denominador. Isso resulta em estimativas da taxa de mortalidade que são artificialmente elevadas. Por esta razão, utilizámos os dados por escalão etário da Coreia do Sul, um país que usou um número muito grande de testes para aferir o número de infectados. Usámos depois a distribuição por idades nos Estados Unidos para adaptar a taxa de mortalidade à realidade americana. Excluímos pessoas com mais de 70 anos porque este grupo etário tem taxas muito baixas de participação no mercado de trabalho.

A análise que faz diz respeito aos EUA. Há motivos para pensar que pode ser diferente noutros países, noutras economias? No caso português, por exemplo?
As variáveis cruciais são a estrutura etária da população e a capacidade hospitalar. As razões pelas quais assistimos a situações dramáticas na Itália são que cerca de 30% da população tem mais de 60 anos e a capacidade hospitalar é bastante limitada.

As medidas de contenção actualmente em vigor na Europa e nos EUA são as adequadas? Os governos têm estado, a este nível, a reagir bem?
De uma forma geral, os governos estão a fazer aquilo que é preciso para adequar o curso de epidemia à capacidade hospitalar, reduzindo a taxa de mortalidade e ganhando algum tempo para ver se se descobre um tratamento eficaz ou uma vacina.

Quanto tempo é que, acredita, poderá durar este problema de termos a economia total ou parcialmente fechada?
Estamos nas mãos dos cientistas que desenvolvem terapias e vacinas. Se se encontrar um tratamento eficaz ou uma vacina a curto prazo, a economia vai recuperar rapidamente. Mas temos que nos preparar para a possibilidade de isso não acontecer e de a epidemia só parar por atingirmos herd immunity [imunidade de grupo], ou seja quando houver um número grande de pessoas que teve a infecção e adquiriu imunidade ao vírus. Na ausência de vacinas ou tratamentos só isso pode evitar um segundo surto de infecções. Se a solução for herd immunity, temos que implementar políticas de contenção por um período de tempo muito mais alargado que um trimestre.

Que tipo de medidas devem ser tomadas?
É preciso tomar medidas que aliviem o sofrimento das famílias mais desprotegidas, que preservem as empresas viáveis e que mantenham os empregos para que a economia possa recuperar rapidamente quando a epidemia passar. Na Alemanha, o programa Kurzarbeit (“trabalho curto”) permite às empresas reduzirem as horas de trabalho dos seus trabalhadores. O estado dá uma compensação parcial aos trabalhadores que sofreram redução nas horas de trabalho e rendimento. Ao incentivar as empresas a não despedirem os seus trabalhadores o programa permitiu à Alemanha recuperar rapidamente em 2010 e 2011. Este programa foi revisto e adaptado para a situação actual.


Portugal ainda tem muitas feridas abertas na economia pelos tempos da crise de 2008 e da troika. Tem também níveis de dívida, pública e privada, muito elevados. Qual é que acha que será o impacto da epidemia na economia portuguesa?
Portugal tem pouca capacidade orçamental, por isso é preciso ser cuidadoso. Mas há algum espaço de manobra desde que o Banco Central Europeu (BCE) esteja disponível para comprar dívida portuguesa. A prudência na gestão da dívida durante expansões é importante para termos espaço de manobra nas recessões.

O Governo já anunciou uma série de medidas de apoio às famílias, desempregados, recibos verdes, empresários, etc. Desde moratórias para empréstimos a isenções de pagamentos de rendas, emissão de dívida e regras para layoff simplificados, entre outras acções. É isto que é preciso? Devia-se ir mais longe ou, pelo contrário, ter mais prudência no que diz respeito ao aumento do nível de endividamento?
É um balanço delicado entre aliviar o presente e sobrecarregar o país com dívidas a pagar no futuro. Portugal, tal como outros países, está a navegar à vista. Se a situação económica piorar vai ser preciso tomar mais medidas mesmo que isso signifique um endividamento maior, porque é preciso preservar a capacidade produtiva do país.

Uma parte importante das medidas consiste na concessão de crédito às empresas ou o adiamento de despesas para os particulares. Não se estará apenas a adiar uma factura?
O acesso ao crédito é muito importante porque ajuda a evitar que empresas viáveis vão à falência. Há infelizmente empresas que deixaram de ser viáveis e a essas o crédito não vai ajudar.

Quanto tempo vai ser preciso para nos recompormos disto tudo. Este tipo de crises deixa cicatrizes na economia no longo prazo?
Tudo depende da duração da crise. Se amanhã for descoberto um tratamento eficaz as cicatrizes vão ser pequenas. Muitos países vão acabar mais endividados e com economias mais fracas porque perderam empresas e empregos durante a epidemia. Há também mudanças de comportamento que provavelmente vêm para ficar: mais comércio electrónico e telemedicina, mais reuniões por videoconferência e ensino online, mais automação e menos outsourcing [subcontratação].

Na Europa, o debate económico tem estado centrado nos chamados “coronabonds”. Acha que avançar para a mutualização de dívida é essencial para evitar o risco de uma nova fragmentação na zona euro?
Como sempre esta é uma questão política. Mas a mutualização permite partilhar o risco de um choque comum de forma a que a retoma seja mais robusta e que a circulação de pessoas na Europa possa recuperar mais rapidamente. Essa circulação é muito importante para Portugal dada a importância do turismo na nossa economia.

Um dos cenários que estará a trabalhar agora passa por “ir libertando” os sobreviventes da covid-19, os seja, as pessoas que foram infectadas e recuperaram. A Alemanha avançou recentemente com essa ideia consistindo numa espécie de “certificado de imunidade” que permitia o regresso à vida “normal”. Acha que essa é uma possível e boa solução? O regresso destas pessoas pode ter um efeito de alívio na economia?
Acho que se tem que evoluir rapidamente para estas soluções de smart containment, em que as pessoas imunes podem trabalhar e circular livremente. Para implementar esta solução é preciso ter a capacidade de fazer testes de imunidade em grande escala.

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