ANÁLISE
CORONAVÍRUS
O regresso do
Estado e do nacionalismo económico
Antever o
regresso do Estado e do nacionalismo económico, ainda que sob diversas formas e
graus de intensidade, parece uma antecipação certeira do futuro.
JOSÉ PEDRO
TEIXEIRA FERNANDES
15 de Abril de
2020, 13:00
1. No espaço de
uma década, o espectro da Grande Depressão dos anos 1930 paira novamente sobre
a economia mundial. A par desse espectro volta a emergir o espectro do regresso
do nacionalismo económico, já temido durante a anterior crise financeira
desencadeada em 2008. Não é apenas uma retórica alarmista de novo. Segundo as
recentes estimativas efectuadas pela Organização Mundial do Comércio (OMC),
comparativamente a 2019 o comércio mundial de mercadorias deverá ter uma quebra
entre 13% a 32% durante o ano de 2020, dependendo da intensidade do impacto da
covid-19 na economia mundial. Esta previsão coloca o valor, mesmo no cenário
mais optimista — onde será 13% do comércio mundial —, acima da quebra ocorrida
no pico da referida crise financeira global de 2008-2009, onde atingiu os 12%.
Mas no cenário mais pessimista a quebra poderá chegar a quase ⅓, o que só tem
comparação com o ocorrido nos primeiros anos da Grande Depressão, entre 1929 e
1932.
Para Roberto
Azevêdo, o diplomata brasileiro director-geral da OMC, impõe-se manter os
mercados abertos e apostar numa resposta global coordenada onde o comércio
internacional é uma peça-chave. “Uma recuperação forte é mais provável se
decisores políticos derem às empresas e às famílias razões para acreditarem que
a pandemia foi um choque económico temporário e único. Para isso, a política
fiscal, a política monetária e a política comercial devem estar alinhadas. Uma
mudança para o proteccionismo irá introduzir novos choques sobre aqueles que já
estamos a enfrentar actualmente. Manter os mercados abertos ao comércio e ao
investimento internacionais ajudará as economias a uma recuperação mais rápida”
(ver WTO, Trade forecast press conference, 8 de Abril de 2020).
2. O comércio
internacional tem um papel inquestionável no bem-estar material do ser humano.
Muitos dos produtos que necessitamos para um normal dia-a-dia não seriam
possíveis sem ele. Paradoxalmente, está também na origem de tensões sociais e
políticas, internas e internacionais, de maior ou menor grau de amplitude e
conflitualidade. Em parte, isso ocorre pelo facto de o mundo estar organizado
em entidades políticas soberanas (Estados), sendo o bem-estar das suas
populações — não o bem-estar da globalidade — uma responsabilidade política
maior dos governos nacionais. Ao mesmo tempo, os Estados, sobretudo quando são
grandes potências mundiais, tendem a usar o comércio como instrumento não só
riqueza (bem-estar), mas também de poder. A guerra comercial EUA-China dos
últimos anos mostra inequivocamente essa faceta.
Para além disso,
o comércio internacional está, de uma maneira bastante evidente nas economias
desenvolvidas, no centro de pulsões contraditórias do ser humano. Enquanto
consumidor este quer ter acesso a um espectro alargado de produtos que
satisfaçam as suas necessidades básicas, mas também as mais sofisticadas, a
preços mais baixos e/ou com mais qualidade, ou seja, beneficiando da
concorrência e avanços tecnológicos globais. Enquanto trabalhador deseja estar
protegido e não ficar sujeito a uma concorrência agressiva, que pressiona os
salários e outras regalias sociais para uma contenção ou redução. Mas com
mercados mundiais abertos, a concorrência ocorre dentro e fora da economia
nacional, um pouco por todo o mundo onde há uma similar produção de bens ou
serviços, quando estes são transaccionáveis nos mercados internacionais. Paralelamente, há produções estratégicas em
termos económicos — mas também nos planos da autonomia nacional e da segurança
— que dão vantagem a quem as detém. E as alturas de crise grave mostram ainda
que para empresas e famílias mais afectadas o último refúgio é o Estado, não o
mercado.
3. Face aos maus
tempos que se perspectivam na economia e no emprego, será possível manter os
mercados mundiais afastados de quaisquer interferências políticas dos Estados
no sentido de os regular, controlar ou até fechar? Um olhar sobre o mercado
mundial de uma commodity (o petróleo), apesar das suas características muito
específicas, pode, todavia, dar-nos uma ideia sobre o que poderá acontecer
noutras áreas. Em Março último, a Arábia Saudita e a Rússia envolveram-se numa
guerra de preços que acentuou, ainda mais, a quebra nos mercados internacionais
devido à semi-paralisação da economia. Até um passado recente, a Organização
dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP) era um cartel habituado a controlar
os preços. Apenas tinha um rival externo (a Rússia), que lhe movia uma certa
competição. No entanto, na última década o extraordinário ressurgimento da
produção de petróleo nos EUA, sobretudo devido ao fracturamento hidráulico
(fracking) e petróleo de xisto (shale oil), fez a OPEP perder o controlo dos
preços nos mercados mundiais. Em 2017 essa perda de consolo levou a um ainda
mais invulgar entendimento entre a Arábia Saudita — o país mais importante da
OPEP — e a Rússia.
Agora foi a
covid-19 a provocar uma outra alteração impensável ainda no início do ano.
Embora existam estimativas variáveis, para compreendermos o contexto importa
notar que, nestes primeiros meses de 2020, a procura mundial de petróleo desceu
algures entre 25% a 30% e o preço do barril caiu abaixo dos 30 dólares. Em
termos quantitativos, ocorreu uma redução entre os 15 milhões e os 20 milhões
de barris diários. Particularmente sintomático é também o facto de os locais de
armazenamento em terra estarem cada vez mais cheios de petróleo devido à falta
de consumo e de compradores. Em inícios de Abril, o nível de armazenamento em
petroleiros e superpetroleiros no mar aproximava-se dos 80 milhões de barris,
uma quantidade que só tem paralelo com aquilo que aconteceu na crise financeira
anterior, quando superou os 100 milhões de barris no ano de 2009.
4. “Com a
covid-19 a reduzir a procura global de petróleo a níveis desastrosos e com
previsões de que o pior ainda está para vir, a OPEP não já não é mais
relevante, nem a OPEP+. Neste mundo, ou o cartel é global ou é impotente.”
Ironicamente, podemos estar a assistir ao nascimento de um cartel global do
petróleo. O referido editorial da Oil Price de 10 de Abril de 2020 diz muito do
mundo que se está a desenhar em matéria de energia. Essa transformação pode
também ajudar a reflectir sobre outras mudanças a que o comércio internacional
de mercadorias — e as cadeias de produção e de abastecimentos — irão estar
sujeitos, ainda que sob formas e graus de intensidade variáveis conforme os
produtos em causa. A ser assim, será um mundo onde o intervencionismo estatal
procurará controlar mais os mercados, de forma directa ou indirecta.
Importa aqui
notar que um cartel é sempre uma actuação anti-mercado e anti-lei da oferta e
da procura. Por definição, é um acordo onde agentes económicos concorrentes —
empresas ou países — procedem a uma fixação de preços ou de quotas de produção,
ou fazem divisão de clientes e de mercados, evitando uma concorrência entre si
para aumentar os lucros, ou conter a sua diminuição drástica. Não é por acaso
que em todas as economias de mercado, como ocorre na União Europeia e nos EUA,
existe uma legislação sobre a concorrência que proíbe os cartéis. Mas, no caso
do petróleo, a covid-19 está a juntar rivais geopolíticos que, em quase tudo o
resto, se opõem a nível internacional. Assim, a actuação concertada agora
combinada entre os grandes produtores mundiais — ironicamente impulsionada
pelos EUA, que sempre se opuseram a esse cartel — deverá levar a um corte 9,7
milhões de barris por dia na produção de petróleo em Maio e Junho, continuando
com reduções graduais até Abril de 2022. Claro que tudo só foi possível numa
situação extraordinária e de desespero de muitos produtores (e com a indústria
de shale oil dos EUA seriamente ameaçada em ano eleitoral), onde os efeitos
económicos da queda de preços se podem transformar, rapidamente, em efeitos
sociais e políticos incontroláveis de contestação aos poderes instituídos.
Com a pandemia da
covid-19, fechar fronteiras, restringir a circulação de pessoas, aumentar a
produção nacional de bens críticos para lidar com o vírus fazendo voltar
produção ao território nacional e intervir no normal funcionamento das empresas
e do mercado de trabalho são realidades em curso
5. Será que
poderemos ter mais Estado na economia sem termos mais nacionalismo económico?
Em teoria sim, podemos conceber um mundo onde os Estados aumentam o seu papel
na economia e sociedade, numa lógica concertada e cooperativa entre si, sem
proteccionismo das suas próprias economias nacionais. Mas esse é um mundo
teórico. No mundo real é pouco provável que aconteça uma coisa sem a outra,
especialmente no actual contexto político.
Olhando para o
período imediatamente anterior, as tendências já existentes apontavam para um
recrudescimento do nacionalismo económico. As duas maiores potências comerciais
mundiais mostravam isso inequivocamente. No caso da China, nunca deixou de ser
proteccionista do seu mercado interno, nem de ter uma abordagem mercantilista
às exportações, ou de efectuar um controlo estadual efectivo da sua economia.
No caso dos EUA, país habitualmente defensor dos mercados livres, a America
first de Donald Trump fez emergir uma lógica também proteccionista. EUA e China
estavam ainda envolvidos numa guerra comercial, pausada por mera conveniência
transitória de ambos em inícios de 2020.
Mas com a
pandemia da covid-19, mesmo nas economias mais liberais, estamos a assistir a
um crescer da intervenção do Estado. Fechar fronteiras, restringir a circulação
de pessoas, aumentar a produção nacional de bens críticos para lidar com o
vírus fazendo voltar produção ao território nacional e intervir no normal
funcionamento das empresas e do mercado de trabalho são realidades em curso.
Para além disso, quando as sociedades e a economias reatarem a normalidade, a
enorme quebra do Produto Interno Bruto (PIB), as falências e o desemprego em
massa — aquilo a que o Fundo Monetário Internacional (FMI) chama já “O ‘Grande
Lockdown': a mais grave retracção da economia desde a Grande Depressão” — vão,
com grande probabilidade, impor uma intervenção governamental com maiores ou
menores condicionantes dos mercados. Nesta altura, é impossível antecipar a
plenitude das consequências sociais, económicas e políticas do que estamos a
assistir. Mas antever o regresso do Estado e do nacionalismo económico, ainda
que sob diversas formas e graus de intensidade, parece uma antecipação certeira
do futuro.
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