CRÓNICA ACÇÃO
PARALELA
A nossa condição zombie
António Guerreiro
2 de Abril de
2021, 9:56
https://www.publico.pt/2021/04/02/culturaipsilon/cronica/condicao-zombie-1956630
Muito antes da
era zoom e da instalação do teletrabalho como regra geral, na qual entrámos em
corrida forçada há cerca de um ano, já estava em acção o processo que nos
transforma em zombies. Esta zombificação do mundo já estava latente numa fase
anterior, quando ainda se preferia utilizar uma palavra da psiquiatria do
século XIX, em vez de nomes inquietantes concedidos por filmes de género, e se
falava de uma hipnose geral, isto é, dos poderes hipnotizadores, alucinatórios
e fantasmagóricos dos media. Basta, aliás, declinar a palavra media no
singular, e dizer medium, para que a esfera do mediúnico seja evocada e
entremos assim na ZAD dos fantasmas (ZAD: zona a defender): onde começa o mundo
da medialidade começa também a dança dos fantasmas e dos mortos-vivos.
Antes de
Baudrillard ter designado a “sociedade dos simulacros”, antes de Vilém Flusser
ter definido as “tecno-imagens”, antes de Debord ter configurado a “sociedade
do espectáculo”, antes da espectrologia do nosso tempo que até produziu
leituras sofisticadas de Marx, Günther Anders descreveu longamente, no seu
livro de 1956 sobre o ser humano como um ser antiquado (o título original é Die
Antiquiertheit des Menschen; na tradução inglesa do livro, Antiquiertheit é
traduzido por Outdatedness, e na tradução francesa, por Obsolescence), o modo
como os media de massa nos condenam ao estatuto de zombies. É num capítulo
intitulado Considerações Filosóficas sobre a Rádio e a Televisão que Günther
Anders desenhou o “mundo como fantasma” e apontou o que ele entendia ser o
principal efeito mediúnico da rádio e da televisão: o de fazer de cada
consumidor “um trabalhador em domicílio, não remunerado, que contribui para a
produção do homem de massa”. Noutro momento, Günther Anders utiliza a expressão
“eremitas de massa”.
Talvez seja
conveniente apresentar Günther Anders: filósofo e ensaísta alemão que viveu
entre 1902 e 1992, o verdadeiro nome deste judeu alemão é Günther Stern. Foi o
primeiro marido de Hannah Arendt (entre 1929 e 1937), que conheceu quando ambos
eram alunos de Heidegger. Com a ascensão do nazismo, seguiu os passos de muitos
outros intelectuais judeus: fugiu da Alemanha, em 1933, para Paris (foi aí que
se divorciou de Hannh Arendt) e de Paris foi para os Estados Unidos, tendo
regressado à Europa em 1950. A sua obra só a partir do início deste século
começou a ter uma forte projecção. O teor apocalíptico dos seus textos sobre a
ameaça da bomba atómica, no tempo da guerra fria, assim como as cores negras
com que pintou o progresso da civilização técnica, fizeram com que fosse muitas
vezes assimilado ao pessimismo cultural que tinha tido uma forte expressão na
Alemanha, após a Primeira Guerra. Mas Günther Anders não pertenceu de facto a
essa constelação que também albergou alguns representantes da “revolução
conservadora”, um ambiente político-cultural do qual Anders sempre esteve
distante.
Lido hoje o livro
mais importante da obra de Günther Anders, as suas teses e intuições parecem
análises e descrições do nosso presente mais imediato. “ A nossa normalidade é
uma história de fantasmas”, escreveu ele, para a seguir acrescentar: “Muitos
habitantes do mundo real já foram definitivamente vencidos pelos fantasmas e são
já reproduções de fantasmas”. É provável que as teses de Anders só recentemente
tenham chegado ao momento em que se tornaram legíveis. A condição zombie, na
época do zoom e do teletrabalho, deixou de ser um cenário especulativo. Mas
entre o mundo de Anders e aquele com que estamos confrontados há uma linha de
continuidade e de ascensão progressiva do zombie. No início deste século
começou-se a assistir em várias cidades do Estados Unidos a marchas de
indivíduos mascarados de zombies, de “corporate zombies”, que pareciam paradas
carnavalescas. Numa delas, em Wall Street, os manifestantes (silenciosos, sem
pronunciar qualquer mensagem) mascaram notas de banco do jogo do Monopólio,
parodiando a pulsão nutritiva do capitalismo financeiro. O filme de George Romero,
A Noite dos Mortos-vivos , parece ter servido de inspiração a este “povo
zombie” que foi mais longe do que o simples “Occupy Wall Street”. A palavra de
ordem desta massa zombie era “Occupy everything”.
Livro de
recitações
“Quase metade dos
portugueses fez menos sexo durante a pandemia. Satisfação sexual também
diminuiu.”
In Expresso, 30
de Março de 2021
Sobre as questões
do sexo, as sondagens são sempre pouco fiáveis. Mas esta é muito verosímil.
Toda a gente sabe que o ambiente familiar, doméstico, conjugal, é pouco
favorável à subida da tensão libidinal e à satisfação do desejo. Sem as
incursões fora de casa, a única coisa que cresce é o deserto. Este tipo de
inquéritos e sondagens permite dar uma ideia aproximada do nomadismo e da
infidelidade. Mas faltam sondagens que dêem conta de outro fenómeno: muitos
casais, após algum tempo de conjugalidade, passam à situação de jejum
permanente e apenas partilham o espaço e a economia domésticos, a amizade, o
companheirismo, a solidariedade e um afecto que nada tem de sexual. Quando não
partilham nada disto, passa-se á violência doméstica. Mas a miséria sexual entre
os membros do casal é talvez o tema mais recalcado da história da
conjugalidade.
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