EDITORIAL
Uma votação contaminada pelo ridículo
Na votação do OE há avanços e recuos, suspensões de
agenda, birras, chantagens, adiamentos e negociações de bastidores. Há excesso
de vaidade, de indiferença e de autismo. E, sim, há uma corrida para ver quem
consegue aumentar mais a despesa do Estado num país exaurido.
24 de Novembro de
2020, 21:10
https://www.publico.pt/2020/11/24/politica/editorial/votacao-contaminada-ridiculo-1940525
Por muito esforço
que se faça para entender o que se passa por estes dias na Assembleia da
República, consegue-se entender pouco. Esperava-se que a corrida contra o tempo
até à votação final global do Orçamento do Estado acusasse a gravidade do
estado de emergência e a solenidade de um momento ansioso da nossa vida colectiva.
Não é isso que está a acontecer.
Com 1365
propostas de alteração ao Orçamento condensadas num guião de 2700 páginas, as
diferentes bancadas esforçam-se tanto para exibir a sua capacidade de se fazer
ouvir que criaram uma opereta com um libreto ridículo, em que a pressa se impõe
à reflexão e a vaidade ao interesse do país.
Cabe tudo na
barafunda. Há dinheiro ou pedidos de dinheiro para espécies autóctones, para os
bombeiros, investimentos no Pinhal de Leiria, propostas de aumento do IVA nos
fertilizantes ou para “proteger as reservas naturais dos impactos da poluição
luminosa no ambiente”. Há exigências para se instalar a Entidade da
Transparência ou o Observatório Independente para a Monitorização do Discurso
de Ódio e Ciberbullying.
Há um pedido de
um plano anual de controlo da qualidade das refeições servidas nos estabelecimentos
da administração pública. Há taxas e taxinhas, como a que vai penalizar em 30
cêntimos as embalagens descartáveis de take-away na restauração, um sector que,
como se sabe, transborda de prosperidade. E há até a criação de um provedor do
Animal, mas não um provedor qualquer: um “que seja a voz dos animais e não do
sector económico”, como atestou uma deputada do PAN.
Cada partido se
acha no direito de ir à feira e negociar tudo e mais alguma coisa. A tenda
montada pelo PS favorece claramente os clientes do PCP para levar o Orçamento a
bom porto e deprecia todos os outros, principalmente o cliente que questionou
os preços e a qualidade do produto – o Bloco, claro está. Há avanços e recuos,
suspensões de agenda, birras, chantagens, adiamentos e negociações de
bastidores. Há excesso de vaidade, de indiferença e de autismo. E, sim, há uma
corrida para ver quem consegue aumentar mais a despesa do Estado num país
exaurido.
Será que os
nossos deputados não deram conta de que o país vive em estado de emergência?
Faz sentido este festival de medidas que desviam as atenções das grandes
decisões para proteger os cidadãos mais vulneráveis, a economia, o emprego, o
SNS ou a educação? Há rituais em democracia que oscilam entre a comédia e o
drama e assim escapam à nossa compreensão. Mas ver os deputados perderem-se em
questões acessórias para fazer prova de vida não serve apenas para tornar o
Orçamento num mastodonte ingovernável: serve também para o desacreditar pelo
ridículo.
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