segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Mas, afinal, qual é a posição de Portugal sobre o Estado de direito na União?

 



Mas, afinal, qual é a posição de Portugal sobre o Estado de direito na União?

 

Portugal está a um mês de assumir a presidência da UE e é absurdo que a Assembleia da República passe ao largo deste tema.

 

RUI TAVARES

30 de Novembro de 2020, 0:00

https://www.publico.pt/2020/11/30/opiniao/opiniao/afinal-posicao-portugal-estado-direito-uniao-1941151

 

Quando pergunto qual é, afinal, a posição de Portugal sobre o Estado de direito na União Europeia, estou a referir-me mesmo à posição de Portugal — não do Governo, do primeiro-ministro ou deste ou daquele partido. Qual é a posição do nosso país, oficial e inequívoca, num assunto que é provavelmente o mais crucial do projeto europeu há já bastantes anos? Será possível que não a tenhamos?

 

Há pouco mais de uma semana, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, declarava ao DN: “Portugal revê-se no acordo [sobre o Estado de direito] a que os líderes europeus chegaram em julho e, portanto, esse é o compromisso de que devemos partir. A Hungria e a Polónia devem evoluir na sua posição. Não é aceitável que dois Estados-membros queiram colocar como reféns todos os restantes. Na nossa opinião, não há razão para que a Polónia e a Hungria persistam nesta sua posição, que é incompreensível e insustentável.”

 

Muito bem. Mas poucos dias antes desse acordo de julho, o mais que sabíamos era o que o primeiro-ministro António Costa tinha revelado numa troca de crónicas comigo, na qual dizia uma coisa diferente: “Quem não partilha ou ameaça os valores da UE deve sair ou sofrer as sanções previstas no tratado e não poder comprar com cortes orçamentais a violação desses valores.”

 

E agora, uma investigação de Paulo Pena e do consórcio de jornalistas Investigate Europe vem dizer-nos que em maio de 2018, segundo as atas que a representação alemã redigiu de uma reunião do Conselho, o Governo português terá sido “muito crítico” do mecanismo de Estado de direito então em discussão, o que parece ser corroborado por declarações do ex-MNE polaco, que diz que nessa época Portugal “jogou do nosso lado”. A ser verdade, o Governo português teria assim sido um dos que não possibilitou que este assunto ficasse fechado logo em 2018 — numa época em que Hungria e Polónia não tinham um orçamento ou um fundo da recuperação da UE para vetar. O arrastar de pés do Conselho, que já vinha desde 2010, deu no que deu — e agora estamos numa situação em que a UE pode ser chantageada por governos autocráticos.

 

 

Esse arrastar de pés tem muitos culpados, e é aliás especialmente escandaloso ver partidos e políticos que colaboram ativamente com o Fidesz​ de Orbán no grupo parlamentar do PPE, como o CDS e o PSD, partilhando cargos na direção do mesmo, como Paulo Rangel, gritarem seletivamente hipocrisia quando foram cúmplices no agravamento deste problema durante uma década. Mas como a hipocrisia anda bem distribuída, é também extraordinário ver membros do Governo insistir na ideia de que se a Hungria e a Polónia não respeitam o Estado de direito, então “deveriam sair da UE” (como se não soubessem que é impossível, segundo os tratados, expulsar um Estado-membro) ou alegar que já existe um mecanismo sancionatório para estes casos nos tratados, o Artigo 7.º, como se ignorassem que este artigo se encontra inviabilizado pelo veto cruzado de que Hungria e Polónia dispõem no Conselho.

 

 

Mas há mais. Dentro de dois meses vamos ter eleições presidenciais — ocasião ideal para saber qual é a posição de Portugal sobre este tema. Pois bem, à exceção de Ana Gomes (a bem da transparência: a candidata que apoio e em quem vou votar, entre outras razões por esta mesma), que há anos é clara sobre a necessidade de um mecanismo do género daquele que está agora em discussão, não sabemos o que pensa Marcelo Rebelo de Sousa sobre o assunto, Marisa Matias absteve-se no voto correspondente no Parlamento Europeu, e João Ferreira diz que é contra mas não foi votar.

 

Lanço um desafio aos nossos deputados: se querem tomar uma decisão que dependa apenas de vocês, e que nem sequer vincula o Estado de direito a fundos comunitários, recomendem ao Governo que processe a Hungria e a Polónia no Tribunal de Justiça da UE por violação dos valores fundamentais da UE. Aí se verá quem leva o Estado de direito a sério ou não

Urge, então, responder à pergunta acima. E é na Assembleia da República que ela deve se respondida. Se não gostam do mecanismo que está em cima da mesa, propostas alternativas não faltam, como sabe quem lê esta coluna (exemplos: a criação da “Comissão de Copenhaga” de respeito pelos Valores da União ou a introdução de um procedimento comunitário de alarme pela violação dos mesmos). Portugal está a um mês de assumir a presidência da UE e é absurdo que a AR passe ao largo deste tema.

 

Até lanço um desafio aos nossos deputados. Se querem tomar uma decisão que dependa apenas de vocês, e que nem sequer vincula o Estado de direito a fundos comunitários, votem uma resolução propondo usar o artigo 259 do Tratado de Funcionamento da UE, segundo o qual “qualquer Estado-membro pode recorrer ao Tribunal de Justiça da União Europeia, se considerar que outro Estado-membro não cumpriu qualquer das obrigações que lhe incumbem por força dos Tratados”. Ou seja: recomendem ao Governo que processe a Hungria e a Polónia no Tribunal de Justiça da UE por violação dos valores fundamentais da UE. Aí se verá quem leva o Estado de direito a sério ou não. E Portugal entrará nesta história, finalmente, pelas melhores razões.

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