Mas, afinal, qual é a posição de Portugal sobre o Estado
de direito na União?
Portugal está a um mês de assumir a presidência da UE e é
absurdo que a Assembleia da República passe ao largo deste tema.
RUI TAVARES
30 de Novembro de
2020, 0:00
Quando pergunto
qual é, afinal, a posição de Portugal sobre o Estado de direito na União
Europeia, estou a referir-me mesmo à posição de Portugal — não do Governo, do
primeiro-ministro ou deste ou daquele partido. Qual é a posição do nosso país,
oficial e inequívoca, num assunto que é provavelmente o mais crucial do projeto
europeu há já bastantes anos? Será possível que não a tenhamos?
Há pouco mais de
uma semana, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva,
declarava ao DN: “Portugal revê-se no acordo [sobre o Estado de direito] a que
os líderes europeus chegaram em julho e, portanto, esse é o compromisso de que
devemos partir. A Hungria e a Polónia devem evoluir na sua posição. Não é
aceitável que dois Estados-membros queiram colocar como reféns todos os
restantes. Na nossa opinião, não há razão para que a Polónia e a Hungria
persistam nesta sua posição, que é incompreensível e insustentável.”
Muito bem. Mas
poucos dias antes desse acordo de julho, o mais que sabíamos era o que o
primeiro-ministro António Costa tinha revelado numa troca de crónicas comigo,
na qual dizia uma coisa diferente: “Quem não partilha ou ameaça os valores da
UE deve sair ou sofrer as sanções previstas no tratado e não poder comprar com
cortes orçamentais a violação desses valores.”
E agora, uma
investigação de Paulo Pena e do consórcio de jornalistas Investigate Europe vem
dizer-nos que em maio de 2018, segundo as atas que a representação alemã
redigiu de uma reunião do Conselho, o Governo português terá sido “muito
crítico” do mecanismo de Estado de direito então em discussão, o que parece ser
corroborado por declarações do ex-MNE polaco, que diz que nessa época Portugal
“jogou do nosso lado”. A ser verdade, o Governo português teria assim sido um
dos que não possibilitou que este assunto ficasse fechado logo em 2018 — numa
época em que Hungria e Polónia não tinham um orçamento ou um fundo da
recuperação da UE para vetar. O arrastar de pés do Conselho, que já vinha desde
2010, deu no que deu — e agora estamos numa situação em que a UE pode ser chantageada
por governos autocráticos.
Esse arrastar de
pés tem muitos culpados, e é aliás especialmente escandaloso ver partidos e
políticos que colaboram ativamente com o Fidesz de Orbán no grupo parlamentar
do PPE, como o CDS e o PSD, partilhando cargos na direção do mesmo, como Paulo
Rangel, gritarem seletivamente hipocrisia quando foram cúmplices no agravamento
deste problema durante uma década. Mas como a hipocrisia anda bem distribuída,
é também extraordinário ver membros do Governo insistir na ideia de que se a
Hungria e a Polónia não respeitam o Estado de direito, então “deveriam sair da
UE” (como se não soubessem que é impossível, segundo os tratados, expulsar um
Estado-membro) ou alegar que já existe um mecanismo sancionatório para estes
casos nos tratados, o Artigo 7.º, como se ignorassem que este artigo se
encontra inviabilizado pelo veto cruzado de que Hungria e Polónia dispõem no
Conselho.
Mas há mais.
Dentro de dois meses vamos ter eleições presidenciais — ocasião ideal para
saber qual é a posição de Portugal sobre este tema. Pois bem, à exceção de Ana
Gomes (a bem da transparência: a candidata que apoio e em quem vou votar, entre
outras razões por esta mesma), que há anos é clara sobre a necessidade de um
mecanismo do género daquele que está agora em discussão, não sabemos o que
pensa Marcelo Rebelo de Sousa sobre o assunto, Marisa Matias absteve-se no voto
correspondente no Parlamento Europeu, e João Ferreira diz que é contra mas não
foi votar.
Lanço um desafio
aos nossos deputados: se querem tomar uma decisão que dependa apenas de vocês,
e que nem sequer vincula o Estado de direito a fundos comunitários, recomendem
ao Governo que processe a Hungria e a Polónia no Tribunal de Justiça da UE por
violação dos valores fundamentais da UE. Aí se verá quem leva o Estado de
direito a sério ou não
Urge, então,
responder à pergunta acima. E é na Assembleia da República que ela deve se
respondida. Se não gostam do mecanismo que está em cima da mesa, propostas
alternativas não faltam, como sabe quem lê esta coluna (exemplos: a criação da
“Comissão de Copenhaga” de respeito pelos Valores da União ou a introdução de
um procedimento comunitário de alarme pela violação dos mesmos). Portugal está
a um mês de assumir a presidência da UE e é absurdo que a AR passe ao largo
deste tema.
Até lanço um
desafio aos nossos deputados. Se querem tomar uma decisão que dependa apenas de
vocês, e que nem sequer vincula o Estado de direito a fundos comunitários,
votem uma resolução propondo usar o artigo 259 do Tratado de Funcionamento da
UE, segundo o qual “qualquer Estado-membro pode recorrer ao Tribunal de Justiça
da União Europeia, se considerar que outro Estado-membro não cumpriu qualquer
das obrigações que lhe incumbem por força dos Tratados”. Ou seja: recomendem ao
Governo que processe a Hungria e a Polónia no Tribunal de Justiça da UE por
violação dos valores fundamentais da UE. Aí se verá quem leva o Estado de
direito a sério ou não. E Portugal entrará nesta história, finalmente,
pelas melhores razões.
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