Manuel Carvalho
EDITORIAL
O espectro do populismo a pairar sobre a presidência
portuguesa
Não se pode aceitar que a Hungria ou a Polónia beneficiem
das vantagens da Europa, ao mesmo tempo que se dedicam a minar os seus
alicerces.
23 de Novembro de
2020, 21:21
No dia em que o
primeiro-ministro desvendou as ambições da presidência portuguesa da União
Europeia, soube-se de uma carta do seu homólogo esloveno a apoiar as ameaças de
veto da Hungria e da Polónia ao Programa de Recuperação e Resiliência, caso o
Conselho Europeu persista na exigência do cumprimento das normas do Estado de
direito. A carta de Janez Jansa é eloquente sobre os perigos que a direita
populista faz pairar sobre a democracia europeia – perigos que, curiosamente,
os receosos do regresso do “espectro do comunismo” à Europa teimam em não ver,
apesar de se ter tornado um arcaísmo da História.
Para o
primeiro-ministro esloveno, um corpo político como o Conselho não tem de se
imiscuir nos assuntos internos de um Estado-membro. Só um tribunal, acrescenta,
tem essa legitimidade. Como se o Tribunal de Justiça europeu não tivesse já
condenado a política da Hungria para os refugiados ou a reforma do ensino
superior talhada para encerrar uma universidade de George Soros. A Eslovénia
não se juntou aos húngaros e polacos na ameaça de veto, mas a carta do seu
primeiro-ministro é a prova de que o vírus da democracia iliberal continua a
crescer perante a falta de determinação da Europa.
Perante esta
ameaça, esperava-se de António Costa uma posição clarificadora sobre a posição
da presidência portuguesa. Que nos dissesse em que lado da barricada se coloca
– dos que tergiversam ou dos que acreditam que chegámos ao momento de barrar de
vez as veleidades populistas, iliberais e violadoras do Estado de direito. Uma
vez mais, porém, o primeiro-ministro não se afastou da frieza da diplomacia.
Mas lá foi abrindo o jogo: se, em Julho, depois de visitar Viktor Orbán em
Budapeste, se limitou a exibir o seu anódino optimismo, ontem mostrou ao menos
outro caminho que não o de empurrar o problema com a barriga: se a Hungria e a
Polónia persistirem no veto e recusarem os “valores fundamentais” da Europa, a
União poderá avançar com o fundo de recuperação e o quadro financeiro
plurianual numa lógica de “cooperação reforçada”.
Uma decisão
destas, em que uns avançam e outros ficam para trás (como Rui Tavares já
defendera na sua coluna), porá a Europa sob uma enorme tensão. Mas já se
percebeu que mais vale um confronto clarificador do que uma apatia que empesta
o continente. Não se pode aceitar que a Hungria ou a Polónia beneficiem das
vantagens da Europa, ao mesmo tempo que se dedicam a minar os seus alicerces.
Espera-se assim que o Conselho não ceda nos seus propósitos e que, se a
presidência alemã não concluir a negociação, que a presidência portuguesa a
leve até às últimas consequências.
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