CRÓNICA ELEIÇÕES
EUA 2020
O “golpe” amador de Donald Trump
JORGE ALMEIDA
FERNANDES
28 de Novembro de
2020, 7:00
https://www.publico.pt/2020/11/28/mundo/cronica/golpe-amador-donald-trump-1940992
Um dia,
historiadores e jornalistas narrarão o que se passou nos Estados Unidos nas
três últimas e dramáticas semanas, que significaram um dos maiores desafios ao
sistema constitucional americano. Uma vez mais, as instituições resistiram. Se
a simples vitória eleitoral de Donald Trump teria efeitos nocivos, a
falsificação do processo eleitoral, pondo em causa as regras democráticas,
teria implicações devastadoras.
Três semanas após
o voto popular, Trump rende-se à realidade e aceita a transição do poder.
Poderá ainda fazer estragos. Se a sua derrota está consumada, permanecem
inquietações sobre o futuro.
“De momento, o
país parece ter evitado um ruinoso colapso do seu sistema eleitoral”, escreve
no New York Times o jornalista Alexander Burns. “Da próxima vez, não é certo
que volte a ter sorte.” Apesar de Trump ter falhado na “missão de subverter a
eleição, expôs as profundas fendas no edifício da democracia americana e abriu
caminho a uma futura disrupção ou desastre”. Revelou um grande amadorismo mas
“conseguiu congelar a transição durante quase um mês, perante a submissa
indulgência dos republicanos e o medo e a frustração dos democratas.”
A crise teve dois
tempos. Antes das eleições, Trump tratou de desqualificar o processo eleitoral
falando na “maior fraude da história americana”. O objectivo primário era
reduzir ou anular o voto por correspondência, que se previa muito grande em
tempo de pandemia. Trump sabia que uma elevada afluência às urnas o
desfavorecia. A sua sorte foi selada com a maciça participação eleitoral, a
mais alta de sempre e num clima exemplarmente calmo.
A sombra golpista
Trump, como fora
anunciado, tinha outra carta na manga. Ainda antes do fim da contagem dos
votos, proclamou-se vencedor e denunciou, uma vez mais, a “burla eleitoral”.
Não reconhece a vitória do adversário. Começa aqui o capítulo mais grave: o
Presidente tenta evitar a certificação dos resultados em estados ganhos por Joe
Biden, de forma a mudar a composição do colégio eleitoral. Isto significa, de
facto, uma invalidação do voto popular.
O esquema
funcionaria assim: os delegados republicanos recusariam validar os resultados,
criando um impasse e passando a decisão para as assembleias estaduais: as de
maioria republicana indicariam delegados pró-Trump no colégio eleitoral.
Abrir-se-ia uma crise constitucional que, em última análise, seria arbitrada no
Supremo Tribunal, onde Trump crê ter vantagem na relação de forças.
Há duas
interpretações. Na hipótese “benigna”, trata-se de uma manobra estratégica de
Trump para começar a reunir as condições para a reconquista da Casa Branca em
2024. O objectivo seria consolidar a sua base eleitoral e garantir o controlo
do Partido Republicano. Ao mesmo tempo, reafirmaria a ilegitimidade da próxima
Administração Biden preparando-se para boicotar a sua acção por todos os meios.
No campo
republicano, Trump dispõe de uma arma: a intimidação. Em 2016, conseguiu lançar
uma “OPA hostil” sobre o partido. Foi escolhido contra o establishment
republicano. Passou a controlar pessoalmente o seu eleitorado e, dispondo de um
núcleo de incondicionais fanatizados, tornou-se no árbitro das primárias: é
difícil um candidato republicano obter uma investidura contra Trump.
Representantes, senadores e governadores perceberam e tornaram-se obedientes.
No entanto, Trump
levou os seus esforços longe demais. No caso do Michigan chegou a convocar para
a Casa Branca os dois representantes republicanos numa comissão paritária de
certificação. Eles não cederam ao apelo do presidente: “Flip Michigan back to
TRUMP” (Devolvam o Michigan a TRUMP). As pressões exercidas sobre os
republicanos de outros estados, como a Pensilvânia ou a Georgia, foram rejeitadas
por responsáveis republicanos. O secretário de estado da Georgia, Brad
Raffensperger, mostrou mais seriedade e coragem do que os senadores do seu
partido. De resto, o “golpe” de Trump foi neutralizado pelos juízes dos estados
em disputa.
O mais proeminente
especialista republicano nas leis eleitorais, Ben Ginsberg, espantou os
analistas ao denunciar Trump. “Dentro de alguns meses olharemos para trás e
veremos que a estratégia de Trump era um extremo fracasso, que provavelmente
não será copiado. Mas nunca o sistema foi submetido a um tal teste de stress.”
Correntemente, a
palavra “golpe” é associada a militares. Em Junho, Trump cometeu o erro de
tentar utilizar o Exército nas cidades americanas durante os protestos do Black
Lives Matter. O secretário das Defesa,
Mark Esper, acabou por recuar, sob pressão dos generais. As Forças Armadas
americanas têm uma enraizada cultura civilista: não intervêm em política
interna.
Na altura, saíram
a terreiro figuras como o almirante Mike Mullen, ex-chefe do Estado-Maior
Interarmas, ou o general James Mattis, ex-secretário da Defesa do governo
Trump, denunciando a tentativa de manipulação política dos militares e a ameaça
de os utilizar nas ruas das cidades: “Não posso permanecer em silêncio”,
escreveu Mike Mullen, na Atlantic. O chefe do Estado-Maior Interarmas, general
Mark Milley, enviou uma directiva a todos os comandos militares sobre a
fidelidade à Constituição.
É uma inédita
iniciativa, que desafia as interpretações. E, para complicar as coisas, os
generais não se calaram. Há dias, enquanto Trump procedia a uma “purga” no
Pentágono, instalando homens da sua confiança pessoal, o general Milley
aproveitava uma cerimónia no Museu Militar para lançar uma mensagem: “Nós
jurámos perante a Constituição. Não jurámos perante nenhum rei ou rainha, um
tirano ou um ditador.” O que é que o general está a visar?
Os “homens
fortes”
“Quanto ao que
está a acontecer agora, penso que é um verdadeiro ataque ao sistema democrático
americano e que está a causar que milhões de americanos duvidem do resultado
[eleitoral], diz ao New York Times Barbara Pariente, antiga juíza do supremo
tribunal da Florida.
É este o mais
explosivo legado de Donald Trump. Muito mais significativos do que os 74
milhões de votos que teve – um extraordinário resultado – é outro dado: quatro
em cinco eleitores republicanos crêem que houve irregularidade nas eleições.
Comenta Paul
Kolb, antigo alto funcionário da CIA: “O tipo de sementes que (Trump) plantou,
o tipo de extremismo que estimulou e a rejeição do processo constitucional vão
persistir durante muito tempo.” Cabe a Joe Biden desarmadilhar esta potencial
bomba-relógio.
E Donald Trump? A
historiadora Ruth Ben-Ghiat, estudiosa dos autoritarismos, explica ao Harvard
Daily Gazette: “É difícil depor um homem forte, mas quando ele perde o poder
sente ‘uma aniquilação psicológica’. Não se consegue imaginar fora do poder. É
muito destrutivo.”
Por sorte,
revelou-se um amador.
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