segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Bernardo Alabaça: “Não defendo, de todo, que se parta a Direcção-Geral do Património Cultural”

 



Bernardo Alabaça: “Não defendo, de todo, que se parta a Direcção-Geral do Património Cultural”

 

O director-geral do Património Cultural chefia uma casa grande, pesada, que precisa de outra orgânica, admite, recusando porém voltar a separar os museus do património arquitectónico ou da arqueologia. E quer criar uma carreira especial para dar valor a quem trabalha no património.

 

Isabel Salema e Lucinda Canelas 21 de Novembro de 2020, 7:45

https://www.publico.pt/2020/11/21/culturaipsilon/entrevista/bernardo-alabaca-nao-defendo-parta-direccaogeral-patrimonio-cultural-1940014

 

É director-geral do Património desde Fevereiro. Licenciado em Engenharia e Gestão Industrial, com um currículo que passou pela Defesa e pelas Finanças, mas também pelo imobiliário no sector privado, a sua nomeação foi recebida com reservas no meio cultural, situação que acredita estar já ultrapassada. Aos 47 anos, Bernardo Alabaça admite que o organismo que chefia atravessa uma situação difícil que não se deve, apenas, à pandemia de covid-19.

 

“O cenário é já de perda, não há volta a dar, e leva-nos a questionar se estamos a cumprir a nossa missão. E eu diria que, em certa medida, não estamos”, afirma este director-geral que tem em mãos vários dossiers sensíveis, entre eles o da musealização dos vestígios arqueológicos da Sé de Lisboa. “Não se devia ter começado o projecto de arquitectura sem escavar tudo o que havia para escavar”, reconhece. “O que posso garantir é que não vai haver uma submissão da salvaguarda do património ao projecto de arquitectura.”

 

Pragmático, diz-se especialmente preocupado com a questão dos recursos humanos — a Direcção-Geral do Património cultural (DGPC) vai perder 40% dos seus funcionários nos próximos anos sem que possa desenhar um plano para resolver o problema — e propõe a criação de uma carreira de especialista em património cultural para tornar mais competitivo aquele que é o maior organismo da Cultura.

 

Obrigado a lidar com uma quebra de 70% na receita própria, o director-geral assegura que o funcionamento da casa não está em causa: “A falência da DGPC seria a falência do Estado.”

 

Disse, em Setembro, que os resultados da DGPC no primeiro semestre apontavam para uma quebra de receitas de 70%. De quanto é neste momento?

Continua nos 70%. Em igual período do ano passado tínhamos 18 milhões de euros de receitas e hoje temos 4,7, que, no essencial, resultam de Janeiro e Fevereiro, meses pré-covid.

 

Feitas as contas, parece-nos que a DGPC, que tem boa parte do seu orçamento dependente da receita própria, está falida, mas o Governo já disse que não é bem assim. O aumento de 17% previsto para 2021 é suficiente?

A DGPC tem honrado os seus compromissos porque tem havido um trabalho de articulação, complexo, da tutela junto do Ministério das Finanças para que vá libertando as verbas necessárias. Estando a DGPC integrada na Administração Central, a falência da DGPC seria a falência do Estado.

 

"O cenário é já de perda, não há volta a dar, e leva-nos a questionar se estamos a cumprir a nossa missão. E eu diria que, em certa medida, não estamos."

Sendo as quebras tão acentuadas, não será pouco realista a estimativa de receita própria da DGPC que consta do Orçamento do Estado (OE) de 2021 — 28 milhões de euros?

Para 2020 temos 27 milhões previstos….

 

E, em meados de Novembro, estão nos 4,7…

Certo. E apesar disso estamos a funcionar. A questão dos 28 milhões de euros é um exercício orçamental. Está em linha com as previsões macroeconómicas do OE.

 

Portanto, está tranquilo em relação ao funcionamento da casa?

Não me passa pela cabeça que não venha a haver recursos para funcionarmos como deve ser.

 

Na Ajuda, as obras do museu das jóias continuam. Sabemos que a equipa do palácio gostaria de expor peças que estão noutros locais — o Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA) e o Paço de Vila Viçosa, que é privado. Concorda com esta possível transferência de peças?

A recomposição de colecções é uma coisa natural, mas a definição do Museu do Tesouro Real ainda está em curso.

 

Porque as negociações são difíceis?

A primeira coisa que se deveria ter definido era que peças o museu iria ter, respondendo, depois, a arquitectura e a museografia ao que se pretendia mostrar e à mensagem a transmitir. Como o processo foi invertido, ainda está em curso. Não é só uma questão de negociações. Isto é um museu nacional e há uma obrigação de dispormos das colecções no sentido de melhor compormos aquilo que se pretende transmitir.

 

No caso do MNAA estariam a sair peças de um museu nacional para outro museu nacional… É por princípio que não se opõe a uma eventual transferência?

Não me oponho, mas essa recomposição de colecções não pode ser feita com sacrifício da identidade dos vários equipamentos, sob pena de estarmos a construir um à custa de uma desvalorização significativa de outros.

 

Fala-se de peças da Baixela Germain que sairiam do MNAA, de um trono de Vila Viçosa… Isso não abrirá um precedente nos museus portugueses?

Volto a dizer que é um assunto que não está fechado. Seria prematuro falar.

 

Falemos, então, de outro assunto em curso. Num momento em que se procura dar cada vez mais espaço ao diálogo ecuménico, a DGPC pareceu, a dada altura, não querer tirar todo o partido do que a arqueologia terá descoberto na Sé de Lisboa — um templo muçulmano dentro de um templo cristão. Como é que se explica que não tenha percebido logo o potencial daqueles vestígios?

Não se devia ter começado o projecto de arquitectura sem escavar tudo o que havia para escavar. Quando se facilitou [para que escavação e construção decorressem ao mesmo tempo], a intenção era boa: concluir rapidamente, respeitar o processo de fundos comunitários, cumprir os timings e as condicionantes. É preciso perceber que estamos perante um projecto que visa a salvaguarda e a musealização de estruturas arqueológicas, não é um Foz Côa…

 

O que é que isso quer dizer?

Que não é um processo contra o património, que não estamos a trocar a arqueologia por uma barragem. A equipa de arqueólogos desta casa que faz aquela escavação participou no projecto de arquitectura e considerou que havia poucas probabilidades de se encontrar mais alguma coisa. Foram, por isso, projectadas para ali uma série de estruturas. O que se procurou fazer foi ir ajustando o projecto [de arquitectura] às estruturas arqueológicas que se iam descobrindo dentro das condicionantes que tínhamos. Posso dizer que os trabalhos arqueológicos naquela área – que não se previam – provocaram um atraso na obra, uma intervenção de quatro milhões de euros… O empreiteiro reclama agora mais três milhões de euros só devido aos atrasos até este momento.

 

Vão pagar?

Vamos contestar.

 

A ministra da Cultura decidiu, com o Cabido da Sé, e já depois de a DGPC ter mandado suspender os trabalhos para que o Conselho Nacional de Cultura (CNC) se pronunciasse, que os vestígios iam ficar. A decisão política antecipou a decisão técnica. Sentiu-se desautorizado?

Houve uma antecipação política daquilo que poderia ter sido o resultado técnico. A questão que agora se coloca é como é que a salvaguarda se vai fazer. E aí compete ao conselho pronunciar-se. Determinar a melhor solução também é muito importante. E não me sinto ultrapassado porque o assunto, nesse momento, já não competia à direcção-geral.

 

Provocaram a decisão política porque estavam aflitos?

Não, mas não posso dizer que não tenha sido a intervenção pública a chamar a atenção para o assunto e a levar-nos a um ponto diferente.

 

Ainda assim, insistimos, foi tomada uma decisão, num caso que seria à partida evidentemente sensível, sem consultar o CNC. Por que é que isso aconteceu?

Não posso dizer porque não estava cá. A avaliação foi feita em 2019.

 

Que avaliação faz, então, do potencial destes vestígios islâmicos?

Não ponho em causa a sua importância, reforçada pelo sítio onde foram descobertos.

 

O que podemos esperar, agora, da musealização da mesquita na Sé?

Estão a ser realizados estudos de arquitectura, mas eles vão apoiar-se nos pareceres dos arqueólogos que, entretanto, foram consultados.

 

E quando é que esse processo estará terminado?

Não sei dizer. Esperamos receber os pareceres dos especialistas — e aí inclui-se o do Laboratório Nacional de Engenharia Civil — até ao final deste mês, princípio do próximo. Só aí haverá condições para que a equipa projectista se debruce sobre as alternativas. Nós não estamos a olhar para uma tela em branco. Estamos na fase de conclusão de uma obra, com muita coisa já edificada. O que posso garantir é que não vai haver uma submissão da salvaguarda do património ao projecto de arquitectura.

 

"O quadro geral é complicado, não o escondo, e não vou refugiar-me na covid. A pandemia veio exacerbar algumas das situações, o que não quer dizer que, estruturalmente, não fossem já más."

E isso era que estava a acontecer?

Não faço comentários.

 

Como estão os concursos para os directores dos museus e monumentos?

Estão a ser agendadas as primeiras entrevistas. Poderá haver resultados finais no início do próximo ano.

 

Acaba de abrir o concurso para o Museu de Peniche. É um museu novo com um programa ambicioso, que contará com um orçamento na ordem dos 300 mil euros, quando o Soares dos Reis, por exemplo, tem quase dois milhões. Como é que se estimou Peniche?

Todos os orçamentos vão ter de ser revisitados. No caso de Peniche a referência é uma exposição temporária com um quadro de pessoal reduzido. Vai ter de ser revisto em função do que venha a ser o museu.

 

Há tanta coisa para revisitar na DGPC… Parece dramático o futuro nesta casa.

É um desafio [pausa]. O quadro geral é complicado, não o escondo, e não vou refugiar-me na covid. A pandemia veio exacerbar algumas das situações, o que não quer dizer que, estruturalmente, não fossem já más. Basta pensar que não temos recursos humanos, que vamos perder 40% da casa nos próximos anos e que eu não tenho, porque não depende de mim, um plano para resolver o problema. Eu devia estar a meter pessoas antes para haver transmissão de conhecimento. O cenário é já de perda, não há volta a dar, e leva-nos a questionar se estamos a cumprir a nossa missão. E eu diria que, em certa medida, não estamos.

 

Qual vai ser o impacto do Plano de Recuperação e Resiliência na elaboração de um programa especial de recuperação de património?

A própria tutela já está a desenhá-lo. Mas, por questões políticas na União Europeia, parece que o Programa de Resiliência está em vias de ser relativamente atrasado. Se me dissessem que tinha dez milhões para gastar em intervenções e só um ano não conseguia. Não é ao estalar de dedos que uma intervenção destas se faz.

 

Mas a casa tem equipas técnicas. É sempre essencialmente um problema de recursos humanos?

Corre-se muitas vezes o risco de não ter execução por não termos os processos devidamente instruídos para se arrancar com as obras quando há essa disponibilidade financeira. Somos cerca de 850 pessoas e nos próximos quatro anos vamos perder 370. A regra da substituição de saem dois e entra um não é automaticamente aplicada e os serviços públicos recrutam essencialmente por mobilidade interna. Já o recrutamento externo carece de autorização de outros ministérios

 

Ainda assim há concursos para vigilantes ou juristas que ficam sem candidatos.

Temos um problema de atractividade. Não temos carreiras especiais, por isso há um problema de valorização dos especialistas. Somos confrontados no dia-a-dia com dificuldades de reter as melhores pessoas, porque há uma diversidade brutal de entidades públicas que nos vem buscar recursos. Criar uma carreira especial fazia todo o sentido. É uma questão determinante, tal como foi em dado momento na Direcção-Geral do Orçamento e na Direcção-Geral do Tesouro e Finanças porque, não a tendo, os técnicos saíam.

 

Como é que se chamaria essa carreira?

Especialista em património cultural.

 

Está em cima da mesa?

Vou propô-la para aumentar a atractividade e promover o reconhecimento de um domínio de especialidade e conhecimento ganho por quem se dedica há décadas a estas áreas. Também vou propor uma alteração orgânica da DGPC.

 

Desde que se instituiu a DGPC, no âmbito do PRACE, que se diz que este modelo não serve.

O PRACE e o PREMAC foram gizados não para reorganizar a administração pública mas para cortar dirigentes. Passei por isso e sei do que falo. Houve cortes que promoveram uma reorganização à custa da fusão e perdeu-se capacidade de coordenação. Dou um exemplo óbvio: como é possível que numa casa com estas responsabilidades, com a diversidade de situações legais a que tem de responder, não haja um gabinete jurídico? Não há.

 

Estamos também a falar do regresso do antigo Instituto Português de Museus (IPM)?

Não defendo, de todo, que se parta a DGPC. O modelo tem grandes vantagens ao concentrar os serviços centrais e os dependentes por especialidade e ao reunir, também, a componente laboratorial. Não defendo o regresso ao IPM, como não defendo o regresso ao Igespar [Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico]. A máquina é pesada, mas também há um problema de identidade porque nem todas as pessoas que aqui trabalham se reconhecem na DGPC, mas antes nos organismos que lhe deram origem. Conto propor no início do ano a nova orgânica. Temos aqui departamentos que são gigantes e cuja coordenação se torna quase impossível.

 

Quais são?

Temos dois laboratórios, o CNANS [Centro Nacional de Arqueologia Náutica e Subaquática] o Larc [Laboratório de Arqueociências], que nem unidades orgânicas são e, por isso, não posso ter um dirigente a coordená-los. Acho que está tudo dito. A melhor solução é reunir os laboratórios numa unidade tipo departamento e equipará-la em termos de autonomia a um museu, monumento ou palácio. São quatro: José de Figueiredo, SIPA [Sistema de Informação para o Património Arquitectónico], CNANS e Larc.

 

Isso é a base da tal carreira de especialista de património cultural ou é mais alargada?

Tem de ser mais alargado do que isso. Não posso conceber que quem está na salvaguarda do património e tem de lidar com 1,5 processos de licenciamento por dia – o número cresceu cerca de 80% desde 2013 a 2019 [por causa do imobiliário] — não esteja incluído.

 

A DGPC está a inventariar as colecções do antigo BES e da fundação Ellipse, ligada ao extinto BPP?

Temos a responsabilidade de inventariar todas as colecções do Estado.

 

Essa inventariação está em que fase, para que não se saiba ainda para onde vão estes acervos?

São questões distintas, a inventariação e o destino das colecções. Assim que o Estado recebe essas colecções elas são inventariadas e, por isso, diria que está concluída. Agora se esse inventário é completamente coerente é outra questão.

 

"O que posso garantir é que, na Sé de Lisboa, não vai haver uma submissão da salvaguarda do património ao projecto de arquitectura."

Está terminado?

Não sei dizer se está completo.

 

Quando haverá um destino para ambas?

Não sei.

 

Com a saída de Fátima Marques Pereira tem menos um subdirector-geral. Quando será substituída?

Não há ainda indicação de substituto. É uma situação que muito possivelmente se vai resolver em Dezembro.

 

A sua nomeação como director-geral do Património foi recebida com algumas reservas, sobretudo pelas suas ligações ao imobiliário e à gestão do património do Estado. Achou injusto?

Essa questão está ultrapassada. Em sede de audição parlamentar defendi o currículo e as competências.

 

tp.ocilbup@amelas.lebasi

tp.ocilbup@salenacl

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