Bernardo Alabaça: “Não defendo, de todo, que se parta a
Direcção-Geral do Património Cultural”
O director-geral do Património Cultural chefia uma casa
grande, pesada, que precisa de outra orgânica, admite, recusando porém voltar a
separar os museus do património arquitectónico ou da arqueologia. E quer criar
uma carreira especial para dar valor a quem trabalha no património.
Isabel Salema e
Lucinda Canelas 21 de Novembro de 2020, 7:45
É director-geral
do Património desde Fevereiro. Licenciado em Engenharia e Gestão Industrial,
com um currículo que passou pela Defesa e pelas Finanças, mas também pelo
imobiliário no sector privado, a sua nomeação foi recebida com reservas no meio
cultural, situação que acredita estar já ultrapassada. Aos 47 anos, Bernardo
Alabaça admite que o organismo que chefia atravessa uma situação difícil que
não se deve, apenas, à pandemia de covid-19.
“O cenário é já
de perda, não há volta a dar, e leva-nos a questionar se estamos a cumprir a
nossa missão. E eu diria que, em certa medida, não estamos”, afirma este
director-geral que tem em mãos vários dossiers sensíveis, entre eles o da
musealização dos vestígios arqueológicos da Sé de Lisboa. “Não se devia ter
começado o projecto de arquitectura sem escavar tudo o que havia para escavar”,
reconhece. “O que posso garantir é que não vai haver uma submissão da
salvaguarda do património ao projecto de arquitectura.”
Pragmático,
diz-se especialmente preocupado com a questão dos recursos humanos — a
Direcção-Geral do Património cultural (DGPC) vai perder 40% dos seus
funcionários nos próximos anos sem que possa desenhar um plano para resolver o
problema — e propõe a criação de uma carreira de especialista em património
cultural para tornar mais competitivo aquele que é o maior organismo da
Cultura.
Obrigado a lidar
com uma quebra de 70% na receita própria, o director-geral assegura que o
funcionamento da casa não está em causa: “A falência da DGPC seria a falência
do Estado.”
Disse, em
Setembro, que os resultados da DGPC no primeiro semestre apontavam para uma
quebra de receitas de 70%. De quanto é neste momento?
Continua nos 70%.
Em igual período do ano passado tínhamos 18 milhões de euros de receitas e hoje
temos 4,7, que, no essencial, resultam de Janeiro e Fevereiro, meses pré-covid.
Feitas as contas,
parece-nos que a DGPC, que tem boa parte do seu orçamento dependente da receita
própria, está falida, mas o Governo já disse que não é bem assim. O aumento de
17% previsto para 2021 é suficiente?
A DGPC tem
honrado os seus compromissos porque tem havido um trabalho de articulação, complexo,
da tutela junto do Ministério das Finanças para que vá libertando as verbas
necessárias. Estando a DGPC integrada na Administração Central, a falência da
DGPC seria a falência do Estado.
"O cenário é
já de perda, não há volta a dar, e leva-nos a questionar se estamos a cumprir a
nossa missão. E eu diria que, em certa medida, não estamos."
Sendo as quebras
tão acentuadas, não será pouco realista a estimativa de receita própria da DGPC
que consta do Orçamento do Estado (OE) de 2021 — 28 milhões de euros?
Para 2020 temos
27 milhões previstos….
E, em meados de
Novembro, estão nos 4,7…
Certo. E apesar
disso estamos a funcionar. A questão dos 28 milhões de euros é um exercício
orçamental. Está em linha com as previsões macroeconómicas do OE.
Portanto, está
tranquilo em relação ao funcionamento da casa?
Não me passa pela
cabeça que não venha a haver recursos para funcionarmos como deve ser.
Na Ajuda, as
obras do museu das jóias continuam. Sabemos que a equipa do palácio gostaria de
expor peças que estão noutros locais — o Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA) e
o Paço de Vila Viçosa, que é privado. Concorda com esta possível transferência
de peças?
A recomposição de
colecções é uma coisa natural, mas a definição do Museu do Tesouro Real ainda
está em curso.
Porque as
negociações são difíceis?
A primeira coisa
que se deveria ter definido era que peças o museu iria ter, respondendo,
depois, a arquitectura e a museografia ao que se pretendia mostrar e à mensagem
a transmitir. Como o processo foi invertido, ainda está em curso. Não é só uma
questão de negociações. Isto é um museu nacional e há uma obrigação de
dispormos das colecções no sentido de melhor compormos aquilo que se pretende
transmitir.
No caso do MNAA
estariam a sair peças de um museu nacional para outro museu nacional… É por
princípio que não se opõe a uma eventual transferência?
Não me oponho,
mas essa recomposição de colecções não pode ser feita com sacrifício da
identidade dos vários equipamentos, sob pena de estarmos a construir um à custa
de uma desvalorização significativa de outros.
Fala-se de peças
da Baixela Germain que sairiam do MNAA, de um trono de Vila Viçosa… Isso não
abrirá um precedente nos museus portugueses?
Volto a dizer que
é um assunto que não está fechado. Seria prematuro falar.
Falemos, então,
de outro assunto em curso. Num momento em que se procura dar cada vez mais
espaço ao diálogo ecuménico, a DGPC pareceu, a dada altura, não querer tirar
todo o partido do que a arqueologia terá descoberto na Sé de Lisboa — um templo
muçulmano dentro de um templo cristão. Como é que se explica que não tenha
percebido logo o potencial daqueles vestígios?
Não se devia ter
começado o projecto de arquitectura sem escavar tudo o que havia para escavar.
Quando se facilitou [para que escavação e construção decorressem ao mesmo
tempo], a intenção era boa: concluir rapidamente, respeitar o processo de
fundos comunitários, cumprir os timings e as condicionantes. É preciso perceber
que estamos perante um projecto que visa a salvaguarda e a musealização de estruturas
arqueológicas, não é um Foz Côa…
O que é que isso
quer dizer?
Que não é um
processo contra o património, que não estamos a trocar a arqueologia por uma
barragem. A equipa de arqueólogos desta casa que faz aquela escavação
participou no projecto de arquitectura e considerou que havia poucas
probabilidades de se encontrar mais alguma coisa. Foram, por isso, projectadas
para ali uma série de estruturas. O que se procurou fazer foi ir ajustando o
projecto [de arquitectura] às estruturas arqueológicas que se iam descobrindo
dentro das condicionantes que tínhamos. Posso dizer que os trabalhos
arqueológicos naquela área – que não se previam – provocaram um atraso na obra,
uma intervenção de quatro milhões de euros… O empreiteiro reclama agora mais
três milhões de euros só devido aos atrasos até este momento.
Vão pagar?
Vamos contestar.
A ministra da
Cultura decidiu, com o Cabido da Sé, e já depois de a DGPC ter mandado
suspender os trabalhos para que o Conselho Nacional de Cultura (CNC) se
pronunciasse, que os vestígios iam ficar. A decisão política antecipou a
decisão técnica. Sentiu-se desautorizado?
Houve uma
antecipação política daquilo que poderia ter sido o resultado técnico. A
questão que agora se coloca é como é que a salvaguarda se vai fazer. E aí
compete ao conselho pronunciar-se. Determinar a melhor solução também é muito
importante. E não me sinto ultrapassado porque o assunto, nesse momento, já não
competia à direcção-geral.
Provocaram a
decisão política porque estavam aflitos?
Não, mas não
posso dizer que não tenha sido a intervenção pública a chamar a atenção para o
assunto e a levar-nos a um ponto diferente.
Ainda assim,
insistimos, foi tomada uma decisão, num caso que seria à partida evidentemente
sensível, sem consultar o CNC. Por que é que isso aconteceu?
Não posso dizer
porque não estava cá. A avaliação foi feita em 2019.
Que avaliação
faz, então, do potencial destes vestígios islâmicos?
Não ponho em
causa a sua importância, reforçada pelo sítio onde foram descobertos.
O que podemos
esperar, agora, da musealização da mesquita na Sé?
Estão a ser
realizados estudos de arquitectura, mas eles vão apoiar-se nos pareceres dos
arqueólogos que, entretanto, foram consultados.
E quando é que
esse processo estará terminado?
Não sei dizer.
Esperamos receber os pareceres dos especialistas — e aí inclui-se o do
Laboratório Nacional de Engenharia Civil — até ao final deste mês, princípio do
próximo. Só aí haverá condições para que a equipa projectista se debruce sobre
as alternativas. Nós não estamos a olhar para uma tela em branco. Estamos na
fase de conclusão de uma obra, com muita coisa já edificada. O que posso
garantir é que não vai haver uma submissão da salvaguarda do património ao
projecto de arquitectura.
"O quadro
geral é complicado, não o escondo, e não vou refugiar-me na covid. A pandemia
veio exacerbar algumas das situações, o que não quer dizer que,
estruturalmente, não fossem já más."
E isso era que
estava a acontecer?
Não faço
comentários.
Como estão os
concursos para os directores dos museus e monumentos?
Estão a ser
agendadas as primeiras entrevistas. Poderá haver resultados finais no início do
próximo ano.
Acaba de abrir o
concurso para o Museu de Peniche. É um museu novo com um programa ambicioso,
que contará com um orçamento na ordem dos 300 mil euros, quando o Soares dos
Reis, por exemplo, tem quase dois milhões. Como é que se estimou Peniche?
Todos os orçamentos
vão ter de ser revisitados. No caso de Peniche a referência é uma exposição
temporária com um quadro de pessoal reduzido. Vai ter de ser revisto em função
do que venha a ser o museu.
Há tanta coisa
para revisitar na DGPC… Parece dramático o futuro nesta casa.
É um desafio
[pausa]. O quadro geral é complicado, não o escondo, e não vou refugiar-me na
covid. A pandemia veio exacerbar algumas das situações, o que não quer dizer
que, estruturalmente, não fossem já más. Basta pensar que não temos recursos
humanos, que vamos perder 40% da casa nos próximos anos e que eu não tenho,
porque não depende de mim, um plano para resolver o problema. Eu devia estar a
meter pessoas antes para haver transmissão de conhecimento. O cenário é já de
perda, não há volta a dar, e leva-nos a questionar se estamos a cumprir a nossa
missão. E eu diria que, em certa medida, não estamos.
Qual vai ser o
impacto do Plano de Recuperação e Resiliência na elaboração de um programa
especial de recuperação de património?
A própria tutela
já está a desenhá-lo. Mas, por questões políticas na União Europeia, parece que
o Programa de Resiliência está em vias de ser relativamente atrasado. Se me
dissessem que tinha dez milhões para gastar em intervenções e só um ano não
conseguia. Não é ao estalar de dedos que uma intervenção destas se faz.
Mas a casa tem
equipas técnicas. É sempre essencialmente um problema de recursos humanos?
Corre-se muitas
vezes o risco de não ter execução por não termos os processos devidamente
instruídos para se arrancar com as obras quando há essa disponibilidade
financeira. Somos cerca de 850 pessoas e nos próximos quatro anos vamos perder
370. A regra da substituição de saem dois e entra um não é automaticamente
aplicada e os serviços públicos recrutam essencialmente por mobilidade interna.
Já o recrutamento externo carece de autorização de outros ministérios
Ainda assim há
concursos para vigilantes ou juristas que ficam sem candidatos.
Temos um problema
de atractividade. Não temos carreiras especiais, por isso há um problema de
valorização dos especialistas. Somos confrontados no dia-a-dia com dificuldades
de reter as melhores pessoas, porque há uma diversidade brutal de entidades
públicas que nos vem buscar recursos. Criar uma carreira especial fazia todo o
sentido. É uma questão determinante, tal como foi em dado momento na
Direcção-Geral do Orçamento e na Direcção-Geral do Tesouro e Finanças porque, não
a tendo, os técnicos saíam.
Como é que se
chamaria essa carreira?
Especialista em
património cultural.
Está em cima da
mesa?
Vou propô-la para
aumentar a atractividade e promover o reconhecimento de um domínio de
especialidade e conhecimento ganho por quem se dedica há décadas a estas áreas.
Também vou propor uma alteração orgânica da DGPC.
Desde que se
instituiu a DGPC, no âmbito do PRACE, que se diz que este modelo não serve.
O PRACE e o
PREMAC foram gizados não para reorganizar a administração pública mas para
cortar dirigentes. Passei por isso e sei do que falo. Houve cortes que
promoveram uma reorganização à custa da fusão e perdeu-se capacidade de
coordenação. Dou um exemplo óbvio: como é possível que numa casa com estas
responsabilidades, com a diversidade de situações legais a que tem de
responder, não haja um gabinete jurídico? Não há.
Estamos também a
falar do regresso do antigo Instituto Português de Museus (IPM)?
Não defendo, de
todo, que se parta a DGPC. O modelo tem grandes vantagens ao concentrar os
serviços centrais e os dependentes por especialidade e ao reunir, também, a
componente laboratorial. Não defendo o regresso ao IPM, como não defendo o
regresso ao Igespar [Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e
Arqueológico]. A máquina é pesada, mas também há um problema de identidade
porque nem todas as pessoas que aqui trabalham se reconhecem na DGPC, mas antes
nos organismos que lhe deram origem. Conto propor no início do ano a nova
orgânica. Temos aqui departamentos que são gigantes e cuja coordenação se torna
quase impossível.
Quais são?
Temos dois
laboratórios, o CNANS [Centro Nacional de Arqueologia Náutica e Subaquática] o
Larc [Laboratório de Arqueociências], que nem unidades orgânicas são e, por isso,
não posso ter um dirigente a coordená-los. Acho que está tudo dito. A melhor
solução é reunir os laboratórios numa unidade tipo departamento e equipará-la
em termos de autonomia a um museu, monumento ou palácio. São quatro: José de
Figueiredo, SIPA [Sistema de Informação para o Património Arquitectónico],
CNANS e Larc.
Isso é a base da
tal carreira de especialista de património cultural ou é mais alargada?
Tem de ser mais
alargado do que isso. Não posso conceber que quem está na salvaguarda do património
e tem de lidar com 1,5 processos de licenciamento por dia – o número cresceu
cerca de 80% desde 2013 a 2019 [por causa do imobiliário] — não esteja
incluído.
A DGPC está a
inventariar as colecções do antigo BES e da fundação Ellipse, ligada ao extinto
BPP?
Temos a
responsabilidade de inventariar todas as colecções do Estado.
Essa
inventariação está em que fase, para que não se saiba ainda para onde vão estes
acervos?
São questões
distintas, a inventariação e o destino das colecções. Assim que o Estado recebe
essas colecções elas são inventariadas e, por isso, diria que está concluída.
Agora se esse inventário é completamente coerente é outra questão.
"O que posso
garantir é que, na Sé de Lisboa, não vai haver uma submissão da salvaguarda do
património ao projecto de arquitectura."
Está terminado?
Não sei dizer se
está completo.
Quando haverá um
destino para ambas?
Não sei.
Com a saída de
Fátima Marques Pereira tem menos um subdirector-geral. Quando será substituída?
Não há ainda
indicação de substituto. É uma situação que muito possivelmente se vai resolver
em Dezembro.
A sua nomeação
como director-geral do Património foi recebida com algumas reservas, sobretudo
pelas suas ligações ao imobiliário e à gestão do património do Estado. Achou
injusto?
Essa questão está
ultrapassada. Em sede de audição parlamentar defendi o currículo e as
competências.
tp.ocilbup@amelas.lebasi
tp.ocilbup@salenacl
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