OPINIÃO
Biden é uma oportunidade para a Europa – incluindo para a
sua própria coesão
Não é só a América que tem de pôr a casa em ordem. A
Europa tem de fazer o mesmo, talvez em condições ainda mais difíceis.
TERESA DE SOUSA
29 de Novembro de
2020, 0:00
1. Só por si, a
eleição de Joe Biden veio desanuviar o ambiente pesado que reinava sobre a
velha relação transatlântica, sob a qual foi construída a ordem liberal do
pós-guerra. Durante os últimos quatro anos, de respiração suspensa, temendo o
pior, a Europa foi convivendo com Donald Trump, tentando manter as aparências
de uma relação que sabe que está na base da sua integração, prosperidade e
segurança. O “pesadelo estratégico” passou. Ou, pelo menos, a sua versão mais
assustadora. Há agora que reparar os danos e criar as condições para renovar a
aliança, não com o regresso a um passado que não volta mais, mas procurando
adaptá-la a uma realidade internacional que, entretanto, sofreu transformações
tectónicas que pouco têm que ver com o actual ocupante da Casa Branca. O mundo
vive hoje sob o efeito da afirmação crescente e agressiva da China, do poder
crescente das tecnologias e de uma nova e poderosa vaga de autoritarismo que
desafia as democracias liberais. Tudo agravado ao extremo por uma pandemia
global que destrói as economias e põe a humanidade à prova.
2. E a primeira
coisa a fazer é, como Charles Kupchan resumiu numa pequena frase, “começar por
pôr a casa em ordem”. Dos dois lados do Atlântico. O investigador do Council on
Foreign Relations de Washington falava num oportuno seminário organizado pelo
Instituto de Defesa Nacional, em conjunto com o IPRI e a FLAD, sobre o futuro
das relações transatlânticas, em tempo de pandemia e em tempo de recessão
democrática. Kupchan lembrou que o populismo autoritário do Presidente cessante
não desapareceu com a sua derrota. Trump deixa como legado um Partido
Republicano que abandonou, em boa parte, o conservadorismo liberal que o
definiu ao longo de décadas, para abraçar uma versão mais ou menos radical de
populismo. Joe Biden tem dois desafios internos gigantescos pela frente: vencer
a pandemia e recuperar a economia dos seus efeitos mais devastadores. Até
agora, a sua moderação e bom senso têm feito milagres. Formou uma equipa de governo
em que predomina o centrismo e a competência. No Departamento de Estado estará
um veterano da política externa, Antony Blinken, que cresceu em França, conhece
a Europa e representa a tradição atlantista de Washington. Jake Sullivan, o
novo conselheiro nacional de Segurança, é uma das mentes mais brilhantes da
comunidade das relações internacionais dos Estados Unidos. Tal não significa
que Biden tencione regressar a um passado que já não existe ou limitar-se a
replicar a Administração que serviu como vice-presidente. Mas não sobra
qualquer dúvida de que a nova Administração voltará a valorizar a NATO e a
União Europeia como dois elementos fundamentais da liderança americana no
mundo. A única diferença é que o mundo não é o mesmo e a Europa também não.
3. Não é só a
América que tem de pôr a casa em ordem. A Europa tem de fazer o mesmo, talvez
em condições ainda mais difíceis. Enfrenta a mesma pandemia e a mesma brutal
crise económica e social. As suas democracias liberais vêem-se desafiadas pelas
mesmas forças populistas e autoritárias que Trump representou. Está rodeada de
instabilidade e de conflitos por quase todos os lados — o que não acontece com
o país-continente do outro lado do Atlântico. Debate-se internamente para
encontrar uma base comum para os gigantescos e inadiáveis desafios que o mundo
lhe coloca. Estava a recompor-se penosamente do triplo choque que sofreu
durante a última década — a crise financeira de 2008, a eleição de Trump e o
referendo britânico —, quando foi confrontada com a crise pandémica. A eleição
de Joe Biden pode ser um catalisador da resposta a alguns dos seus dilemas mais
urgentes e mais essenciais, ou, pelo contrário, pode vir a expor ainda mais as
suas divisões, hesitações e, sobretudo, as suas ilusões.
Charles Kupchan
também disse no mesmo seminário que “a Europa tinha de colocar alguma coisa em
cima da mesa”, para provar aos Estados Unidos que a renovação da aliança
transatlântica continua a ser indispensável e, portanto, vantajosa para ambos
os lados. E esclarecer entre si algumas ambiguidades que, sendo uma forma
pragmática de disfarçar as suas divisões, acabam por paralisá-la. Para uma
maioria de países europeus, incluindo Portugal, a NATO continua a ser o
principal garante da segurança europeia, passados 30 anos sobre o fim da Guerra
Fria. A ideia de uma capacidade militar europeia autónoma não é concebível fora
do âmbito da Aliança, mesmo que seja necessária, se os europeus, seguindo o
conselho de Kupchan, quiserem pôr alguma loiça de boa qualidade em cima da
mesa. Não foi Trump quem inventou a meta de 2% para os orçamentos de defesa dos
aliados. Essa meta foi fixada em 2014, numa cimeira da NATO presidida por
Obama. Trump limitou-se a transformá-la numa ameaça, que até os países mais
relutantes, como a Alemanha, compreenderam. Desde Bill Clinton que os EUA pedem
à Europa um esforço, se não para partilhar o “fardo” da segurança global, pelo
menos o da sua própria segurança. Desde Obama, com o pivot da política externa
americana do Atlântico para o Pacífico, que essa necessidade de reequilíbrio se
tornou ainda mais relevante. Desde a anexação da Crimeia, em 2014, que a NATO
voltou a ter de lidar com uma ameaça real na sua fronteira leste. A saída dos
britânicos não ajuda a esta partilha mais equitativa, mesmo que o Reino Unido
continua a ser um membro da NATO — aliás, a sua segunda força militar depois
dos EUA, incluindo a sua frota de submarinos nucleares que está ao serviço da
aliança, ao contrário da force de frappe nuclear francesa. Nos últimos anos, os
europeus deram alguns passos institucionais e políticos para dar alguma
consistência à dimensão de cooperação militar. Há já uma verba pequena (10 mil
milhões de euros) no novo orçamento plurianual para financiar projectos de
investigação no domínio da defesa que envolvem vários países. Mas estão ainda a
léguas de distância de poder garantir a sua própria segurança sem os EUA ou de
conseguir agir de forma efectiva na resolução de conflitos na sua própria
região. A Rússia ou a Turquia ganham cada vez mais influência militar nas suas
fronteiras, da Síria à Líbia, passando pelo Nagorno-Karabakh, sem que a Europa
consiga sequer reagir. É esta a realidade. Não vale a pena querer pintá-la com
belas palavras e manifestações de intenção.
4. Obviamente, a
China ocupará o centro do novo relacionamento entre as duas margens do
Atlântico em todos os domínios, incluindo o da segurança. E aqui a Europa não
tem muito tempo a perder para tentar vencer as suas manifestas divergências de
interesses e de visões. O comércio, sobretudo na Alemanha, e o investimento
chinês, sobretudo nas economias mais frágeis das periferias, continuam a
sobrepor-se a uma visão estratégica do que representa a nova ambição da China à
hegemonia mundial. A tentação da “terceira via” para evitar um mundo de novo reduzido
à bipolaridade é manifesta. Pode ter algum mérito, desde que assente numa opção
absolutamente clara sobre o lugar da Europa neste confronto.
Augusto Santos
Silva lembrou, nesse mesmo seminário, que a declaração conjunta da última
cimeira da NATO, em 2019, continha pela primeira vez uma referência à China,
considerando o seu “comportamento geopolítico” como um “novo facto” da ordem
internacional. A cimeira lançou um “processo reflexão”, sob a direcção do
secretário-geral, que deverá estar concluído no próximo ano. Por outras
palavras, a NATO ainda está a reflectir sobre como se deverá adaptar a um dos
mais exigentes desafios estratégicos que o Ocidente tem pela frente — a
ascensão nada pacífica da China à escala global, para além do regresso de uma Rússia
igualmente revisionista e igualmente agressiva.
Os Estados Unidos
de Biden vão, certamente, querer mais do que isso. Mas, se o novo Presidente
americano conseguir funcionar como um “facilitador” da unidade europeia — como
os EUA foram nos primeiros anos do pós-guerra e da própria integração —, talvez
a Europa consiga ultrapassar as suas fraquezas, as suas rivalidades internas,
as suas ilusões. Talvez seja esta a grande oportunidade — para a relação
transatlântica, mas, sobretudo, para a própria União Europeia.
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