OPINIÃO
Imprudência e fúria — a história da Festa do Avante! em
2020
O que se passa à volta da Festa é um sinal preocupante da
evolução da vida política portuguesa, a caminho de um cada vez maior
radicalismo, no limiar da raiva e da violência. Pensam que é exagero?
Infelizmente é só esperar.
JOSÉ PACHECO
PEREIRA
5 de Setembro de
2020, 1:00
Na altura em que
estiverem a ler isto está em curso a Festa do Avante! entre protestos e
congratulações. Houve de tudo. O PCP foi imprudente e depois arrogante,
menosprezou um factor que tinha a obrigação de conhecer muito bem: em tempos de
crise não há nada mais explosivo do que a percepção (e nalguns casos a verdade)
de que há desigualdades de tratamento, filhos e enteados. A Festa do Avante!
foi vista como um caso excepcional de complacência das autoridades sanitárias,
por troca de favores políticos, que permitiriam ao PCP fazer ajuntamentos,
comes e bebes, exposições, concertos, que estavam proibidos a outros grupos e,
em particular, aos profissionais dos espectáculos e festivais, que passam
momentos de grandes dificuldades. Não é inteiramente verdade, mas tem uma parte
suficiente de verdade para gerar um sentimento de indignação, que depois tem
vindo a ser usado politicamente para atacar o PCP, o governo e as autoridades
sanitárias.
A fúria actual
com a Festa do Avante! é tudo menos inocente. Tem uma clara motivação política
Mas, a fúria
actual com a Festa do Avante! é tudo menos inocente. Tem uma clara motivação
política, longe de qualquer preocupação com a pandemia e muito menos com os
trabalhadores dos espectáculos e festivais. Ela insere-se numa clara deslocação
para um radicalismo de direita que se tem vindo a acentuar em várias áreas da
sociedade portuguesa, e de que o Chega é apenas a ala populista mais visível, e
as redes sociais o viveiro do ódio, mas que encontra expressão numa elite que
está órfã do poder, apoiada em think tanks, subsidiados por grupos
empresariais, com um peso crescente na comunicação social. Repetirei de novo
que uma parte importante desta deriva vem da impotência, mas com o tempo essa
impotência transforma-se em raiva. A vida política portuguesa vai ser
crescentemente perigosa, num caminho que encontra em Trump um inspirador não
nomeado por vergonha, mas real.
Metem-se agora
com o PCP, porque o PCP está mais fraco e tem-se deixado acantonar e isolar da
opinião pública. Mas a duplicidade é flagrante: nos últimos meses houve duas
manifestações do Chega, uma de um grupo que partilha as teorias conspirativas
contra as máscaras e a distanciação social, duas manifestações anti-racistas,
uma das quais com bastante gente, vários eventos religiosos, feiras por todo o
país, só para referir ajuntamentos legais, e nenhum dos argumentos usados
contra a Festa do Avante! foi usado e, nem de perto nem de longe, a mesma
veemência. Sobra apenas o argumento do número de presentes, que o PCP anunciou
serem à volta de 30.000 e a DGS reduziu para metade.
Encurralado, o
PCP subiu a parada, até porque a Festa do Avante! não é para o partido um
comício, ou uma festa comum, tem um importante elemento identitário e
comunitário. Todos os partidos comunistas tiveram na sua história uma festa
associada com o jornal partidário, seja o L’Humanité, o Unitá, ou o Mundo
Obrero, que faz parte da prática comunista. Não é de facto, como diz o PCP,
“uma festa como as outras”, porque a cultura política comunista tem uma
identidade própria, com a vantagem de permitir sinais de pertença e
reconhecimento e a desvantagem da auto-suficiência e do bunker.
O papel da Festa
na mobilização partidária começa antes, na sua montagem em grande parte feita
por voluntários, que realizam “jornadas de trabalho”, e depois asseguram a
realização do evento, e finalmente nas diferentes excursões de camionete e de
comboio, que asseguravam que os militantes de Trás-os-Montes se podiam
encontrar com os do Alentejo. No recinto são comuns formas de reconhecimento
tribal entre “camaradas”, quer através das bancas de comida, objectos,
artesanato local, quer inclusive com as delegações estrangeiras de outros
partidos comunistas e movimentos revolucionários. A Festa é ao mesmo tempo
provinciana e cosmopolita, e transmite aos que a visitam esse sentimento de que
fazem parte de uma comunidade nacional e de um movimento internacional, com
amigos e inimigos. Se tivermos em conta que muitos dos que a visitam não viajam
facilmente, nem tem condições económicas para conhecer o mundo, isso é um
momento importante nas suas vidas.
O resto da Festa
serve quer o financiamento do partido, quer uma tentativa de aproximação aos
mais jovens pelos espectáculos e alguma abertura por essa via ao exterior (um
visitante habitual era Marcelo Rebelo de Sousa…), sobrando a parte
objectivamente menos importante para o interior dos discursos da rentrée do PCP
para marcar o calendário. Este ano, no contexto da actual situação política,
com os apelos do PS a entendimentos, o que lá se disser pode ser relevante.
Amanhã ver-se-á,
e, se tudo correr bem com a pandemia, o que vai ficar destes dias será a fúria
contra a Festa. O que se passa à volta da Festa é um sinal preocupante da
evolução da vida política portuguesa, a caminho de um cada vez maior
radicalismo, no limiar da raiva e da violência. Pensam que é exagero?
Infelizmente é só esperar.
Historiador
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