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OPINIÃO
Pagar para ser roubados
Se o governo não deseja criar “constrangimentos” às
empresas sediadas em offshores, isso significa que a existência deste tipo de
companhias é tão frequente no nosso país que excluí-las das medidas do
orçamento suplementar afetaria uma parte considerável do nosso tecido
económico.
RUI TAVARES
17 de Junho de
2020, 0:10
Segundo uma piada
sem graça nenhuma, um ladrão amador é aquele que nos diz “dê-me o seu dinheiro”
e um ladrão profissional aquele que acrescenta “assine aqui em baixo”.
Assinar em baixo
é aquilo que o nosso governo propõe, e o nosso Parlamento vai aprovar, que
façamos em relação às companhias sediadas em paraísos fiscais, através do
próximo orçamento suplementar. Ao passo que meia-dúzia de países da União Europeia
— Áustria, Bélgica, Dinamarca, França, Itália e Polónia —, com governos que vão
da esquerda à direita, decidiram que não haveria para as empresas sediadas em
paraísos fiscais subsídios nem benefícios no quadro das medidas de recuperação
económica pós-pandemia, o governo português anunciou não seguir essa disposição
para não criar “constrangimentos” a empresas que têm “atividade económica em
Portugal e empregam trabalhadores no território nacional”.
Como é bom ser
delicado! As empresas sediadas em offshores drenam, através de evasão fiscal e
planeamento fiscal agressivo, milhares de milhões de euros aos cofres do estado
português, aquele dinheiro que faz falta aos nossos hospitais ou às nossas
escolas? Pois bem, nós não queremos que eles se sintam “constrangidos” de forma
alguma a ter de pagar impostos para nós lhe darmos agora subsídios extra,
benefícios fiscais para alguma coisa que reste de imposto a pagar, garantias de
estado para novos empréstimos, e o que mais se houver de inventar. Se o ladrão
profissional é aquele que diz “assine aqui em baixo”, Portugal é a
vítima-modelo que responde “com todo o prazer! — e se não for muito incómodo
para si passe no próximo ano a buscar uma condecoração”.
Pela natureza das
coisas, é evidentemente difícil saber ao certo quanto perdemos cada ano com
evasão fiscal e planeamento fiscal agressivo. Mas em 2013, quando fui
vice-presidente de uma comissão euro-parlamentar contra a criminalidade
organizada, corrupção e branqueamento de capitais, e relator de um documento de
trabalho sobre as relações entre branqueamento de capitais, evasão fiscal e
paraísos fiscais, os dados a que tivemos acesso — alguns dos quais baseados em
estudos encomendados pela Comissão Europeia — davam-nos um retrato enfurecedor.
Naquele início de década, Portugal perderia cerca de doze mil milhões de euros
por ano. É mais do que consignamos todos os anos à saúde no Orçamento do
Estado. As perdas em evasão fiscal representariam o equivalente a três quartos
dos nossos altos défices orçamentais de então — o que sugeria que, se
tivéssemos recolhido o dinheiro que nos era devido, não teríamos precisado de
resgate da troika, ou que pelos menos as condições deste seriam muito menos
severas. E para cereja em cima do bolo, o dinheiro perdido todos os anos em
impostos sonegados ao Estado português permitiria amortizar cerca de dez anos
da nossa dívida pública.
Mas aquilo de que
estamos a falar agora é ainda mais diabólico. Não se pede que Portugal acabe, por
si só, com a roubalheira dos nossos recursos através dos paraísos fiscais.
Pede-se apenas que, como outros países da UE já vão fazendo, que Portugal não
responda à roubalheira oferecendo mais dinheiro, de graça ou em condições muito
vantajosas, a quem nos anda a roubar. Será pedir muito?
Ou seja, não só o
dinheiro de que precisamos para os nossos hospitais e escolas existe e anda
escondido, como o dinheiro extra que mesmo agora em situação de crise nos dizem
que não há para a saúde — com um aumento de meros 500 milhões de euros, em
época de pandemia —, ou para um rendimento básico de emergência, será agora
disponibilizado àqueles por causa dos quais não há dinheiro em primeiro lugar.
Esta decisão — ou
falta dela — do governo português só pode aliás querer dizer que o problema é
mais grave ainda do que os cálculos que citei atrás, assumidamente
conservadores, nos poderiam fazer crer. Se o governo não deseja criar
“constrangimentos” às empresas sediadas em offshores, mesmo na atual definição
restrita em que apenas doze países e territórios estão na lista negra dos
offshores e jurisdições como os Países Baixos não fazem parte dela, isso
significa que a existência deste tipo de companhias é tão frequente no nosso
país que excluí-las das medidas do orçamento suplementar afetaria uma parte
considerável do nosso tecido económico. Aquilo que nos faria pensar que é
urgente passar à ação parece ser interpretado pelo governo — e, em breve,
validado pelo Parlamento — como uma razão suplementar para se ficar quieto.
Ainda assim, a
falta de vontade política é chocante. Seria assim tão difícil condicionar estas
medidas do orçamento suplementar à repatriação, num prazo razoável, das
companhias para um território que não seja um paraíso fiscal? É extraordinário
que ninguém no governo ou no Parlamento se tenha lembrado de uma ideia tão
básica. É, talvez, demasiado “constrangedora”.
O autor escreve
segundo o novo acordo ortográfico

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