quarta-feira, 17 de junho de 2020

Pagar para ser roubados

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OPINIÃO
Pagar para ser roubados

Se o governo não deseja criar “constrangimentos” às empresas sediadas em offshores, isso significa que a existência deste tipo de companhias é tão frequente no nosso país que excluí-las das medidas do orçamento suplementar afetaria uma parte considerável do nosso tecido económico.

RUI TAVARES
17 de Junho de 2020, 0:10

Segundo uma piada sem graça nenhuma, um ladrão amador é aquele que nos diz “dê-me o seu dinheiro” e um ladrão profissional aquele que acrescenta “assine aqui em baixo”.

Assinar em baixo é aquilo que o nosso governo propõe, e o nosso Parlamento vai aprovar, que façamos em relação às companhias sediadas em paraísos fiscais, através do próximo orçamento suplementar. Ao passo que meia-dúzia de países da União Europeia — Áustria, Bélgica, Dinamarca, França, Itália e Polónia —, com governos que vão da esquerda à direita, decidiram que não haveria para as empresas sediadas em paraísos fiscais subsídios nem benefícios no quadro das medidas de recuperação económica pós-pandemia, o governo português anunciou não seguir essa disposição para não criar “constrangimentos” a empresas que têm “atividade económica em Portugal e empregam trabalhadores no território nacional”.

Como é bom ser delicado! As empresas sediadas em offshores drenam, através de evasão fiscal e planeamento fiscal agressivo, milhares de milhões de euros aos cofres do estado português, aquele dinheiro que faz falta aos nossos hospitais ou às nossas escolas? Pois bem, nós não queremos que eles se sintam “constrangidos” de forma alguma a ter de pagar impostos para nós lhe darmos agora subsídios extra, benefícios fiscais para alguma coisa que reste de imposto a pagar, garantias de estado para novos empréstimos, e o que mais se houver de inventar. Se o ladrão profissional é aquele que diz “assine aqui em baixo”, Portugal é a vítima-modelo que responde “com todo o prazer! — e se não for muito incómodo para si passe no próximo ano a buscar uma condecoração”.

Pela natureza das coisas, é evidentemente difícil saber ao certo quanto perdemos cada ano com evasão fiscal e planeamento fiscal agressivo. Mas em 2013, quando fui vice-presidente de uma comissão euro-parlamentar contra a criminalidade organizada, corrupção e branqueamento de capitais, e relator de um documento de trabalho sobre as relações entre branqueamento de capitais, evasão fiscal e paraísos fiscais, os dados a que tivemos acesso — alguns dos quais baseados em estudos encomendados pela Comissão Europeia — davam-nos um retrato enfurecedor. Naquele início de década, Portugal perderia cerca de doze mil milhões de euros por ano. É mais do que consignamos todos os anos à saúde no Orçamento do Estado. As perdas em evasão fiscal representariam o equivalente a três quartos dos nossos altos défices orçamentais de então — o que sugeria que, se tivéssemos recolhido o dinheiro que nos era devido, não teríamos precisado de resgate da troika, ou que pelos menos as condições deste seriam muito menos severas. E para cereja em cima do bolo, o dinheiro perdido todos os anos em impostos sonegados ao Estado português permitiria amortizar cerca de dez anos da nossa dívida pública.

Mas aquilo de que estamos a falar agora é ainda mais diabólico. Não se pede que Portugal acabe, por si só, com a roubalheira dos nossos recursos através dos paraísos fiscais. Pede-se apenas que, como outros países da UE já vão fazendo, que Portugal não responda à roubalheira oferecendo mais dinheiro, de graça ou em condições muito vantajosas, a quem nos anda a roubar. Será pedir muito?

Ou seja, não só o dinheiro de que precisamos para os nossos hospitais e escolas existe e anda escondido, como o dinheiro extra que mesmo agora em situação de crise nos dizem que não há para a saúde — com um aumento de meros 500 milhões de euros, em época de pandemia —, ou para um rendimento básico de emergência, será agora disponibilizado àqueles por causa dos quais não há dinheiro em primeiro lugar.

Esta decisão — ou falta dela — do governo português só pode aliás querer dizer que o problema é mais grave ainda do que os cálculos que citei atrás, assumidamente conservadores, nos poderiam fazer crer. Se o governo não deseja criar “constrangimentos” às empresas sediadas em offshores, mesmo na atual definição restrita em que apenas doze países e territórios estão na lista negra dos offshores e jurisdições como os Países Baixos não fazem parte dela, isso significa que a existência deste tipo de companhias é tão frequente no nosso país que excluí-las das medidas do orçamento suplementar afetaria uma parte considerável do nosso tecido económico. Aquilo que nos faria pensar que é urgente passar à ação parece ser interpretado pelo governo — e, em breve, validado pelo Parlamento — como uma razão suplementar para se ficar quieto.

Ainda assim, a falta de vontade política é chocante. Seria assim tão difícil condicionar estas medidas do orçamento suplementar à repatriação, num prazo razoável, das companhias para um território que não seja um paraíso fiscal? É extraordinário que ninguém no governo ou no Parlamento se tenha lembrado de uma ideia tão básica. É, talvez, demasiado “constrangedora”.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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