HISTÓRIA
Padre António Vieira: uma vida em tensão, um legado em
discussão
Foi missionário e diplomata, pregou a igualdade de todos
os homens perante Deus e defendeu o comércio de escravos por estratégia
política (e teológica). Homem de contradições flagrantes, Vieira está em
Portugal no centro da discussão sobre a memória histórica que se desenrola
mundo fora.
Mário Lopes
Mário Lopes 12 de
Junho de 2020, 22:33
“Descoloniza”,
escreveram no pedestal da estátua de Padre António Vieira, vandalizada por
estes dias no Largo Trindade Coelho. A mesma tinta vermelha foi aplicada na
boca, nas mãos e no hábito do missionário jesuíta do século XVII, figura de
absoluto destaque da cultura e das letras portuguesas, exacerbado oficialmente
como pioneiro na defesa dos direitos humanos. A tinta vermelha na estátua
firmou de forma evidente a visão contrária: está manchado de sangue o legado de
António Vieira — mensagem acentuada pelo coração pintado no peito das três
crianças ameríndias esculpidas a seus pés.
A pichagem de uma
estátua que nunca foi verdadeiramente consensual questiona a representação de
António Vieira como figura humanista, como activista anti-esclavagista
empenhado na defesa dos índios brasileiros quando Portugal era a potência que
administrava aquele território, sublinhando a violência colonialista da acção
evangelizadora e o facto de o padre jesuíta nunca ter condenado a escravatura
dos povos africanos. O protesto surgiu num contexto específico, na sequência
das manifestações que se sucedem nos Estados Unidos após a morte de mais um
cidadão indefeso às mãos da polícia e da internacionalização do movimento
social norte-americano, com o debate a alargar-se à forma como o racismo e a
discriminação se perpetuam.
Nos Estados
Unidos, caíram estátuas de generais esclavagistas da Guerra da Secessão – e foi
decapitada uma de Cristovão Colombo. Em Inglaterra, a estátua de um mercador
esclavagista responsável pelo tráfico de quase cem mil pessoas, e pela morte de
20 mil, homem que foi também um grande filantropo da cidade de Bristol, foi
atirada ao rio – e nem Churchill escapou à vandalização. Na Bélgica, estátuas e
bustos do imperador Leopoldo II, soberano que supervisionou o domínio colonial
sobre o Congo, assegurado de forma criminosa, particularmente cruel e, já à
época, alvo de contestação, têm sido vandalizadas nos últimos dias. Esta
semana, em Portugal, foi Padre António Vieira o alvo. Não se tratou, porém, de
uma erupção surgida do nada.
Afinal, a
instalação da estátua naquele largo lisboeta, em Junho de 2017, surgiu desde
logo envolta em polémica. Um grupo de manifestantes que se opunha à estátua
pretendia marcar a ocasião com uma intervenção – a deposição de uma coroa de
flores, acompanhada de uma performance poética —, o que foi impedido pela
presença de um grupo de neonazis rodeando a estátua. As motivações para a
contestação estavam bem definidas na convocatória da manifestação: “Não
aceitamos essa estátua. Com a colaboração da Igreja, mais de seis milhões de
africanos foram escravizados pelos portugueses no tráfico transatlântico. Padre
António Vieira era um esclavagista selectivo. A colonização portuguesa no final
do século XVI já tinha dizimado 90% da população indígena. A evangelização
jesuíta foi a maior responsável pelo etnocídio ameríndio.” Este é o ponto da
discussão que então se abriu.
Uma fama
contraditória
“Ocorre-me
lembrar o que D. Francisco Alexandre Lobo, Bispo de Viseu, escreveu em 1823, no
rescaldo de um período particularmente intenso de discussões políticas durante
o chamado primeiro triénio liberal: ‘tem sido notavelmente vária, e até
contraditória, a fama do célebre jesuíta, o Padre António Vieira’”, aponta o
historiador e professor universitário Diogo Ramada Curto em depoimento ao
PÚBLICO, acrescentando: “O que equivale a dizer, de modo ainda mais sucinto,
que o debate em torno de Vieira e da sua obra não foi inventado por nós, nem
data da inauguração da estátua no cimo da Rua da Misericórdia.”
A canonização,
digamos assim, da figura e da obra de Padre António Vieira, que nasceu em
Lisboa em 1608 e viria a morrer em 1697, aos 89 anos, em Salvador da Bahia, no
Brasil, a então colónia portuguesa que se tornara a sua terra desde tenra idade
(ali chegou pela primeira vez com os pais aos seis anos), é um mau serviço que
prestamos à sua vida e ao seu tempo. “A vida e a obra do Padre António Vieira,
como a de Camões, Eça ou Pessoa, comporta muitas dimensões, tantas vezes em
contradição umas com as outras. No caso de Vieira, homem de acção, nos planos
político e religioso, essas contradições são ainda mais flagrantes do que em
outros grandes escritores portugueses”, destaca Diogo Ramada Curto.
José Eduardo
Franco, historiador que, juntamente com Pedro Calafate, foi responsável pelo
projecto Vieira Global, no âmbito do qual foi publicada a obra completa de
Vieira em 30 volumes, descreve o missionário como alguém que atravessou toda a
sua vida em “tensão interior”, dividido “entre a sua vocação fundamental, ser
jesuíta e missionário fiel aos ideais do Evangelho, fazendo dos seus sermões um
eco de revolta, uma tribuna de pregação altamente crítica dos poderes
instituídos, e o seu compromisso diplomático para com o Estado português e pela
consecução do projecto político de Portugal [após a Restauração, em 1640]”.
Para o
historiador, qualquer acusação de racismo que seja lançada a Vieira é
desajustada da realidade. “Totalmente inadequada. Num dos sermões mais
emblemáticos, que ele prega à Confraria dos Pretos da Bahia [que reunia em
associação população negra escravizada ou já livre], faz uma forte crítica às
condições laborais do trabalho escravo e compara o que os senhores faziam aos
escravos ao que os fariseus e Pilatos fizeram a Cristo” – “Cristo despido, e
vós despidos: Cristo sem comer, e vós famintos: Cristo em tudo maltratado, e
vós maltratados em tudo”, escreveu Vieira (Sermões, vol. XI, sermão XIV). Como
escreveu também que a condição a que fora submetida a população negra se devia
exclusivamente ao poder das armas, e não a qualquer superioridade cultural
natural, como viria a ser advogado muito depois, no século XIX, por eugenistas
de diversos impérios do Ocidente — “Entre os homens dominarem os Brancos aos
Pretos é força, e não razão, ou natureza. Bem se vê, onde não tem lugar esta
força, nem a cor é vencida dela”, lemos no sermão XX do Rosário, aquele em que
afirma que, aos olhos de Deus, “cada um tem a cor do seu coração”. Vieira
também exerceria a sua influência para que, em 1655, fosse aprovada a liberdade
de todos os índios — com excepções, naturalmente: podiam ser escravizados os
aprisionados em “guerra justa”, quer com os portugueses ou entre si, ou aqueles
que impedissem a pregação do Evangelho.
Em relação aos
escravos vindos de África, porém, nunca a sua libertação foi advogada pelo
missionário. Entra em cena a figura de Vieira enquanto diplomata, homem de
relações privilegiadas com a corte portuguesa. “Vieira era um missionário e
tinha um ideal evangélico em que todos tinham as mesmas condições de dignidade
como filhos de Deus”, diz José Eduardo Franco. Tal valeu-lhe fortes críticas e
muita hostilidade por parte dos colonos portugueses no Brasil, e também a
animosidade de muitos em Portugal, onde pregava em defesa da população judia
expulsa e se opunha ao termo discriminatório cristão-novo. “Ao mesmo tempo”,
continua José Eduardo Franco, “era um político, e pretendia apoiar D. João IV
na recuperação do império na sequência da Restauração. E, naquela época, toda a
economia de todas as potências europeias era baseada no trabalho escravo”. A
sociedade ideal de Vieira — “sem escravatura”, assevera o historiador — colidia
com a realidade do seu presente histórico. “Perante ela, defendeu que deviam
melhorar-se as condições do trabalho escravo, mas que não era possível acabar
com o sistema, porque colocava Portugal em desvantagem.”
Negros por índios
No congresso
internacional Vieira – O Tempo e os seus Hemisférios, que decorreu na Faculdade
de Ciências Sociais e Humanas, em Lisboa, quando do quarto centenário do
nascimento de Padre António Vieira (e cujas actas foram publicadas em livro
pela Colibri, em 2011), Maria do Rosário Pimentel descreveu de forma
esclarecedora a ambiguidade da posição de Vieira. “Como poderia o pregador pôr
directamente em causa a mão-de-obra escrava, base da economia colonial? Como
poderia ir contra o discurso oficial, sem ser de forma ambígua? Como poderia a
missão evangélica concretizar-se sem a ajuda da autoridade civil e pondo em
causa o próprio sistema colonial? Não era com o rendimento daqueles ‘açúcares
livres de direitos’, resultante do trabalho do africano, que os missionários
custeavam o seu trabalho, salvavam a alma do índio, vestiam e curavam o seu
corpo, ensinavam a utilizar ferramentas? Não era com a escravidão que o
africano resgatava a sua alma juntamente com a do índio das missões? Isto é,
não servia a escravidão o fim último da libertação do índio e do negro?”.
Encontramos as
palavras de Pimentel no texto Vieira e a Escravatura: ‘Cativeiro Temporal’ e
‘Liberdade Eterna'. O título alude à forma como o missionário resolveu em si
aquela terrível contradição. Pedia à metrópole que fizesse chegar ao Maranhão,
onde desenvolvia actividade missionária juntos dos índios, escravos vindos de
Angola, dado que os colonos locais não tinham condições financeiras para os
adquirir – escravos que eram necessários para atenuar a pressão sobre os índios
que os colonos exerciam em busca de mão-de-obra gratuita. Aos escravos,
pregava, por sua vez, a bondade e a submissão perante os seus senhores, pregava
que se entregassem aos desígnios incompreensíveis de Deus, que os colocara naquela
situação. Pregava que sofressem agora, pelo tempo limitado da sua vida, pois
que depois chegaria a liberdade eterna. Aos seus senhores, não condenava a
condição servil a que condenavam outros seres humanos, mas pedia-lhes que os
tratassem bem, pois também nisso residiria a sua salvação. “Tende-os, cristãos,
e tende muitos, mas tende-os de modo que eles ajudem a levar a vossa alma ao
céu, e vós as suas”, concluía um dos seus sermões.
Tudo pesado,
devemos mergulhar naquela que será, porventura, a mais profunda motivação de
Vieira. “Será que o projecto da Companhia de Jesus de criação de aldeias a que
os índios seriam reduzidos, para serem catequizados e doutrinados, era
equivalente à sua libertação?”, questiona retoricamente Diogo Ramada Curto. “Em
sentido inverso, será que o projecto de fazer entrar o Maranhão no circuito do
tráfico de escravos do Atlântico era de iniciativa dos jesuítas, em geral, e de
Vieira, em particular? A resposta a ambas as questões é, obviamente, negativa.
Penso, aliás, que em ambos os casos o que está em causa é o espírito de missão
de Vieira. O que ele pretendia era que todos – a começar pelos colonos e a
terminar nas populações do Maranhão ou dos escravos africanos que por razões
económicas lá não chegavam – fossem acolhidos pela Igreja Católica.”
Vendo-o desde
este tempo que é o nosso, Ramada Curto defende que aquilo que mais sobressai na
obra de Vieira “é a sua capacidade para conjugar a oratória com a prática da
missionação, sem descurar a negociação política”. Recorda, porém, “pelo simples
facto de causar estranheza e nos obrigar a reflectir sobre a distância”, em que
consistia “o elogio das suas virtudes” 30 anos após a sua morte”, retirado de
um “manuscrito inédito da Biblioteca Nacional”. Ali se homenageava
essencialmente o homem devoto e a forma como se entregava à sua devoção. “A
saber, a sua prodigiosa memória dos santos padres e autores que lera em moço,
uma vida de privações, em especial quando trocou o serviço na corte para passar
ao Maranhão.” E, ainda, “o seu amor pela Companhia de Jesus que o impediu de
aceitar os cargos que lhe propunha D. João IV, o que representava desprezo
pelas glórias terrenas; e, ainda, a sua devoção mariana traduzida na prática
diária de rezar pelo Rosário durante uma hora.”
O abrir de uma
ferida
A vandalização de
uma estátua é um acto violento, mas sobretudo simbólico. Pode ser o início de
uma nova discussão, o começo de uma redescoberta, o abrir de uma ferida. A
representação escolhida para a homenagem no Largo Trindade Coelho, inspirada na
gravura que abre a biografia de Vieira escrita por André de Barros e publicada
em 1746, provou desde o início não ser consensual.
“No século XXI
devíamos preservar um lugar de memória, aspirando a valores pedagógicos. Eu
optaria por uma estatuária diferente”, considera José Eduardo Franco. Recorda
um dos sermões de Vieira, em que este equipara o seu trabalho missionário ao
labor do escultor que, “da pedra informe, extrai um homem novo, um santo”.
Seria assim a estátua de Vieira que imaginou, a de “um homem que, através da
palavra, se trabalhou e modelou para ser melhor; que fez nascer homens novos”.
Diogo Ramada
Curto discorda “das políticas comemorativas que adoptam quase sempre o estilo
de pregar aos devotos, já convertidos”. No caso em apreço, tanto se distancia
“dos que sentiram necessidade de recorrer à grande figura de Vieira para impor
o valor dos seus cenóbios”, como “daqueles que condenam nele o facto de não ter
antecipado a sua suposta tolerância tão abolicionista, quanto anacrónica”.
Remata: “Que os nossos combates pela igualdade e pela liberdade não sirvam para
criar tabus e empobrecer a nossa cultura. A ambos os lados, recomendo a leitura
de Vieira.”
tp.ocilbup@sepol.oiram

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