REPORTAGEM
CORONAVÍRUS
Focos de covid-19 na Grande Lisboa: “Casos a aumentar são
resultado da prevenção que não se fez”
Habitantes foram trabalhar nas obras, limpezas, lares e
hospitais em transportes lotados. Alguns ficaram com covid-19. “Agora são
estigmatizados”. Moradores da Quinta da Fonte dizem que houve “um descaso” em
relação ao bairro. Equipas foram esta terça-feira para o terreno estudar “caso
a caso”. Fechar cafés como no bairro da Jamaica não está em cima da mesa.
Autarquia rejeita que este seja “um problema de bairro municipais”.
Joana Gorjão
Henriques e Daniel Rocha 3 de Junho de 2020, 7:00
Na manhã desta
segunda-feira as ruas da Quinta da Fonte, em Loures, estavam vazias, mais do
que o habitual. Quase não passava gente, mas havia autocarros cheios, mesmo não
sendo hora de ponta. Dezenas de pessoas estavam lá dentro sentadas lado a lado,
algumas chegarão depois de uma madrugada a trabalhar.
No bairro há
muita gente contaminada como o vírus “invisível” como lhe chamam os moradores,
o coronavírus. É o suficiente para gerar preocupação entre moradores, quem
trabalha aqui e as autoridades de saúde. Apesar das obras recentes nas fachadas
dos prédios mostrarem edifícios pintados, as desigualdades que existem na
Quinta da Fonte ficaram ainda mais expostas pela pandemia.
Na semana
passada, a Direcção-Geral de Saúde (DGS) referiu que havia focos de infecção
comunitários localizados em bairros como o Jamaica, no Seixal; referiu-se
também ao aumento de casos na Grande Lisboa. Loures é o segundo concelho com as
taxas de incidência cumulativa de infecção mais altas: 58,3 por 10 mil
habitantes (em primeiro está a Amadora com 58,6 e depois Lisboa com 51,9). Os
números globais da região de Lisboa são de 30,8 e do Norte de 46,9 por 100 mil,
segundo Mário Durval, delegado de saúde da Administração Regional de Saúde de
Lisboa e Vale do Tejo (ARSLVT).
O que explica
estes valores? Sobrelotação de casas e de transportes e casos de pessoas que
não conseguem cumprir quarentenas por razões económicas são alguns dos exemplos
dados por quem vive e trabalha na Quinta da Fonte. “Tenho medo de pegar nas
coisas. As pessoas ficam a olhar umas para as outras, de lado”, diz Ana, que
chegou a esperar duas horas pelo autocarro durante o estado de emergência.
Trabalhadora da
limpeza em casas particulares, outra moradora, Josefina, que dinamiza
actividades culturais ligadas a Cabo Verde, costuma apanhar o autocarro de
manhã e ainda esta segunda-feira não tinha lugar. “Dizem na televisão que temos
que cumprir as regras, mas depois não há autocarros suficientes. Ando com um
guardanapo, sento-me, ponho a minha mala no colo e faço os possíveis para não
segurar em nada.”
Dizem na
televisão que temos que cumprir as regras, mas depois não há autocarros
suficientes
Josefina,
moradora
Josefina, nome
fictício — como o nome dos moradores desta reportagem a quem protegemos a
identidade —, tem o 12.º ano. Tem quase 60 anos, e numa das casas queriam
dispensá-la pouco depois da pandemia. Lutou pelos seus direitos, foi à
Autoridade para as Condições de Trabalho, e chegou a acordo para receber
indemnização. Nos outros dois empregos, uma casa particular e uma empresa,
continuou sempre a trabalhar durante este período.
Há relatos, ao
longo dos anos, de pessoas que precisam de usar outras moradas para conseguir
emprego, diz-nos a técnica de acção social Aida Marrana, coordenadora do Centro
de Actividades de Tempos Livres Verdine, uma instituição particular de
solidariedade social, que há décadas ali trabalha.
Josefina tem
assegurado a limpeza do espaço comum e exterior do seu prédio, com lixívia e
desinfectante, “meto duas luvas ao mesmo tempo”, afirma. “Estou um bocadinho
nervosa, chego a casa e não saio. Já chorei. As regras têm que ser
cumpridas.”
Muitos estão
empregados na construção civil e na limpeza, com trabalhos precários. Como
Josefina, não pararam de trabalhar durante o estado de emergência, explica-nos
Aida Marrana. Ou então, entre os que pararam, há empregadas de cafés, ajudantes
de cozinheira que ficaram em casa com o fecho dos estabelecimentos, sem direito
a nada por não terem contrato.
Entre os que
pararam, há empregadas de cafés, ajudantes de cozinheira que ficaram em casa
com o fecho dos estabelecimentos, sem direito a nada por não terem contrato
Há quem esteja
infectado e vá trabalhar porque não tem alternativa, refere: “A comida não
chega a casa.” Existe ainda vergonha de quem não quer revelar que está
infectado para não ser apontado na rua.
José Manuel
Salvador, irmão missionário da igreja de Santiago de Camarate, que tem apoiado
a população de Loures e está a acompanhar a situação em vários bairros sociais
onde o problema da precariedade se repete, afirma: “Os casos que estão a
aumentar são o resultado do trabalho de prevenção que não se fez.” E acrescenta
que “estas pessoas trabalharam nas obras, fizeram as limpezas, estiveram nos
lares. Acabam por ser ainda mais estigmatizadas” por causa do covid-19.
As ruas estão
especialmente vazias. Eram 8h e já entravavam no bairro carrinhas da polícia de
intervenção rápida, com a presença musculada de agentes. A operação da Polícia
Judiciária e da PSP terminou com a detenção de sete jovens entre os 18 e os 24
anos. “Fecharam a rua. Gerou-se um problema porque muita gente não podia sair
da casa por causa da covid e já saiu”, diz Aida Marrana. “Claro que as pessoas
juntam-se, nem que seja para apoiar, por solidariedade. A ocasião não era
própria, podiam ter feito noutra altura”. Lamenta a ausência de polícia de
proximidade, um projecto que existiu há alguns anos mas que desapareceu.
Aida Marrana
conta que estão a dar apoio alimentar a mais de 120 famílias, o dobro do número
registado antes da pandemia. Começaram a fazer entregas em casa a quem não pode
sair por ter covid-19. “Neste momento são famílias inteiras”, que podem chegar
a “oito ou nove pessoas, sem condições” a viverem na mesma casa. Muitos não
conseguem sequer fazer isolamento. O problema das condições de habitação é
anterior à pandemia. A autarquia fez “obras, pintou a fachada porque há casas
que têm infiltrações que antes não tinham, com tectos a cair”, relata.
No topo da
avenida que atravessa a Quinta da Fonte, os cafés continuam abertos, vem gente
de fora, os moradores queixam-se. Por um lado, a economia paralela permite a
subsistência de pessoas que não tem outro modo de vida, refere Aida Marrana,
mas por outro torna-se um foco de possível contágio.
A presença de
jovens na rua é criticada por alguns habitantes que têm medo do contágio;
queixam-se também do barulho. Catarina Canelas, da associação de moradores,
conta que as actividades que existiam para a ocupação de jovens, como o estúdio
de música ou uma sala com computadores, estão inactivos há alguns anos; também
não há um espaço para convívio de idosos. Já apresentaram vários projectos à
autarquia mas ainda não tiveram resposta. “O problema é a habitação social: não
é justo um T1 e um T2 com três ou quatro famílias, as pessoas têm que vir para
a rua conviver e esses convívios às vezes não são acompanhados, nem tiveram
apoio”, comenta José Salvador.
“O problema é a
habitação social: não é justo um T1 e T2 com três ou quatro famílias, as
pessoas têm que vir para a rua conviver e esses convívios às vezes não são
acompanhados, nem tiveram apoio”
Irmão José Manuel
Salvador
Chega uma
moradora que se queixa: “Esta doença é um monstro, a gente não vê e não sabe
quem tem. Disse que isto ia arrebentar aqui, que era uma bomba; porque está
tudo junto”, lamenta. Nunca viu as autoridades de saúde a distribuir máscaras,
nem a dar informação. Pede que vão ao bairro testar moradores. Outra habitante,
de 60 anos, refere: “É uma infecção que não vimos, andamos com receio uns dos
outros, até em casa. Era justo haver uma campanha.”
Mas as
autoridades e os políticos não têm estado no bairro, queixam-se vários
moradores. Rosária Miranda, assessora da direcção da Associação de Moradores
Unidos da Apelação, revela que só em Maio é que a autarquia colocou um papel no
seu prédio a avisar os moradores que podiam ir buscar máscaras para a família
entre as 9h30 e as 12h do dia 22 de Maio. É um horário manifestamente difícil
de cumprir para quem trabalha, critica. Diz ainda que nunca viu informação
sobre o coronavírus afixada nos prédios. “Houve um descaso em relação à Quinta
da Fonte. Só agora com tantas noticias é que se tornou uma preocupação.” A
associação irá distribuir 3 mil máscaras.
Não foi por falta
de alertas, segundo Aida Marrana que, há duas semanas, antes da data anunciada
para abertura do ATL a 1 de Junho, enviou um e-mail à DGS a dizer que tinham
várias crianças contaminadas. Mas não receberam resposta: “Só queríamos
orientação”, diz. O ATL não vai abrir por enquanto mas o problema, daqui a 15
dias, mantém-se: “Não quero ser acusada de ser um foco de infecção”, diz.
Queixa-se também de falta de acompanhamento próximo pelas entidades de saúde
dos casos que já foram identificados.
Que respostas
deveriam ser dadas? Apoios financeiros para quem não pode trabalhar ou fazer
uma articulação entre todas as instituições, respondendo individualmente a cada
família, defendem. “Tem que ser repensada toda uma nova forma de habitação que
não se adequa a estas necessidades. E investir muito na educação”, diz José
Manuel Salvador. “É preciso rever a nível de formação de escolas, uma nova forma
de fazer escola. Senão, estamos a propagar os estigmas que dividem.”
É que, com a
pandemia, e o ensino à distância, também ficou exposto o fosso na educação:
“Descobrimos que muitos meninos nem televisão têm em casa”, conta Aida Marrana.
No ATL têm feito a mediação entre a escola e alunos, fotocopiam os trabalhos de
casa e depois digitalizam-nos e enviam-nas para a escola. “Muitas crianças
acabam por ficar sozinhas, se os pais saem para trabalhar, nem todos cumprem os
horários de estudo.”
José Manuel
Salvador preocupa-se ainda com a saúde mental dos moradores, algo que pouco tem
sido abordado. “É um problema gravíssimo, já antes do vírus. E é resultado das
condições em que as pessoas vivem.”
“Rejeitamos a
ideia de que este é um problema dos bairros municipais”, diz Bernardino Soares,
autarca do PCP. Garante que há “15 dias” alertou o Governo e a DGS para a
necessidade de “ir para o terreno, verificar caso a caso”
Bernardino
Soares, autarca de Loures
Não é um
“problema dos bairro municipais”, diz autarca
Foi preciso soar
o alarme na semana passada relativamente ao aumento de casos em determinadas
zonas como Loures para começar a haver respostas, referem. O presidente da
câmara, Bernardino Soares, responde ao PÚBLICO: “Rejeitamos a ideia de que este
é um problema dos bairros municipais.” Garante que há “15 dias” alertou o
Governo e a DGS para a necessidade de “ir para o terreno, verificar caso a
caso”: “Isto tem sido ignorado até ao final da semana passada”, acusa.
Esta terça-feira,
equipas conjuntas do município, da Saúde e da Segurança Social começaram a
fazer visitas ao terreno. Objectivos? Fazer “testes a contactos de riscos, dar
alternativa para colocar as pessoas infectadas num alojamento de emergência
quando não há condições para isolamento e garantir subsistência a quem não tem
alternativas para não ter de ir trabalhar”.
Fora dos planos
está a hipótese de criar uma cerca sanitária, ou de fechar cafés, pois o
essencial é sensibilizar as pessoas para cumprirem as regras sanitárias,
defende o autarca. “Era o que faltava que as entidades da administração central
que não fizeram o trabalho de rede minucioso, que é o que garante travar a
pandemia, recorressem a soluções musculadas que não resolvem nenhum
problema.”
O delegado de
saúde da ARSLVT explica que irão visitar determinados bairros em Loures mas
ainda nada está definido quanto a medidas a aplicar. “Não sabemos que dinâmicas
vamos encontrar.”
Garante que, ao
contrário do que aconteceu no bairro da Jamaica — onde a polícia foi fechar
cafés este sábado numa intervenção musculada que gerou críticas — não é
objectivo principal encerrar estabelecimentos. “Não é isso que resolve os
problemas”. O problema, sublinha, “é o comportamento das pessoas” que não
respeitam as regras da DGS.
Bernardino Soares
defende-se das críticas sobre a habitação: diz que foram investidos 3,5 milhões
no exterior dos prédios e que irão agora começar a fazer obras no interior. Já
sobre a sobrelotação refere que “há algumas habitações” que foram concebidas
para uma pessoa mas “há uma maior dificuldade de controlar quem está”. “Temos
muitas pessoas que se vão juntando às pessoas que estão cá, há sobrelotação mas
essa não é a regra generalizada.”
O autarca diz que
há um problema com os transportes públicos que não foi resolvido: “A maior
transportadora está a funcionar a 55% do que é habitual e mesmo quando está a
100% já funciona mal. Temos vindo a dizer ao Governo que é preciso uma injecção
de verbas para garantir os 100%.”
“Tenho mais medo
de andar nos transportes do que no hospital”
Já a Rodoviária
de Lisboa diz que desde 1 de Junho o serviço das carreiras que servem o bairro
da Quinta da Fonte (312, 313 e 301) foi reforçado e comenta que as camionetas
têm uma lotação máxima de 80 lugares, mas para cumprir a legislação só é
permitido transportar 53 passageiros. “Sabemos, no entanto, que a percepção de
um autocarro com 53 passageiros é a de que está acima da ocupação máxima, o que
não corresponde à realidade.”
tp.ocilbup@hgj
Sem comentários:
Enviar um comentário