Covid-19: a próxima pandemia vai chegar se não mudarmos a
forma como interagimos com a vida selvagem
Investigadores afirmam que a pandemia de covid-19 deve
ser encarada como um aviso mortal. Ou seja, devemos pensar nos animais como
parceiros, cuja saúde e habitats têm de ser protegidos para evitar o próximo
surto global.
Karin Brulliard 7 de Abril de 2020, 17:19
Onovo
coronavírus, que já atravessou o mundo para infectar mais de um milhão de
pessoas, começou como tantas pandemias e surtos no passado: dentro de um
animal. O hospedeiro original do vírus foi quase certamente um morcego, tal
como aconteceu com o ébola, o SARS, o MERS e vírus menos conhecidos como o
Nipah e o Marburg. O VIH migrou para os seres humanos há mais de um século,
vindo de um chimpanzé. O influenza A "saltou” das aves para os porcos e
para as pessoas. Os roedores espalharam a febre de Lassa na África Ocidental.
Mas, segundo os cientistas que estudam as doenças zoonóticas, que passam dos
animais para as pessoas, o problema não são os animais, somos nós.
Os animais
selvagens sempre foram portadores de vírus. O comércio mundial de animais
selvagens no valor de milhares de milhões de dólares, a intensificação da
agricultura, a desflorestação e a urbanização estão a aproximar as pessoas dos
animais, dando aos seus vírus aquilo que precisam para nos infectar:
oportunidade. A maioria falha, mas alguns são bem-sucedidos. Muito poucos, como
o SARS-CoV-2, triunfam, ajudados por uma população humana interligada que pode
transportar um agente patogénico para todo o mundo e em poucas horas.
À medida que o
mundo se esforça por fazer face a uma crise económica e de saúde pública sem
precedentes, muitos investigadores da doença afirmam que a pandemia de covid-19
deve ser encarada como um aviso mortal. Isso significa pensar nos animais como
parceiros, cuja saúde e habitats devem ser protegidos para evitar o próximo
surto global.
“As pandemias no
seu conjunto estão a aumentar de frequência”, afirmou Peter Daszak, ecologista
de doenças e presidente da EcoHealth Alliance, uma organização de saúde pública
que estuda as doenças emergentes. “Não é um acto aleatório de Deus. É causado
pelo que fazemos ao meio ambiente. Temos de começar a ligar essa cadeia e fazer
estas coisas de forma menos arriscada.”
Segundo os
cientistas, cerca de 70% das doenças infecciosas emergentes nos seres humanos
são de origem animal e podem existir cerca de 1,7 milhões de vírus por
descobrir na vida selvagem. Muitos investigadores estão à procura dos próximos
vírus que poderão passar de animais para os humanos. Os pontos mais propícios à
propagação de vírus têm três coisas em comum, disse Daszak: muitas pessoas,
diversas plantas e animais e rápidas mudanças ambientais.
Os roedores e
morcegos são dos mais prováveis hospedeiros para as doenças zoonóticas. Cerca
de metade das espécies de mamíferos são roedores e cerca de um quarto são
morcegos. Os morcegos constituem cerca de 50% dos mamíferos nas regiões
tropicais com maior biodiversidade e, embora sejam valiosos polinizadores e
devoradores de pragas, são também espantosos transmissores de vírus. Têm um
sistema imunitário que é uma espécie de super-herói que lhes permite
tornarem-se “reservatórios de muitos agentes patogénicos que não os afectam,
mas que podem ter um impacto tremendo em nós se forem capazes de dar o
‘salto'”, afirmou Thomas Gillespie, ecologista de doenças da Universidade de
Emory, no estado da Geórgia, nos Estados Unidos da América. E cada vez tornamos
o “salto” mais fácil.
No final do ano
passado, um coronavírus de morcego-de-ferradura surgiu na China, onde o
comércio de animais exóticos é impulsionado por gostos de luxo, pela caça e
pela procura de produtos utilizados para fins medicinais. No wet market
[mercados de animais selvagens ao ar livre] em Wuhan ligado aos primeiros
casos de covid-19, pelo menos uma loja vendeu animais como crias de lobo e
gatos-civeta para consumo. Estes mercados, dizem os especialistas, apresentam
animais stressados e doentes, empilhados em gaiolas, num ambiente repleto de
fluidos corporais, onde também se abatem animais e corta carne — condições
ideais para o “salto” do vírus entre espécies.
Embora os
morcegos-de-ferradura sejam caçados e comidos na China, não é fácil perceber
como é que o vírus do morcego infectou as primeiras pessoas. O rasto dos
primeiros casos levou ao mercado de animais, mas o espaço foi fechado e
higienizado antes de os investigadores conseguirem localizar o animal que
poderia estar implicado. E provavelmente esta nem foi a localização do tal
“salto” do vírus para os humanos em si, o que poderá ter acontecido semanas
antes, possivelmente em Novembro. Alguns dos primeiros casos não tinham
qualquer ligação com o mercado de animais.
Como o novo
coronavírus não é idêntico a nenhum vírus conhecido de morcego, houve algures
entre o morcego e o ser humano uma mutação em pelo menos um intermediário,
talvez o ameaçado pangolim, um mamífero muito traficado pelas suas escamas.
O surto de SARS
de 2003, que acabou por ser associado aos morcegos-de-ferradura por cientistas
que se embrenharam em escorregadias grutas forradas por guano [acumulação de
fezes de morcegos e aves], foi também rastreado até aos mercados de animais
selvagens. Os cientistas acreditam que esse coronavírus "saltou” de
morcegos para gatos-civeta — mamíferos semelhantes a gatos, vendidos para carne
— para humanos.
“Um dos
principais ambientes para a ocorrência destes ‘saltos’ são os mercados e o
comércio internacional de animais selvagens”, disse na quinta-feira Chris
Walzer, director executivo do programa de saúde global da Wildlife Conservation
Society (WCS), aos jornalistas.
Em África, a
diminuição das populações de grandes mamíferos faz com que a caça aponte o alvo
a espécies cada vez mais pequenas, incluindo roedores e morcegos, afirmou
Fabian Leendertz, veterinário que estuda doenças zoonóticas no Instituto Robert
Koch, em Berlim. Embora alguns animais sejam consumidos para subsistência ou
fins tradicionais, as vendas de carne exótica são também uma “enorme economia”
nas megacidades em rápido crescimento. “É algo que eu pararia primeiro”, disse.
O risco reside “numa maior pressão de caça e numa maior taxa de contacto para
aqueles que vão caçar e para aqueles que depois tratam a carne”.
O comércio
internacional de animais de estimação exóticos, como répteis e peixes, também é
preocupante, porque os animais raramente são testados para detectar agentes
patogénicos que possam adoecer os humanos, disse Daszak. Assim como as grandes
“explorações fabris” repletas de animais, afirma Gillespie. “Quando penso no
principal factor de risco é a gripe A, que está ligada à produção de porcos e
galinhas”, disse.
Mas a a criação
de animais não é o único local em que um vírus pode passar a barreira de
espécies. Os seres humanos partilham cada vez mais espaço com a vida selvagem e
alteram-na de forma perigosa, dizem os investigadores. A doença de Lyme,
causada por uma bactéria, propaga-se mais facilmente no Leste dos Estados
Unidos porque as florestas fragmentadas têm menos predadores, como raposas e
gambás, que comem ratos que albergam carraças que espalham Lyme, dizem estudos.
A construção de edifícios leva a uma coexistência mais estreita com alguns
animais selvagens, incluindo morcegos, disse Leendertz.
Os cientistas
apontam o aparecimento na Malásia, em 1998, do vírus Nipah, que matou centenas
de pessoas em vários surtos na Ásia, como um exemplo vívido de um vírus que
passou a barreira e “saltou” para os humanos, alimentado pelas alterações
ambientais e pela intensificação da agricultura. A desflorestação de florestas
tropicais para a produção de óleo de palma e madeira deslocou
morcegos-da-fruta, alguns dos quais acabaram em explorações de suínos, onde
também cresciam mangueiras e outras árvores de fruto. Os morcegos “caem mais do
que comem”, disse Gillespie — a saliva e as fezes infectaram os porcos que se
encontravam em baixo. Os porcos adoeceram e infectaram os trabalhadores
agrícolas e as pessoas próximos da indústria.
“Onde quer que
estejamos a criar novas interfaces, este é provavelmente um risco que temos de
considerar seriamente”, afirmou. “Está a forçar a vida selvagem a procurar
novas fontes de alimento. Está a forçá-los a mudar o seu comportamento de
formas que os colocam em melhor posição para transferir o patogénico para nós.”
À medida que a
população humana da Terra se aproxima dos 8 mil milhões, ninguém pensa que a
interacção entre seres humanos e animais vá diminuir. A chave está em reduzir o
risco de um vírus que passe de animais para humanos, dizem os cientistas — e
não em matar morcegos. Mas reconhecem que as pressões culturais e económicas
tornam esta mudança difícil.
A Wildlife
Conservation Society e outros grupos exortam os países a proibir o comércio de
animais selvagens para fins alimentares e a fechar os mercados de animais
vivos. Anthony S. Fauci, o maior especialista em doenças infecciosas dos EUA e
o rosto da resposta do país à pandemia, disse na sexta-feira que a comunidade
mundial deveria pressionar a China e outras nações que acolhem esses mercados
para os fechar. “Fico perplexo como, quando temos tantas doenças que emanam
dessa invulgar interface humano-animal, não nos limitemos a desligá-la”, disse
Fauci à Fox News.
A China, que
interrompeu brevemente o comércio de gatos-civeta após o surto da SARS, anunciou
em Fevereiro uma proibição do transporte e venda de animais selvagens, mas
apenas até que a epidemia do novo coronavírus seja eliminada. É necessária
legislação permanente, afirmou Aili Kang, directora executiva do programa WCS
para a Ásia.
Nem todos estão
de acordo. As proibições podem fazer com que os mercados se movimentem nos
bastidores, dizem alguns. Daszak observou que os ocidentais também comem
animais selvagens frutos do mar e veados, por exemplo. Da mesma forma, diz, o
comércio deve ser regulamentado e os animais devem ser rigorosamente testados
quanto à presença de agentes patogénicos.
“É necessária uma vigilância mais rigorosa das
doenças dos animais selvagens" — encará-los como “sentinelas”, disse
Leendertz. Certo é que há uma percepção generalizada de que a construção em
habitats selvagens pode alimentar crises de saúde pública, afirmou Gillespie.
Muitos investigadores afirmam que a actual pandemia sublinha a necessidade de
uma abordagem mais holística de “saúde única”, que encara a saúde humana,
animal e ambiental como estando interligadas.
“É necessário que haja uma mudança cultural a
partir de um nível comunitário sobre a forma como tratamos os animais, a nossa
compreensão dos perigos e dos riscos para a biossegurança a que nos expomos”,
afirmou Kate Jones, professora de Ecologia e Biodiversidade do University
College London. “Isso significa deixar os ecossistemas intactos, não
destruí-los. Significa pensar de uma forma mais duradoura.”
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