OPINIÃO
Sacudir a água do capote
O caldo cultural de um país com uma tal falta de sentido
crítico e sem qualquer vontade de definir fronteiras entre o aceitável e o não
aceitável só pode dar asneira.
Susana Peralta
21 de Abril de
2023, 6:23
https://www.publico.pt/2023/04/21/opiniao/opiniao/sacudir-agua-capote-2046921
Há um equilíbrio
difícil entre a liberdade de dois adultos manterem relações íntimas consensuais
e o óbvio conflito de interesses quando um desses adultos tem o poder de dar
notas ou avaliar o outro em provas académicas. Existem regras claras sobre isto
em várias universidades estrangeiras.
Por exemplo, as
da londrina UCL proíbem “relacionamentos próximos e íntimos entre pessoal
docente e administrativo e alunos relativamente aos quais estes tenham
responsabilidade direta, ou envolvimento, nos estudos” ou em outros aspetos da
sua vida académica. Com os restantes estudantes, a relação não é proibida, mas
os membros do pessoal docente e não docente são obrigados a declarar à
universidade qualquer relação “próxima ou íntima”, no prazo de um mês.
Estas regras
servem, entre outras coisas, para limitar a possibilidade de assédio sexual e
para criar uma cultura de absoluta intransigência relativamente ao
relacionamento entre pessoas com poder académico e aquelas que dependem desse
poder.
Em Portugal, este
debate não existe. A diretora da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
assumiu em entrevista ao Nascer do Sol vários casos de casamentos entre
ex-alunas e os seus ex-professores, precisando: “Sobretudo (...) relacionamento
com ex-alunos (...) não tenho conhecimento que tal aconteça entre professores e
alunos”. Não ter conhecimento de que exista é diferente de ter conhecimento de
que não existe. A pergunta óbvia – que o jornal não fez – era se há códigos de
conduta que desaconselhem ou proíbem relações entre docentes e estudantes ou se
há obrigação de reporte de conflito de interesses.
Em 2016, num
artigo sobre Elvira Fortunato e o seu marido, o Expresso relatava que se
casaram durante o doutoramento da cientista, orientado pelo professor-marido.
Parece evidente, com a exigência de hoje, que o orientador devia ter abdicado
do seu papel formal no percurso da jovem cientista depois do casamento (ainda
que na altura não fosse a norma) – mas não ocorreu aos jornalistas questionarem
a falta, então como agora, dessa regra de conduta evidente para evitar
conflitos de interesses.
O caldo cultural
de um país com uma tal falta de sentido crítico e sem qualquer vontade de
definir fronteiras entre o aceitável e o não aceitável só pode dar asneira.
O programa “A
Prova dos Factos”, da RTP, mostrou a cultura de encobrimento sistemático que
prevalecia no Centro de Estudos Sociais, com recurso a transcrições de emails e
a testemunhos – sob anonimato, claro. É revelador que até agora todos os
testemunhos de vítimas que se identificaram sejam de pessoas que já não estão
ligadas ao CES e que apenas uma delas esteja em Portugal.
Foi exatamente há
um ano que a Universidade de Lisboa instaurou um processo disciplinar a Miguel
Lemos, o professor da Faculdade de Direito de quem partiu a iniciativa de
propor ao conselho pedagógico a abertura de um canal de reporte, que recebeu 50
relatos de assédio e discriminação. O processo disciplinar pretendia determinar
se Miguel Lemos teria ou não identificado um professor catedrático que
alegadamente exercera pressão sobre a presidente da Associação Académica com
frases como “veja lá, não se prejudique” ou “tenha cuidado, há coisas de que é
melhor não falar”.
No comunicado em
que anuncia o processo, a diretora da faculdade escreveu que “a presidente da
Associação Académica sempre negou a existência dessas pressões”. Como bem
assinalou Miguel Lemos, esta afirmação da diretora viola o dever de
imparcialidade no processo disciplinar, mas também pressiona a aluna.
Coloque-se no lugar desta jovem e imagine que lhe perguntam se foi vítima de
pressão por um professor catedrático, depois de a diretora da faculdade lhe ter
atribuído declarações que negam essas pressões. É fácil imaginar a resposta que
daria e é ainda mais fácil perceber que essa resposta não tem grande valor
informativo, dado o contexto.
Igualmente há um
ano foram revelados os resultados de um inquérito do Instituto Superior
Técnico, que revelou centenas de queixas de assédio moral e sexual e
identificou situações de risco grave de saúde mental dos estudantes.
Pressionado pela comunidade estudantil, o presidente do Técnico anunciou um
reforço dos serviços de saúde mental da instituição, mas não se coibiu de
avisar que a sua missão “é formar engenheiros, não é dar apoio psicológico”.
A cumplicidade
dos responsáveis do meio académico com o assédio faz-se também por omissões. Em
dezembro, a Federação Académica de Lisboa revelou os resultados de um inquérito
online, no qual dois em cada dez estudantes universitários afirmava já ter sido
vítima ou testemunha de assédio. Nenhuma faculdade anunciou medidas.
Então e os responsáveis
máximos pela academia? O presidente do Conselho de Reitores fez saber que as
denúncias têm de ser investigadas, que o apoio às vítimas deve ser prioritário
e insistiu na criação de mecanismos acessíveis para “identificar, avaliar,
punir e dissuadir casos de assédio”. Ora: os reitores perderam um ano, desde
que se conheceram os primeiros relatos de assédio com números substanciais.
Surpreende, por isso, que em vez desta manifestação de intenções não tenham
anunciado um calendário de ação para todas as universidades do país criarem os
necessários mecanismos e procedimentos.
A Agência de
Avaliação e Acreditação do Ensino Superior (A3ES) anunciou que vai avaliar se
as instituições têm “mecanismos e estruturas para precaver os desvios”, sem
detalhar quais e o calendário de implementação.
Como
manifestações de intenções, ambas as posições são bem-vindas, mas é um pouco
estranho que tenhamos chegado aqui sem mais do que isso. Fica no ar a perceção
de declarações de “virtue signaling”, em face dos relatos escabrosos em torno
do CES e da queda de Boaventura Sousa Santos, inclusive, de instâncias
científicas internacionais.
Quem nem sequer
tentou assinalar virtude foi a ministra da Ciência e Ensino Superior, Elvira
Fortunato, que, azar o nosso, é a responsável máxima pela academia em Portugal.
A ministra explicou que estes problemas podem ser resolvidos com base na
autonomia das universidades, invocando depois uma amálgama perfeitamente
ineficaz: “Desde o código de conduta, desde o provedor do estudante, desde os
próprios conselhos pedagógicos, os diretores de curso”. Se há coisa que sabemos
das melhores práticas internacionais é que são necessários canais próprios para
tratar estes assuntos melindrosos.
Depois, afirma
que “o ministério está de portas abertas para ajudar naquilo que for
necessário”, colocando-se numa posição passiva, ao invés de liderar este
processo, como lhe é exigido. Quem vai pedir ajudar ao ministério? As vítimas
de assédio? E fazem como? Enviam um email para o gabinete da ministra? Ou serão
as autoridades das instituições de ensino superior, que até hoje mostraram tão
pouca vontade de tratar este assunto como ele precisa de ser tratado, que vão
pedir assistência técnica ao ministério?
O mais grave foi
quando afirmou não acreditar que “haja represálias a esse nível”, que lhe
parece que as instituições não são “muito conservadoras” e que não “há um medo
de represálias”. Termina, perentória: “Isso no dia de hoje já não existe”. Na
semana em que ficámos a conhecer a cultura sistemática de encobrimento no CES e
em que se cumpre um ano da instauração do processo disciplinar a Miguel Lemos,
ou a ministra anda muito distraída, ou está tão acomodada ao statu quo que
prefere mantê-lo.
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