sexta-feira, 21 de abril de 2023

Lula, o 25 de Abril e a “reductio ad Venturum”




OPINIÃO

Lula, o 25 de Abril e a “reductio ad Venturum”

 

A estratégia é dizer que quem é contra Lula no 25 de Abril da Assembleia está a ir atrás da agenda do Chega e não se distingue desse partido.

 

Francisco Mendes da Silva

21 de Abril de 2023, 6:31

https://www.publico.pt/2023/04/21/opiniao/opiniao/lula-25-abril-reductio-ad-venturum-2046904

 

A melhor forma de vencer uma discussão é sempre a de escolher a própria discussão. Se conseguirmos determinar à partida o tema em debate, escolhendo aquele em que nos é mais fácil estar do lado certo, temos o sucesso garantido. É como jogar futebol mudando a posição das balizas à medida das conveniências.

 

No caso da vinda de Lula da Silva a Portugal, a única questão importante é a de saber se faz sentido que Lula seja o protagonista da sessão comemorativa do 49.º aniversário do 25 de Abril na Assembleia da República. Foi ela, e só ela, que realmente originou a polémica e suscitou divisões na opinião pública.

 

Em face das dúvidas sensatas que muitas pessoas manifestaram, em todo o espectro ideológico e partidário, cedo os defensores da ideia começaram a desviar a conversa, colocando a discussão em termos que nunca foram os da esmagadora maioria dos críticos.

 

Primeiro desvio: Lula não vai protagonizar a sessão comemorativa do 25 de Abril, mas uma sessão separada de boas-vindas. Poupem-me ao cinismo: uma sessão adjacente, minutos antes, no Parlamento, é a mesma sessão do 25 de Abril.

 

Segundo desvio: quem vai ser recebido é o Presidente do Brasil, um país amigo com o qual temos uma História partilhada, e não a pessoa concreta que circunstancialmente exerce o cargo. Além disso, nem as prioridades geoestratégicas do Governo brasileiro nem as opiniões de Lula sobre os assuntos internos e internacionais devem impedir que Portugal tenha com o Brasil relações diplomáticas normais, serenas e privilegiadas.

 

O problema desta argumentação é que cai logo pela base, porque as pessoas que a usam, perguntadas sobre se Bolsonaro devia ter a mesma honra, respondem que não. Eu cá também não gostaria desse protofascista a discursar no nosso 25 de Abril.

 

Seja como for, o ponto é este: excluindo o Chega, cuja função no sistema é não levar nenhuma instituição a sério, quem é que se opôs a que Lula fosse o protagonista do 25 de Abril com a tese de que Portugal deve esfriar as relações diplomáticas com o Brasil, por causa do seu Presidente circunstancial? Ninguém.

 

Mal comecei a assistir a esta desconversação, percebi rapidamente onde é que ela iria parar. Iria parar, como era óbvio, a mais uma tentativa de colar toda a direita à extrema-direita, um dos desportos tradicionais da esquerda. A estratégia é dizer que quem é contra Lula no 25 de Abril da Assembleia está a ir atrás da agenda do Chega e não se distingue desse partido.

 

Quem melhor o fez foi Marina Costa Lobo, num artigo anteontem aqui no PÚBLICO (“Lula, o 25 de Abril e a direita portuguesa”). Marina Costa Lobo diz que este caso oferece ao PSD a possibilidade de traçar uma linha vermelha com o partido de André Ventura. O excerto fundamental reza assim: “O convite a Lula continua a fazer sentido, porque este representa a defesa da democracia liberal hoje, quando se trata de a defender internamente. Por isso a política brasileira recente deve servir para distinguir entre partidos de direita: o PSD (…) tem aqui uma boa oportunidade para acolher Lula e demarcar-se da visão democrática iliberal bolsonarista apoiada pelo Chega.”

 

 

Em 1950, no seu livro Direito Natural e História, o filósofo político Leo Strauss cunhou em latim macarrónico a expressão “reductio ad Hitlerum”. Strauss inspirou-se no argumento da “reductio ad absurdum”, o tipo de argumento em que alguém assume uma determinada hipótese para a partir dela extrair uma consequência absurda, a fim de demonstrar que o pressuposto original está errado. Enquanto este serve para desqualificar logicamente o adversário, a “reductio ad Hitlerum” serve para o desqualificar moralmente, através de uma equiparação ridícula a Hitler ou aos nazis. Um exemplo radical: Hitler era vegetariano; logo, os vegetarianos são tão maus quanto Hitler.

 

Pelos vistos, hoje em Portugal há quem queira usar um argumento parecido: a “reductio ad Venturum”. Se alguém coincidir ocasionalmente numa opinião cujo sentido final é o de uma opinião de André Ventura, mesmo que as premissas sejam distintas ou opostas, então é porque é igual a ele.

 

Eu não sou do PSD nem de nenhum outro partido. Mas, como o leitor habitual desta coluna deve saber, sou em geral daquilo a que esta semana o deputado Ventura, com a sua lendária elegância, chamou “direita maricas”. Isso não me impede de achar que o protagonismo de Lula da Silva na sessão do 25 de Abril é uma péssima ideia, sem ter de ser considerado cúmplice do Chega ou da bagunça que se está a preparar para o dia.

 

E não é pelas razões de Ventura. É até por estar próximo das preocupações de Marina Costa Lobo. No início do 50.º ano da democracia, quando devíamos estar a fazer todos os esforços para que a data fosse um símbolo de união, ter ali uma figura tão polémica e divisiva quanto Lula é um erro colossal cujas consequências só interessam a quem quer radicalizar ainda mais a sociedade portuguesa.

 

No início do 50.º ano da democracia, quando devíamos estar a fazer todos os esforços para que a data fosse um símbolo de união, ter ali uma figura tão polémica e divisiva quanto Lula é um erro colossal

 

Na verdade, poderia dizer o mesmo de qualquer outro líder internacional. Todos os líderes relevantes têm anticorpos em alguma parte do espectro ideológico, que tornariam a sua presença problemática (até Zelensky o foi).

 

Mas é bom que não esqueçamos as razões pelas quais Lula é justamente considerado polémico. Por conveniência táctica, Marina Costa Lobo concentra-se no que ele “defende internamente”. Mesmo aí, lamento, o facto de ter lutado contra uma ditadura e o de ter enfrentado Bolsonaro não o qualificam automaticamente para dar uma prédica sobre democracia liberal no 25 de Abril. Não preciso de passar por cima da sua presunção de inocência para dizer aquilo sobre o que não há dúvida: Lula é o líder histórico de um partido que fez da corrupção um modo de vida e governação. Esse é um modo de vida entranhado, que não foi ele que criou? Certo. Só que tal não diminui a circunstância de ele ser o maior representante de uma cultura política que não tem lições para nos dar.

 

Ao que acresce que o que Lula anda a fazer externamente não pode ser atirado para debaixo do tapete. Por um lado, porque é nesse plano que se jogam as relações entre Estados. Por outro, porque o que aí o Presidente do Brasil tem demonstrado é que, no principal tema em que hoje se manifesta o combate entre a democracia liberal e ao autoritarismo – a guerra na Ucrânia –, está do lado deste último. Aliás, também ao lado de Bolsonaro.

 

Terei eu de aceitar alegremente que, na próxima semana, Portugal dê o palco da celebração mais solene da sua democracia a quem, esta semana, recebe Sergei Lavrov de braços abertos? Quem defende que se deixe de ajudar militarmente a Ucrânia e que esta se tenha de render às tropas de Putin? Era o que mais me faltava.


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