OPINIÃO COVID-19
As democracias e a tentação do fascismo digital
No actual contexto político, há sérios motivos para
recear que a tecnologia digital, mesmo em democracias, seja cada vez mais usada
e abusada para controlar e reprimir a liberdade do cidadão.
JOSÉ PEDRO
TEIXEIRA FERNANDES
20 de Outubro de
2020, 15:19
https://www.publico.pt/2020/10/20/sociedade/opiniao/democracias-tentacao-fascismo-digital-1935992
1. Provavelmente
um dos efeitos mais perversos e duradouros da pandemia da covid-19 vai ser o
impacto profundamente negativo nos direitos e liberdades fundamentais do
cidadão. O clima de medo instalado na sociedade favorece tais abusos políticos.
Com a finalidade preservar a saúde pública, vemos hoje um pouco por todo o
mundo que os governos que usam — e abusam — de medidas dos mais diversos tipos
restritivas dos direitos e liberdades fundamentais.
O mais preocupante
é que essas tendências não são apenas observáveis em regimes autoritários, como
seria expectável. Podem já detectar-se nas democracias liberais, ainda que sob
formas à primeira vista benignas e disfarçadas de promoção da inovação digital
para beneficiar o cidadão. É contra tais tendências que aqueles queiram
continuar a viver em democracia e liberdade vão ter de se habituar a ser mais
vigilantes e a lutar sem concessões. Caso contrário, podem estar a abrir a
porta a uma nova era que, sem exageros retóricos, tem as características de um
novo fascismo digital.
2. O exemplo dos
anos 1920 e 1930 tem sido frequentemente invocado a propósito dos nacionalismos
e dos populismos que ameaçam as democracias liberais. Mas há uma lição talvez
pouco lembrada desse período, que é a do papel instrumental que a tecnologia
teve na ascensão e afirmação dos diversos autoritarismos da época. Tal como
hoje a Internet, os telemóveis e as redes sociais, na primeira metade do século
passado o cinema, sobretudo pela via dos documentários propagandísticos, e a
rádio, pela transmissão de discursos e mensagens, foram habilmente utilizados
pelos poderes políticos da época para se afirmarem. Provavelmente sem essas
tecnologias (e outras) os diversos autoritarismos e totalitarismos, que
emergiram à direita e à esquerda — do fascismo ao estalinismo —, não teriam
tido meios de endoutrinação e de controlo eficazes da maioria da população.
3. As raízes do
autoritarismo sob a forma de fascismo digital, no sentido de uso pelo Estado
das tecnologias digitais para coarctar ou suprimir o espaço de autonomia e
liberdade do cidadão, são anteriores à pandemia da covid-19. É importante ter
em mente que a Internet e as tecnologias digitais são tendencialmente espaços
de liberdade dos cidadãos, mas apenas num contexto político democrático e onde
há limitações claras dos poderes intrusivos do Estado na esfera de autonomia
individual. Noutro contexto político, as mesmas inovações tecnológicas podem
transformar-se em sofisticados instrumentos de controlo e repressão do cidadão,
como usualmente fazem as ditaduras. A questão crucial é assim a do contexto
social e político onde é usada a tecnologia digital, não desta em si mesma.
A mesma
tecnologia que pode amplificar (e muito) a liberdade do cidadão e o seu
bem-estar, pode também fornecer (imensos) meios de controlo da população ao
Estado, impensáveis no passado. O uso da repressão pela força bruta não é agora
— em muitos casos — a forma mais eficaz de controlo e opressão do cidadão. Um
ambiente digital onde autoritarismo se esconde por detrás do progresso
tecnológico e da inovação, misturando-se com aplicações de diversão e outras
comerciais, é particularmente útil para as novas formas de fascismo digital se
implantarem subtilmente. Promove um ambiente favorável ao consumo e às
actividades lúdicas e cria cidadãos despolitizados e dóceis face ao poder, que
abrem mão dos seus direitos sem se aperceberem das consequências últimas de
certos usos da tecnologia digital.
4. Na última
semana tivemos um sério aviso de como não estamos imunes à tentação do
autoritarismo sob uma forma aparentemente benigna, mas na realidade próxima da
lógica do fascismo digital a coberto de proteger a saúde pública. A Proposta de
Lei nº 62/XIV, apresentada pelo Governo à Assembleia da República, tem o
seguinte teor: “Artigo 4.º Aplicação STAYAWAY COVID. É obrigatória, no
contexto laboral ou equiparado, escolar e académico, a utilização da aplicação
STAYAWAY COVID pelos possuidores de equipamento que a permita […] O utilizador
da aplicação STAYAWAY COVID que tenha um caso confirmado de COVID-19, nos
termos definidos pela DGS, deve proceder à inserção na referida aplicação do
código de legitimação pseudoaleatório previsto neste sistema […]. Artigo 5º
Fiscalização. A fiscalização do cumprimento das obrigações previstas na
presente lei compete à Guarda Nacional Republicana, à Polícia de Segurança
Pública, à Polícia Marítima e às polícias municipais.”
A
desproporcionalidade da proposta legislativa face à grave restrição que provoca
na liberdade individual — e a escassez dos ganhos do seu uso na saúde pública,
com tem sido amplamente evidenciado —, acrescida de um inaceitável
autoritarismo e intromissão na esfera privada que um controlo policial
representaria, só deixam espaço para a sua rejeição sem quaisquer concessões.
5. Importa deixar
claro que o problema não é o uso voluntário da STAYAWAY COVID por qualquer
cidadão que o pretenda fazer. Nada a opor quanto a isso. Num uso voluntário,
cada um avaliará livremente por si a utilidade na protecção contra a covid-19,
usando a aplicação ou não. Por isso, a comparação que tem sido feita entre esta
proposta legislativa, que pretende usar o poder do Estado para forçar o uso de
uma aplicação — e prevê coimas elevadas para os infractores —, com a utilização
corrente de outras aplicações comerciais / redes sociais (Facebook, Twitter,
WhatsApp, entre muitas outras), está mal colocada. Evade, por ingenuidade ou cinismo,
o problema crucial. A questão crucial aqui não é se tais aplicações comerciais
recolhem mais dados do utilizador do que a STAYAWAY COVID — e sabemos que
recolhem mais dados, talvez mais até do que legalmente deveria ser permitido.
Mas essa é outra discussão que é necessário ter nas nossas sociedades. A
questão crucial aqui é a da liberdade do uso e da possibilidade de, em qualquer
altura, podermos remover uma aplicação e renunciar à sua utilização livremente,
incluindo a possibilidade de recusarmos registar um caso de covid-19 no sistema
que alimenta essa informação.
Nesta proposta de
lei, agora aparentemente abandonada pelo Governo, o objectivo era obrigar-nos a
colocar num equipamento privado (smartphone), que cada um pode ou não ter de
acordo as suas posses materiais, necessidades e gostos — e pode ou não usar no
dia-a-dia —, uma aplicação que forças policiais (e outros) iriam controlar se
estávamos a utilizar. As repercussões intrusivas de tal proposta legislativa na
liberdade, na propriedade privada e na privacidade individual, desde logo pela
fiscalização policial do seu cumprimento, são expressão de um inequívoco
autoritarismo característico de ditaduras.
6. Em Estados
como a China uma proposta de lei deste tipo é normal e provavelmente seria aprovada
com o aplauso unânime da Assembleia Popular Nacional. Todavia, a China não é um
modelo de democracia e de direitos e liberdades fundamentais para ninguém. Pelo
contrário, é hoje o exemplo mais sofisticado e perverso de como a tecnologia
pode ser usada para vigiar e reprimir o cidadão. Desde a “grande firewall da
China” até ao sistema de créditos sociais — oficialmente, neste último caso,
trata-se apenas de usar uma aplicação em smartphones para premiar “bons
cidadãos” e dissuadir comportamentos desrespeitadores das normas sociais — a
tecnologia é usada para implantar um sistema de vigilância política de massas,
reprimir os opositores políticos e eliminar a esfera da vida privada.
Assim, aquilo a
que hoje estamos a assistir contém uma lição importante para os investigadores
e inventores da área da tecnologia que vivem em democracias liberais. Não
deviam esquecer a apropriação da tecnologia feita pelos autoritarismos e
totalitarismos dos anos 1920 e 1930. E menos ainda contribuir para que, no
mundo de hoje, Estados autoritários como a China e outros usem a tecnologia
para normalizar um novo fascismo digital que já está a contagiar também as
democracias.
As invenções
tecnológicas não são um bem absoluto, como por vezes imaginam, inebriados por
uma visão acrítica do progresso e da inovação. Na realidade, é o uso social da
tecnologia — e sobretudo o uso político feito pelos governos — que a pode
tornar um bem ou um mal. No actual contexto político, há sérios motivos para
recear que a tecnologia digital, mesmo em democracias, seja cada vez mais usada
e abusada para controlar e reprimir a liberdade do cidadão.
Investigador do
IPRI-NOVA - Universidade NOVA de Lisboa
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