sexta-feira, 28 de abril de 2023

HOJE 28-4-2023: Quarteirão dos graffiti na Fontes Pereira de Melo está num impasse há três décadas

 


IMAGENS de OVOODOCORVO


LISBOA

Quarteirão dos graffiti na Fontes Pereira de Melo está num impasse há três décadas

 

Prédio que ruiu no domingo é parte de conjunto de imóveis devoluto desde o início dos anos 90. Entre a preservação e a ameaça de demolição, têm sido muitos os projectos, mas nunca concretizados.

 


Samuel Alemão e Rui Gaudêncio

27 de Abril de 2023, 21:30

https://www.publico.pt/2023/04/27/local/noticia/quarteirao-graffiti-fontes-pereira-melo-impasse-ha-tres-decadas-2047653

 

O prédio devoluto da Avenida Fontes Pereira de Melo cujo interior ruiu no passado domingo não deverá ser demolido. A garantia foi dada pela Câmara Municipal de Lisboa, na tarde desta quarta-feira, após se saber o resultado de uma vistoria. O imóvel é um dos três que estão devolutos e se notabilizaram, em 2010, pelos graffiti nas suas fachadas. Os edifícios são propriedade da Azipalace, Investimentos Turísticos, SA, que detém o grupo Sana e que submeteu à câmara um projecto para a reabilitação destes imóveis, em 2021. Mas a indefinição sobre o futuro do quarteirão dura há mais de três décadas.

 

No início da década de 90, o arquitecto Tomás Taveira dava a conhecer a sua arrojada proposta de intervenção para aqueles imóveis, consistindo a mesma num heterogéneo conjunto de construções, uma das quais se assemelhava à chaminé de uma central nuclear. A ideia, que Taveira disse ser “uma espécie de homenagem aos Descobrimentos”, revelar-se-ia demasiado controversa. Tanto que o projecto foi abandonado.

 

Temia-se então a descaracterização definitiva da zona, edificada entre finais do século XIX e princípios do século XX, período marcado por uma fulgurante expansão da malha urbana da capital, por iniciativa do engenheiro Frederico Ressano Garcia. Razão pela qual os edifícios daquela época, e naquela zona da cidade, são conhecidos como da “Lisboa entre séculos”.

 

Em 2004, durante a presidência de Pedro Santana Lopes (PSD) no Câmara Municipal de Lisboa, autorizava-se a demolição de dois edifícios do conjunto, mantendo-se os três hoje existentes, virados para a avenida. Nesse ano, deu entrada nos serviços de urbanismo o pedido de licenciamento de um complexo de escritórios, da autoria dos arquitectos Diogo Lima Mayer e Rodrigo Vieira da Fonseca. Previa-se a manutenção das fachadas, portões e varandas dos três edifícios e a construção de dois imóveis, um na Rua Martens Ferrão e outro na Andrade Corvo, estando previsto para o empreendimento um estacionamento subterrâneo com capacidade para 300 carros.

 

O projecto também não avançou. Mas a câmara acenaria com a promessa de que novas iniciativas imobiliárias que ali viessem a nascer respeitariam a preexistência, sobretudo ao nível de fachadas. E elas ficaram, durante anos, tapadas por enormes telas através das quais o pelouro de Urbanismo da Câmara de Lisboa, então tutelado pela vereadora Eduarda Napoleão, anunciava, com recurso a estatísticas, os objectivos e os alegados feitos da autarquia ao nível da reabilitação do edificado na cidade. Até ao ponto de esses painéis ficarem esfarrapados.

 

Os graffiti nas fachadas

Já com um novo elenco governativo na câmara, desde 2007 liderada por António Costa, e perante a demora na definição do futuro daqueles prédios, a edilidade autorizava, em Maio de 2010, uma intervenção de arte urbana nas suas fachadas. Os graffiti feitos pela dupla de artistas brasileiros Os Gémeos, pelo italiano Blu e pelo espanhol Sam3 causaram enorme impacto, numa altura em que a cidade começava a apostar neste género de abordagem. A autarquia tinha criado a Galeria de Arte Urbana, em 2008, como forma de instituir tal forma de expressão e assim também desencorajar as intervenções com cariz de vandalismo.

 

As intervenções plásticas nos prédios da Avenida Fontes Pereira de Melo, assumidamente efémeras e feitas com a intenção de durar apenas um ano, rapidamente ganharam projecção internacional, entrando nos roteiros de arte urbana e do turismo a ela associado. Em 2011, o jornal britânico The Guardian elegeu mesmo o trabalho feito naquelas fachadas como um dos dez melhores exemplos internacionais de arte urbana.

 

Mas o futuro dos edifícios, situados numa zona central da cidade, mantinha-se indefinido. Apesar disso, ainda em 2010, e quando o mercado imobiliário entrava em forte recessão, como consequência da crise do “subprime”, o proprietário de então, o Banco Comercial Português, apresentava à câmara um novo projecto de obras que incluía a ampliação do conjunto. Algo que nunca chegou a sair do plano das intenções.

 

Dois anos depois, com a revisão do Plano Director Municipal (PDM) de Lisboa, as fachadas dos imóveis eram incluídas na lista de bens da carta municipal do património edificado e paisagístico apensa a esse plano. Era-lhes atribuído o código 44.24. E foi já com o reconhecimento desse estatuto de protecção em vigor que os prédios foram, entretanto, vendidos pelo banco à empresa Azipalace, Investimentos Turísticos, SA, que detém o grupo de hotéis Sana.

 

Em 2017, a Azipalace apresentava aos serviços de Urbanismo da autarquia um projecto para a construção de uma unidade hoteleira no local. O investimento viria a ser reconhecido como de utilidade turística, por proposta do Turismo de Portugal, sendo-lhe tal estatuto outorgado, a 15 de Dezembro de 2017, pela então secretária de Estado do sector, Ana Mendes Godinho – actual ministra do Trabalho e da Segurança Social. À luz do mesmo, a Azipalace beneficiava da isenção do pagamento do Imposto Municipal sobre Transmissões Onerosas de Imóveis (IMT), do Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI) e do Imposto do Selo.

 

Torre de Souto de Moura bloqueada

O empreendimento imobiliário parecia assim bem encaminhado. Esbarraria, porém, num pequeno, mas importante detalhe. É que o projecto assinado pelo arquitecto Eduardo Souto de Moura previa a construção de uma torre no local. Mas isso apenas se revelaria possível através da “demolição total do edificado”, como era proposto. Razão pela qual o mesmo viria a ser, mais tarde, chumbado pela Câmara Municipal de Lisboa, com a fundamentação da decisão a assentar no facto de as fachadas serem parte da lista de bens da carta municipal do património edificado e paisagístico do PDM.

 

A decisão da autarquia apenas viria a ser tornada pública no final de Julho de 2021, quando o novo projecto foi aprovado em reunião de câmara. No mês anterior, os serviços camarários de urbanismo haviam emitido um parecer favorável, “condicionado à necessidade de a operação urbanística assegurar a instalação de uma creche para 42 crianças”, como alternativa à cedência de uma parcela para tal fim. Previa-se a reabilitação dos três edifícios existentes, a construção de outros dois e a demolição de uma estrutura em lajes de betão existente nas traseiras. Os imóveis destinar-se-iam maioritariamente ao uso habitacional, com a criação de 136 fogos, incluindo ainda áreas de serviços.

 

Antes disso, em Agosto de 2020, o grupo cívico Fórum Cidadania LX tinha já alertado para a possibilidade de demolição parcial dos edifícios. O que motivou uma petição com 396 assinaturas, entregue na Assembleia Municipal de Lisboa, em Outubro desse ano, apelando à tomada de medidas urgentes para garantir a salvaguarda do referido quarteirão. Dessa iniciativa, resultaria uma recomendação da assembleia à câmara, aprovada por unanimidade, em Janeiro de 2021, para que fossem encetadas as diligências necessárias para se preservar e restaurar aquele património. Dois meses depois, no entanto, um incêndio consumiu a cobertura dos prédios.

 

Foi então neste contexto de impasse que, no Verão de 2021, se ficou a saber do tal novo impulso de reabilitação do conjunto de edifícios. Um renovado ímpeto que, afinal, aconteceria no âmbito de uma mudança de planos por parte dos promotores. É que o projecto de requalificação do quarteirão tinha agora sido entregue pela Azipalace ao arquitecto Frederico Valsassina, substituindo assim Souto de Moura, por este, aparentemente, se ter mostrado inflexível na vontade de se deitar abaixo o conjunto, para no seu lugar erguer uma torre.

 

Em Março de 2022, a troca de arquitectos era notícia no Jornal de Negócios, o qual dava conta de que, nesse momento, se estaria “em fase de apreciação dos projectos de especialidades”. E era revelado também que, com o parecer desfavorável do anterior projecto, havia sido revogada a utilidade turística antes reconhecida ao projecto, pelo que a Azipalace teria de pagar os impostos de que tinha sido isentada, desde 2017.

 

Passou mais de um ano, até que se verificou a derrocada do último domingo. Questionada, na segunda-feira, pelo PÚBLICO, sobre o andamento do processo, a Câmara de Lisboa explica que o projecto se encontra “em fase final de tramitação dos projectos de especialidades”. E refere que “estão a ser verificadas as condições de aprovação do projecto de arquitectura”, em particular a prometida creche. Ou seja, passado um ano, o dossiê parece, afinal, não ter conhecido grandes desenvolvimentos.

 

Interrogada ainda sobre o que aconteceria ao projecto, caso se verificasse a necessidade de demolição, a autarquia diz que “a proprietária do edifício foi intimada a proceder à adopção urgente de medidas cautelares e de carácter provisório que previnam futuras derrocadas ou desprendimentos, por forma a salvaguardar a integridade dos elementos ainda existentes, designadamente das fachadas, bem como do espaço público envolvente”. Uma resposta idêntica foi dada à agência Lusa, nesta quarta-feira.

 

Um desfecho previsível

Fernando Nunes da Silva, antigo vereador com o pelouro da Mobilidade, e que em 2018 acusou publicamente Souto de Moura de boicotar a recuperação daqueles imóveis por desejar fazer uma torre de raiz, diz agora ao PÚBLICO não estar surpreendido com a sucessão de acontecimentos. “É a forma normal de actuar, quando não se está interessado em cumprir as regras. Deixam arrastar as coisas, com a cumplicidade das autoridades”, acusa o engenheiro, dizendo-se convicto de que os promotores “não querem respeitar as fachadas”.

 

Nunes da Silva considera previsível a derrocada ocorrida no fim-de-semana, que vê como consequência natural do incêndio de há dois anos. “Depois do fogo, o que restou tinha que ter uma estrutura de protecção, porque é sabido que, a seguir, as chuvas iam debilitar o que ficou”, explica. “O novo executivo camarário não deu seguimento atempado ao processo e, sobretudo, não teve uma actuação firme no sentido de obrigar os proprietários a garantirem condições mínimas”, acusa o antigo autarca.

 

Nesta quarta-feira, o Fórum Cidadania LX veio pedir esclarecimentos à Câmara de Lisboa, referindo não compreender como “um projecto aprovado em 2021 e, ao que tudo indica, já com as especialidades aprovadas, ainda não se encontrar em execução”. O grupo cívico pede à autarquia garantias de que “as fachadas do edifício em causa serão escoradas para que não desabem e não sirvam de argumento para a demolição dos dois outros edifícios”, mas também que exija ao promotor que dê início à execução do projecto aprovado há dois anos.

 

O PÚBLICO questionou a Azipalace sobre o desenvolvimento do projecto apresentado em 2021, mas não obteve resposta até ao momento da publicação deste artigo.

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