IMAGENS de OVOODOCORVO
LISBOA
Quarteirão dos graffiti na Fontes Pereira de Melo está
num impasse há três décadas
Prédio que ruiu no domingo é parte de conjunto de imóveis
devoluto desde o início dos anos 90. Entre a preservação e a ameaça de
demolição, têm sido muitos os projectos, mas nunca concretizados.
Samuel Alemão e
Rui Gaudêncio
27 de Abril de
2023, 21:30
O prédio devoluto
da Avenida Fontes Pereira de Melo cujo interior ruiu no passado domingo não
deverá ser demolido. A garantia foi dada pela Câmara Municipal de Lisboa, na
tarde desta quarta-feira, após se saber o resultado de uma vistoria. O imóvel é
um dos três que estão devolutos e se notabilizaram, em 2010, pelos graffiti nas
suas fachadas. Os edifícios são propriedade da Azipalace, Investimentos
Turísticos, SA, que detém o grupo Sana e que submeteu à câmara um projecto para
a reabilitação destes imóveis, em 2021. Mas a indefinição sobre o futuro do
quarteirão dura há mais de três décadas.
No início da
década de 90, o arquitecto Tomás Taveira dava a conhecer a sua arrojada
proposta de intervenção para aqueles imóveis, consistindo a mesma num
heterogéneo conjunto de construções, uma das quais se assemelhava à chaminé de
uma central nuclear. A ideia, que Taveira disse ser “uma espécie de homenagem
aos Descobrimentos”, revelar-se-ia demasiado controversa. Tanto que o projecto
foi abandonado.
Temia-se então a
descaracterização definitiva da zona, edificada entre finais do século XIX e
princípios do século XX, período marcado por uma fulgurante expansão da malha
urbana da capital, por iniciativa do engenheiro Frederico Ressano Garcia. Razão
pela qual os edifícios daquela época, e naquela zona da cidade, são conhecidos
como da “Lisboa entre séculos”.
Em 2004, durante
a presidência de Pedro Santana Lopes (PSD) no Câmara Municipal de Lisboa,
autorizava-se a demolição de dois edifícios do conjunto, mantendo-se os três
hoje existentes, virados para a avenida. Nesse ano, deu entrada nos serviços de
urbanismo o pedido de licenciamento de um complexo de escritórios, da autoria
dos arquitectos Diogo Lima Mayer e Rodrigo Vieira da Fonseca. Previa-se a
manutenção das fachadas, portões e varandas dos três edifícios e a construção
de dois imóveis, um na Rua Martens Ferrão e outro na Andrade Corvo, estando
previsto para o empreendimento um estacionamento subterrâneo com capacidade
para 300 carros.
O projecto também
não avançou. Mas a câmara acenaria com a promessa de que novas iniciativas
imobiliárias que ali viessem a nascer respeitariam a preexistência, sobretudo
ao nível de fachadas. E elas ficaram, durante anos, tapadas por enormes telas
através das quais o pelouro de Urbanismo da Câmara de Lisboa, então tutelado
pela vereadora Eduarda Napoleão, anunciava, com recurso a estatísticas, os
objectivos e os alegados feitos da autarquia ao nível da reabilitação do
edificado na cidade. Até ao ponto de esses painéis ficarem esfarrapados.
Os graffiti nas fachadas
Já com um novo
elenco governativo na câmara, desde 2007 liderada por António Costa, e perante
a demora na definição do futuro daqueles prédios, a edilidade autorizava, em
Maio de 2010, uma intervenção de arte urbana nas suas fachadas. Os graffiti
feitos pela dupla de artistas brasileiros Os Gémeos, pelo italiano Blu e pelo
espanhol Sam3 causaram enorme impacto, numa altura em que a cidade começava a
apostar neste género de abordagem. A autarquia tinha criado a Galeria de Arte
Urbana, em 2008, como forma de instituir tal forma de expressão e assim também
desencorajar as intervenções com cariz de vandalismo.
As intervenções
plásticas nos prédios da Avenida Fontes Pereira de Melo, assumidamente efémeras
e feitas com a intenção de durar apenas um ano, rapidamente ganharam projecção
internacional, entrando nos roteiros de arte urbana e do turismo a ela
associado. Em 2011, o jornal britânico The Guardian elegeu mesmo o trabalho
feito naquelas fachadas como um dos dez melhores exemplos internacionais de
arte urbana.
Mas o futuro dos
edifícios, situados numa zona central da cidade, mantinha-se indefinido. Apesar
disso, ainda em 2010, e quando o mercado imobiliário entrava em forte recessão,
como consequência da crise do “subprime”, o proprietário de então, o Banco
Comercial Português, apresentava à câmara um novo projecto de obras que incluía
a ampliação do conjunto. Algo que nunca chegou a sair do plano das intenções.
Dois anos depois,
com a revisão do Plano Director Municipal (PDM) de Lisboa, as fachadas dos
imóveis eram incluídas na lista de bens da carta municipal do património
edificado e paisagístico apensa a esse plano. Era-lhes atribuído o código
44.24. E foi já com o reconhecimento desse estatuto de protecção em vigor que
os prédios foram, entretanto, vendidos pelo banco à empresa Azipalace,
Investimentos Turísticos, SA, que detém o grupo de hotéis Sana.
Em 2017, a
Azipalace apresentava aos serviços de Urbanismo da autarquia um projecto para a
construção de uma unidade hoteleira no local. O investimento viria a ser
reconhecido como de utilidade turística, por proposta do Turismo de Portugal,
sendo-lhe tal estatuto outorgado, a 15 de Dezembro de 2017, pela então
secretária de Estado do sector, Ana Mendes Godinho – actual ministra do
Trabalho e da Segurança Social. À luz do mesmo, a Azipalace beneficiava da
isenção do pagamento do Imposto Municipal sobre Transmissões Onerosas de
Imóveis (IMT), do Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI) e do Imposto do Selo.
Torre de Souto de Moura bloqueada
O empreendimento
imobiliário parecia assim bem encaminhado. Esbarraria, porém, num pequeno, mas
importante detalhe. É que o projecto assinado pelo arquitecto Eduardo Souto de
Moura previa a construção de uma torre no local. Mas isso apenas se revelaria
possível através da “demolição total do edificado”, como era proposto. Razão
pela qual o mesmo viria a ser, mais tarde, chumbado pela Câmara Municipal de
Lisboa, com a fundamentação da decisão a assentar no facto de as fachadas serem
parte da lista de bens da carta municipal do património edificado e
paisagístico do PDM.
A decisão da autarquia
apenas viria a ser tornada pública no final de Julho de 2021, quando o novo
projecto foi aprovado em reunião de câmara. No mês anterior, os serviços
camarários de urbanismo haviam emitido um parecer favorável, “condicionado à
necessidade de a operação urbanística assegurar a instalação de uma creche para
42 crianças”, como alternativa à cedência de uma parcela para tal fim.
Previa-se a reabilitação dos três edifícios existentes, a construção de outros
dois e a demolição de uma estrutura em lajes de betão existente nas traseiras.
Os imóveis destinar-se-iam maioritariamente ao uso habitacional, com a criação
de 136 fogos, incluindo ainda áreas de serviços.
Antes disso, em
Agosto de 2020, o grupo cívico Fórum Cidadania LX tinha já alertado para a
possibilidade de demolição parcial dos edifícios. O que motivou uma petição com
396 assinaturas, entregue na Assembleia Municipal de Lisboa, em Outubro desse
ano, apelando à tomada de medidas urgentes para garantir a salvaguarda do
referido quarteirão. Dessa iniciativa, resultaria uma recomendação da
assembleia à câmara, aprovada por unanimidade, em Janeiro de 2021, para que
fossem encetadas as diligências necessárias para se preservar e restaurar
aquele património. Dois meses depois, no entanto, um incêndio consumiu a
cobertura dos prédios.
Foi então neste
contexto de impasse que, no Verão de 2021, se ficou a saber do tal novo impulso
de reabilitação do conjunto de edifícios. Um renovado ímpeto que, afinal,
aconteceria no âmbito de uma mudança de planos por parte dos promotores. É que
o projecto de requalificação do quarteirão tinha agora sido entregue pela
Azipalace ao arquitecto Frederico Valsassina, substituindo assim Souto de
Moura, por este, aparentemente, se ter mostrado inflexível na vontade de se
deitar abaixo o conjunto, para no seu lugar erguer uma torre.
Em Março de 2022,
a troca de arquitectos era notícia no Jornal de Negócios, o qual dava conta de
que, nesse momento, se estaria “em fase de apreciação dos projectos de
especialidades”. E era revelado também que, com o parecer desfavorável do
anterior projecto, havia sido revogada a utilidade turística antes reconhecida
ao projecto, pelo que a Azipalace teria de pagar os impostos de que tinha sido
isentada, desde 2017.
Passou mais de um
ano, até que se verificou a derrocada do último domingo. Questionada, na
segunda-feira, pelo PÚBLICO, sobre o andamento do processo, a Câmara de Lisboa
explica que o projecto se encontra “em fase final de tramitação dos projectos
de especialidades”. E refere que “estão a ser verificadas as condições de
aprovação do projecto de arquitectura”, em particular a prometida creche. Ou
seja, passado um ano, o dossiê parece, afinal, não ter conhecido grandes
desenvolvimentos.
Interrogada ainda
sobre o que aconteceria ao projecto, caso se verificasse a necessidade de
demolição, a autarquia diz que “a proprietária do edifício foi intimada a
proceder à adopção urgente de medidas cautelares e de carácter provisório que
previnam futuras derrocadas ou desprendimentos, por forma a salvaguardar a
integridade dos elementos ainda existentes, designadamente das fachadas, bem
como do espaço público envolvente”. Uma resposta idêntica foi dada à agência
Lusa, nesta quarta-feira.
Um desfecho previsível
Fernando Nunes da
Silva, antigo vereador com o pelouro da Mobilidade, e que em 2018 acusou
publicamente Souto de Moura de boicotar a recuperação daqueles imóveis por
desejar fazer uma torre de raiz, diz agora ao PÚBLICO não estar surpreendido
com a sucessão de acontecimentos. “É a forma normal de actuar, quando não se
está interessado em cumprir as regras. Deixam arrastar as coisas, com a
cumplicidade das autoridades”, acusa o engenheiro, dizendo-se convicto de que
os promotores “não querem respeitar as fachadas”.
Nunes da Silva
considera previsível a derrocada ocorrida no fim-de-semana, que vê como
consequência natural do incêndio de há dois anos. “Depois do fogo, o que restou
tinha que ter uma estrutura de protecção, porque é sabido que, a seguir, as
chuvas iam debilitar o que ficou”, explica. “O novo executivo camarário não deu
seguimento atempado ao processo e, sobretudo, não teve uma actuação firme no
sentido de obrigar os proprietários a garantirem condições mínimas”, acusa o
antigo autarca.
Nesta quarta-feira,
o Fórum Cidadania LX veio pedir esclarecimentos à Câmara de Lisboa, referindo
não compreender como “um projecto aprovado em 2021 e, ao que tudo indica, já
com as especialidades aprovadas, ainda não se encontrar em execução”. O grupo
cívico pede à autarquia garantias de que “as fachadas do edifício em causa
serão escoradas para que não desabem e não sirvam de argumento para a demolição
dos dois outros edifícios”, mas também que exija ao promotor que dê início à
execução do projecto aprovado há dois anos.
O PÚBLICO
questionou a Azipalace sobre o desenvolvimento do projecto apresentado em 2021,
mas não obteve resposta até ao momento da publicação deste artigo.
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