QAnon e a utilidade das teorias da conspiração
Marjorie Taylor Green tornou-se a primeira congressista
americana apoiante da QAnon. O enredo desta teoria da conspiração assemelha-se
a um thriller político com laivos sobrenaturais.
Renato Rocha
Guionista, autor
do podcast Teorias da Conspiração.
https://www.publico.pt/2020/11/19/p3/cronica/qanon-utilidade-teorias-conspiracao-1939121
Na madrugada de 4
Novembro, aquando das eleições americanas, uma pequena notícia pode ter passado
despercebida aos observadores menos atentos (ou, pelo menos, àqueles que não
vivem no Twitter). Marjorie Taylor Green, uma republicana do estado da Geórgia,
tornou-se a primeira congressista americana apoiante da teoria da conspiração
conhecida como QAnon.
O enredo desta
teoria da conspiração assemelha-se a um thriller político com laivos
sobrenaturais. Resumindo: a elite política americana é composta por uma rede de
pedofilia satânica que rapta, tortura e assassina crianças. Ao vencer as
eleições de 2016, Donald Trump entrou “na boca do lobo”, colocou-se na posição
privilegiada de denunciar o crime e está, neste momento, a preparar milhares de
mandados judiciais. Um indivíduo, “Q”, trabalha nas profundezas do aparelho do
Estado, conhece o plano do Presidente e pretende ajudá-lo. É um whistleblower
anónimo que utiliza fóruns online para publicar informações, pistas e previsões
de acontecimentos futuros. Os apoiantes desta conspiração dedicam-se a
coleccionar e interpretar as pistas de “Q”. O objectivo final? “A Tempestade”:
o glorioso dia em que Trump vencerá as elites que o rodeiam e derrotará os
satanistas.
Os EUA sempre
foram terreno fértil para teorias da conspiração. O primeiro third party
americano, o Anti-Masonic Party, fundado no início do séc. XIX, acreditava que
os maçons dominavam as elites culturais e políticas. Além disso, muitas das
teorias da conspiração mais conhecidas são orgulhosamente americanas: a NASA
não foi à Lua; o Presidente Kennedy foi assassinado pela CIA; os atentados de
11 de Setembro foram um inside job. E agora, em pleno séc. XXI, temos o
privilégio de assistir ao nascimento de mais uma: a QAnon.
Como muitas
outras teorias da conspiração, a QAnon é uma convergência estapafúrdia de más
ideias, ora hilariantes, ora aterradoras. É uma seita apocalíptica: tem muito
de culto evangélico, com um combate entre Deus e Satanás e a promessa de um
Juízo Final. É um culto de personalidade: Donald Trump protagoniza a narrativa
como um messias justiceiro. É uma reciclagem de teorias da conspiração
anteriores: a ideia de que as elites se alimentam da “energia” de crianças
remete para o libelo de sangue, uma antiga superstição segundo a qual os judeus
utilizavam o sangue de crianças cristãs nos seus rituais religiosos. Mas a
QAnon é, também, uma gincana online e um jogo interactivo.
É claro que as
teorias da conspiração nunca precisaram da Internet para se difundir. Mas a
QAnon, nascida em fóruns online, sabe servir-se do imediatismo e da rapidez do
seu habitat natural. Propaga-se com facilidade e adapta-se às circunstâncias.
Todos os dias há novas pistas de “Q”, novos memes, novas ligações entre factos
aparentemente inócuos. Qualquer notícia pode ser interpretada à luz da
conspiração, como uma profecia de Nostradamus. Assim, o jogo nunca acaba; e o
crente, chamado a participar a toda a hora, sente a adrenalina de estar a mudar
o mundo a partir do seu computador.
Como interpretar
um fenómeno como a QAnon? Tradicionalmente, as teorias da conspiração não são
levadas muito a sério. Os terraplanistas, por exemplo, são bastante
inofensivos, ainda que alimentem uma contraproducente desconfiança na ciência.
Patuscos e excêntricos, muitos teóricos da conspiração divertem sem preocupar.
Depois há os movimentos antivacinas, muito mais perigosos pelas suas
consequências para a saúde pública. Mas, no geral, as teorias da conspiração
são aquelas ideias loucas defendidas por indivíduos mal dormidos, paranóicos ou
ignorantes. Rimos, temos pena e mantemos a distância.
Já a QAnon
apresenta-se como uma religião emergente, um movimento político radical e uma
incitação à violência e ao caos. Para os QAnon, Trump não só perdeu as eleições
como foi afastado pelas elites satânicas que se propôs derrotar: não está em
causa um processo democrático, mas sim a alma da América. A derrota de Trump em
2020 pode ditar o fim da QAnon ou, pelo contrário, o princípio de algo mais
perigoso, já que muitos dos seus apoiantes pertencem à extrema-direita ou a
outros grupos radicais. Em Maio de 2019, o FBI alertou para o facto de vários
QAnons terem sido detidos e catalogou esta teoria da conspiração como uma
possível fonte de terrorismo doméstico.
"Podemos vir
a descobrir que a única forma de derrotar as teorias da conspiração é
aproximarmo-nos dos seus crentes. É claro que a violência, ou a incitação à
mesma, são intoleráveis. Mas antes de serem radicalizados a esse ponto, os
apoiantes das teorias da conspiração são vítimas de péssimas ideias."
Tudo isto levanta
um problema simultaneamente filosófico e prático: como combater esta (e, já
agora, outras) teorias da conspiração? Uma coisa é a detenção de criminosos e a
repressão de extremismos; mas como se derrotam as ideias que os alimentam?
No geral, a
teoria da conspiração oferece uma explicação alternativa para o mundo,
internamente consistente e fácil de digerir. Um evento passa a ser explicado
como uma conspiração de forças nefastas e secretas, e pode ser algo tão simples
como a ida à Lua ou tão complexo como uma crise pandémica. Como fenómeno, a
teoria da conspiração tem muito de narrativo e mitológico. A história de Ícaro,
com o seu voo demasiado perto do Sol, não faz sentido do ponto de vista
científico; e, no entanto, ensina-nos algo. É a verbalização de uma intuição
humana, a codificação de algo metafisicamente verdadeiro, ainda que
factualmente errado. Por isso, é bem provável que as teorias da conspiração
sejam uma Mitologia 2.0, isto é, que independentemente da sua relação com os factos
e com a ciência, digam muito sobre as ansiedades, preocupações e medos do
humano contemporâneo. Pensem nelas como bússolas ou alertas. São sintomas e não
doenças.
Talvez por isso
uma sociedade globalizada, altamente especializada e saturada em informação, dê
origem a teorias da conspiração antiglobalização, anti-especialistas e
anticonsenso. Ao longo dos séculos, o teórico da conspiração sempre reagiu à
direcção aparente da História. E sempre encontrou, através de uma narrativa
ficcional, uma ordem no caos e uma justificação para o injustificável.
Este instinto não
é novo, nem é exclusivo dos teóricos da conspiração. Todos nós tomamos como
certo algum erro factual ou interpretação enviesada. Todos já sentimos o
conforto de pertencer a uma tribo ideológica, bem como o desconforto perante
aquilo que a contradiz. Quanto maior o investimento na teoria da conspiração,
mais o teórico tem a perder caso esteja errado e maior a sua resistência a
ideias novas. Encontramos a mesma tendência na política partidária, nas cisões
religiosas, nas discussões futebolísticas ou, até, em jantares de família: ninguém
gosta de ser corrigido e todos preferem ter razão. O que nos separa dos
teóricos da conspiração não é tanto a natureza do fenómeno psicológico mas sim
a sua escala. Somos mais parecidos com “eles” do que gostaríamos de admitir.
Paradoxalmente,
podemos vir a descobrir que a única forma de derrotar as teorias da conspiração
é aproximarmo-nos dos seus crentes. É claro que a violência, ou a incitação à
mesma, são intoleráveis. Mas antes de serem radicalizados a esse ponto, os
apoiantes das teorias da conspiração são vítimas de péssimas ideias. Tal como
membros de seitas ou cultos, estão presos a uma estrutura de pensamento que
primeiro seduz, depois convence e, finalmente, controla.
Nesse sentido, um
confronto directo e agressivo pode não ser eficaz. Não é surpreendente que o
teórico da conspiração reaja mal a ser parodiado ou acusado de ignorância e
malvadez. Afinal, quem o aceitaria? Quem veria nisso um bom incentivo para
alterar a sua convicção mais profunda? Será necessária uma mistura cuidada de
informação, tolerância, educação e paciência.
Mesmo antes de
ser eleita, Marjorie Taylor Green afastou-se publicamente da QAnon e de outras
teorias da conspiração que defendera no passado. Isto sugere-nos que há, ainda,
um preço social a pagar por parte de quem defende estas ideias. O teórico da
conspiração continua a ser mal visto: mas por quanto tempo? Ficaremos (cada vez
mais) reféns da sua excentricidade e ignorância? Ou conseguiremos atacar as
teorias sem, no entanto, convencer os seus teóricos de que o mundo está mesmo
contra eles?
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