EDITORIAL
O tronco nu do senhor Presidente
Não precisamos, nem queremos, ver o Presidente rodeado de
guarda de honra entre encenações marciais e coreografias a exaltar a pátria;
queremos apenas que o Presidente não apareça de tronco nu.
MANUEL CARVALHO
19 de Outubro de
2020, 21:31
https://www.publico.pt/2020/10/19/politica/editorial/tronco-nu-senhor-presidente-1935878
A imagem não é
novidade. Já víramos o Presidente de tronco nu a banhos nos rios do interior,
ou, ainda com maior regularidade, nas praias da linha de Cascais. Até agora,
porém, não víramos ainda Marcelo expor o peito no habitual recato de uma
intervenção de enfermagem, daquelas que exigem salas reservadas, cortinas e
discrição. O Presidente decidiu, porém, quebrar essa convenção de privacidade e
expôs-se a ser vacinado contra a gripe. Talvez com a intenção de promover a
vacina ou de provar que a campanha decorre com normalidade. Seguramente sem a
intenção de criar mais uma daquelas imagens que por tanto dessacralizarem o
poder acabam por o trivializar. O Presidente fez mal em tornar o momento da sua
vacina um acto oficial destinado a ser visto por todos.
E fez mal porque,
para lá do óbvio significado político do gesto, a exposição do seu corpo nu é
um excesso que atenta ao bom gosto. Se o Presidente continua a querer ser o
Sidónio Pais dos nossos tempos, o Presidente-rei amado pelo povo por ser igual
ao povo, e se essa intenção funciona na maior parte das vezes como uma cola
afectiva ente as elites do poder e os cidadãos comuns, este episódio é falhado,
porque não parece natural, nem é natural. Porque, ou a vacina que o Presidente
tomou é especial e exige cuidados especiais, ou, que se saiba, basta abrir a
camisa e mostrar o braço para que possa ser ministrada. A menos que haja por aí
uma explicação que escape à lógica, o Presidente mostrou-se assim, porque quis.
Ninguém sabe se
Marcelo ganha ou perde capital eleitoral com a exposição gratuita do seu
tronco. Talvez ganhe nuns estratos do eleitorado que apreciam a forma como um
homem superiormente culto pode agir como um homem normal. Mas haverá quem se
incomode com a exibição da sua privacidade. O que é certo e seguro é que a
função presidencial se desgasta com estes gestos. E não é por moralismo: é pela
dimensão simbólica que é inerente às funções do chefe de Estado. Se a
democracia na era da Internet invadiu as esferas do poder para o ridicularizar
através da demagogia ou do discurso populista, quem o exerce não pode alimentar
essa estratégia de banalização. O poder democrático não deve dispensar a sua
dignidade, nem a majestade que merece o papel de representar a soberania
popular. Não precisamos, nem queremos, ver o Presidente rodeado de guarda de
honra entre encenações marciais e coreografias a exaltar a pátria; queremos
apenas que o Presidente não apareça de tronco nu.
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