domingo, 13 de setembro de 2020

Qual é o jogo de Boris Johnson?

 


OPINIÃO

Qual é o jogo de Boris Johnson?

 

Boris diz que assinou o acordo de saída com “uma mão amarrada atrás das costas”, graças à decisão do Parlamento de impedir uma saída sem acordo. O que não diz é que o “no-deal” seria o caminho mais rápido para a desintegração do Reino Unido

 

TERESA DE SOUSA

13 de Setembro de 2020, 6:58

https://www.publico.pt/2020/09/13/opiniao/opiniao/jogo-boris-johnson-1931394

 

1. A pergunta não só é incontornável como de difícil resposta. O Reino Unido saiu da União Europeia no dia 31 de Janeiro deste ano depois de longas e difíceis negociações sobre um acordo de saída. Este acordo abriu as portas à fase final das negociações que têm como objectivo um outro acordo para estabelecer as relações futuras entre a União Europeia e o seu antigo parceiro. As negociações teriam sempre como ponto de partida as regras estabelecidas no acordo de saída, nomeadamente o princípio segundo o qual as relações entre os dois lados deveriam preservar um “level playing field” (igualdade de condições de partida) para as relações económicas e comerciais, impedindo formas de concorrência desleal para garantir a máxima abertura comercial. Houve, ao longo deste processo de separação, erros de parte a parte, visões mais ou menos idílicas sobre o futuro e desconfianças mútuas.

 

Da parte da União, verificou-se, por vezes, uma excessiva intransigência, alimentada pelo facto de serem 27 contra um. Como houve também a ideia, profundamente errada, de que a União beneficiaria com a saída de um país que sempre esteve lá de má vontade (o que não é verdade) e que o futuro se antecipava harmonioso entre os que decidiram ficar. Todos os outros. Do lado de lá da Mancha, a promessa de uma “Global Britain” liberta dos constrangimentos europeus e livre para seguir o seu destino glorioso foi vendida aos britânicos pelos defensores do “Brexit”, sem nunca precisarem como seria esse futuro. Londres fez alguns erros de cálculo. Por exemplo, acreditou que dividiria facilmente o campo do adversário, contando com velhos e novos aliados, sobretudo entre os países da Europa Central e de Leste. Encontrou uma muralha inexpugnável. Não tanto devido à falta de simpatia pelo eurocepticismo britânico ou por amor à União, mas por um cálculo muito simples: para esses países, a Europa continua a ser indispensável ao seu desenvolvimento económico e à sua relação com o mundo.

 

2. O “Brexit” tornou-se uma obsessão política que esgotou quase completamente o debate público e que dividiu e, depois, cansou os britânicos. Boris Johnson viu nele a grande — e, provavelmente, única - oportunidade para chegar a Downing Street. Saiu do Governo de Theresa May, ajudou a derrubá-la, fez-se eleger pelos tories como seu sucessor, empunhando uma única bandeira  — a saída. Viu a sua legitimidade política sufragada nas eleições de Dezembro passado, que deram aos conservadores uma vitória esmagadora sobre os trabalhistas, ainda liderados por Jeremy Corbyn, o líder mais à esquerda da sua história, um antieuropeu envergonhado que dividiu profundamente o Labour. Boris negociou um acordo. “Get ‘Brexit’ done!” O Reino Unido saiu. As negociações sobre o futuro começaram. Hoje, de novo, correm o risco de fracassar. A hipótese de uma saída sem acordo, que pairou sobre a primeira fase das negociações, regressou. O primeiro-ministro retomou uma estratégia de radicalização, pondo em causa o acordo de saída. A União não desarmou. Ameaça levar aos tribunais a violação de um acordo internacional. Deixa um ultimato: quer a retirada da Lei do Mercado Interno, que o Governo levou ao Parlamento e que, a ser aprovada, infringe claramente o acordo de saída. Até ao final de Setembro. Mesmo assim, não interrompeu as negociações.

 

3. O que quer Boris Johnson? Alguns observadores acreditam que apenas quer garantir o melhor acordo possível. Que está, portanto, a fazer bluff. Outros admitem que sempre sonhou com o “no-deal”.

 

Há uma primeira explicação que vem ao espírito. A vida corre mal ao primeiro-ministro britânico, que levou algum tempo a acertar com uma resposta eficaz à pandemia e que viu a economia cair a pique nos últimos meses. As suas reviravoltas na condução do combate à covid-19 irritaram até as fileiras do Partido Conservador. O seu brilho foi ofuscado pelo do chanceler do Tesouro, Rishi Sunak, que deu de si próprio uma imagem de eficácia para conter o desastre económico e social. As sondagens reflectem a desorientação do Governo, colocando lado a lado os dois grandes partidos, o que representa uma subida em flecha do Labour, regressado à sua versão moderada, e uma queda acentuada dos tories. O nervosismo nas suas fileiras perante o comportamento errático de Boris aumentou com esta jogada inesperada da Lei do Mercado Interno. Ouviram um ministro do Gabinete reconhecer que o diploma infringe a lei internacional, ainda que “numa forma muito específica e limitada”. “É chocante ver um ministro britânico admitir abertamente no Parlamento que o Governo tem intenção de violar a lei internacional”, escreve a Economist. “Nunca tal aconteceu.” É a reputação internacional do país que está em causa, argumentam velhos conservadores que já não se revêem no partido de Boris. Para o país que fundou “the rule of law”, é ir demasiado longe.

 

Mas Johnson soma e segue, argumentando que está a defender o Reino Unido de uma tentativa europeia para o dividir. Convém não subestimar a sua retórica. Num encontro virtual com os deputados conservadores, defendeu a nova Lei do Mercado Interno como “necessária para travar uma potência estrangeira de partir” o país. “Temos de proteger o Reino Unido desse desastre e é por isso que queremos uma rede de segurança legal — a Lei do Mercado Interno — para clarificar a nossa posição e algumas inconsistências”, escreveu no Telegraph. Uma das violações do acordo de saída diz respeito ao protocolo da Irlanda do Norte, que estabelece que não haverá uma fronteira com a República da Irlanda, ou seja, que a Irlanda do Norte ficará dentro do Mercado Interno europeu, para salvaguarda dos Acordos de Sexta-Feira Santa, que devolveram a paz ao Ulster em 1998, com o alto patrocínio americano. A potência estrangeira é a União Europeia, que quer “impor uma fronteira” entre a Irlanda do Norte e a Grã-Bretanha. Boris acusa-a de tentar um “bloqueio marítimo” no mar da Irlanda. A questão irlandesa, como lembra a Economist, tem implicações que podem ir muito para além da União Europeia. “O receio de uma fronteira a dividir a Irlanda cairia muito mal na América. O Congresso já deixou claro que não ratificaria um acordo de livre comércio com o Reino Unido se o ‘Brexit’ pusesse em causa os Acordos de Paz Sexta-Feira Santa.”

 

Boris diz que assinou o acordo de saída com “uma mão amarrada atrás das costas”, graças à decisão do Parlamento de impedir uma saída sem acordo. O que não diz é que o “no-deal” seria o caminho mais rápido para a desintegração do Reino Unido, pelo menos no que diz respeito à Escócia, com os seus sonhos independentistas no seio da União Europeia.

 

O segundo pomo da discórdia diz respeito — imagine-se — às ajudas de Estado, para as quais a União tem regras estritas (agora suspensas devido à pandemia), que o Governo britânico não quer aceitar. O debate parece absurdo, tendo em conta que o outro lado da Mancha sempre foi muito mais liberal em matéria de política económica. Os analistas britânicos falam de uma estratégia do Governo para competir com os EUA e com a China na criação de futuras “googles” e “apples”, que obrigaria a grandes investimentos públicos. Na realidade, como escreve o Financial Times, as grandes tecnológicas americanas não foram nem escolhidas, nem subsidiadas pelo Estado e a sua origem explica-se, em primeiro lugar, pela excelência das universidades e da investigação científica — duas coisas de que o Reino Unido ainda dispõe em abundância.

 

4. O que faz, então, correr Boris Johnson? Como escrevia também o Financial Times, os populistas morrem normalmente pela incompetência. São bons a fazer promessas muito simples. Péssimos a lidar com a realidade. Quando essa incompetência fica a descoberto, têm de se agarrar a qualquer coisa que toque no sentimento das pessoas. Ninguém, nem Boris Johnson, pode ser comparado a Donald Trump, que excede a imaginação mais fulgurante no que toca à mentira, à falta de carácter e à incompetência. Mas o modus operandi talvez seja comparável. Trump agarra-se furiosamente a um só tema, “law and order”, para atear as chamas e o medo nos subúrbios americanos, tentando evitar uma derrota prevista em todas as sondagens. Boris pode ter tido a tentação de se agarrar ao único tema que o levou até ao número 10 de Downing Street — o “Brexit”. Se for assim, está a brincar com o fogo de forma irresponsável, acompanhando uma vez mais o seu “émulo” americano. É um aviso para os riscos imensos do populismo, que atinge a grande democracia americana e pode atingir a velha e sólida democracia britânica.

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