OPINIÃO
Qual é o jogo de Boris Johnson?
Boris diz que assinou o acordo de saída com “uma mão
amarrada atrás das costas”, graças à decisão do Parlamento de impedir uma saída
sem acordo. O que não diz é que o “no-deal” seria o caminho mais rápido para a
desintegração do Reino Unido
TERESA DE SOUSA
13 de Setembro de
2020, 6:58
https://www.publico.pt/2020/09/13/opiniao/opiniao/jogo-boris-johnson-1931394
1. A pergunta não
só é incontornável como de difícil resposta. O Reino Unido saiu da União
Europeia no dia 31 de Janeiro deste ano depois de longas e difíceis negociações
sobre um acordo de saída. Este acordo abriu as portas à fase final das
negociações que têm como objectivo um outro acordo para estabelecer as relações
futuras entre a União Europeia e o seu antigo parceiro. As negociações teriam
sempre como ponto de partida as regras estabelecidas no acordo de saída,
nomeadamente o princípio segundo o qual as relações entre os dois lados
deveriam preservar um “level playing field” (igualdade de condições de partida)
para as relações económicas e comerciais, impedindo formas de concorrência
desleal para garantir a máxima abertura comercial. Houve, ao longo deste
processo de separação, erros de parte a parte, visões mais ou menos idílicas
sobre o futuro e desconfianças mútuas.
Da parte da União,
verificou-se, por vezes, uma excessiva intransigência, alimentada pelo facto de
serem 27 contra um. Como houve também a ideia, profundamente errada, de que a
União beneficiaria com a saída de um país que sempre esteve lá de má vontade (o
que não é verdade) e que o futuro se antecipava harmonioso entre os que
decidiram ficar. Todos os outros. Do lado de lá da Mancha, a promessa de uma
“Global Britain” liberta dos constrangimentos europeus e livre para seguir o
seu destino glorioso foi vendida aos britânicos pelos defensores do “Brexit”,
sem nunca precisarem como seria esse futuro. Londres fez alguns erros de
cálculo. Por exemplo, acreditou que dividiria facilmente o campo do adversário,
contando com velhos e novos aliados, sobretudo entre os países da Europa
Central e de Leste. Encontrou uma muralha inexpugnável. Não tanto devido à
falta de simpatia pelo eurocepticismo britânico ou por amor à União, mas por um
cálculo muito simples: para esses países, a Europa continua a ser indispensável
ao seu desenvolvimento económico e à sua relação com o mundo.
2. O “Brexit”
tornou-se uma obsessão política que esgotou quase completamente o debate
público e que dividiu e, depois, cansou os britânicos. Boris Johnson viu nele a
grande — e, provavelmente, única - oportunidade para chegar a Downing Street.
Saiu do Governo de Theresa May, ajudou a derrubá-la, fez-se eleger pelos tories
como seu sucessor, empunhando uma única bandeira — a saída. Viu a sua legitimidade política
sufragada nas eleições de Dezembro passado, que deram aos conservadores uma
vitória esmagadora sobre os trabalhistas, ainda liderados por Jeremy Corbyn, o
líder mais à esquerda da sua história, um antieuropeu envergonhado que dividiu
profundamente o Labour. Boris negociou um acordo. “Get ‘Brexit’ done!” O Reino
Unido saiu. As negociações sobre o futuro começaram. Hoje, de novo, correm o
risco de fracassar. A hipótese de uma saída sem acordo, que pairou sobre a
primeira fase das negociações, regressou. O primeiro-ministro retomou uma
estratégia de radicalização, pondo em causa o acordo de saída. A União não
desarmou. Ameaça levar aos tribunais a violação de um acordo internacional.
Deixa um ultimato: quer a retirada da Lei do Mercado Interno, que o Governo
levou ao Parlamento e que, a ser aprovada, infringe claramente o acordo de
saída. Até ao final de Setembro. Mesmo assim, não interrompeu as negociações.
3. O que quer
Boris Johnson? Alguns observadores acreditam que apenas quer garantir o melhor
acordo possível. Que está, portanto, a fazer bluff. Outros admitem que sempre
sonhou com o “no-deal”.
Há uma primeira
explicação que vem ao espírito. A vida corre mal ao primeiro-ministro
britânico, que levou algum tempo a acertar com uma resposta eficaz à pandemia e
que viu a economia cair a pique nos últimos meses. As suas reviravoltas na
condução do combate à covid-19 irritaram até as fileiras do Partido
Conservador. O seu brilho foi ofuscado pelo do chanceler do Tesouro, Rishi
Sunak, que deu de si próprio uma imagem de eficácia para conter o desastre
económico e social. As sondagens reflectem a desorientação do Governo,
colocando lado a lado os dois grandes partidos, o que representa uma subida em
flecha do Labour, regressado à sua versão moderada, e uma queda acentuada dos
tories. O nervosismo nas suas fileiras perante o comportamento errático de Boris
aumentou com esta jogada inesperada da Lei do Mercado Interno. Ouviram um
ministro do Gabinete reconhecer que o diploma infringe a lei internacional,
ainda que “numa forma muito específica e limitada”. “É chocante ver um ministro
britânico admitir abertamente no Parlamento que o Governo tem intenção de
violar a lei internacional”, escreve a Economist. “Nunca tal aconteceu.” É a
reputação internacional do país que está em causa, argumentam velhos
conservadores que já não se revêem no partido de Boris. Para o país que fundou
“the rule of law”, é ir demasiado longe.
Mas Johnson soma
e segue, argumentando que está a defender o Reino Unido de uma tentativa
europeia para o dividir. Convém não subestimar a sua retórica. Num encontro
virtual com os deputados conservadores, defendeu a nova Lei do Mercado Interno
como “necessária para travar uma potência estrangeira de partir” o país. “Temos
de proteger o Reino Unido desse desastre e é por isso que queremos uma rede de
segurança legal — a Lei do Mercado Interno — para clarificar a nossa posição e
algumas inconsistências”, escreveu no Telegraph. Uma das violações do acordo de
saída diz respeito ao protocolo da Irlanda do Norte, que estabelece que não
haverá uma fronteira com a República da Irlanda, ou seja, que a Irlanda do
Norte ficará dentro do Mercado Interno europeu, para salvaguarda dos Acordos de
Sexta-Feira Santa, que devolveram a paz ao Ulster em 1998, com o alto
patrocínio americano. A potência estrangeira é a União Europeia, que quer
“impor uma fronteira” entre a Irlanda do Norte e a Grã-Bretanha. Boris acusa-a
de tentar um “bloqueio marítimo” no mar da Irlanda. A questão irlandesa, como
lembra a Economist, tem implicações que podem ir muito para além da União
Europeia. “O receio de uma fronteira a dividir a Irlanda cairia muito mal na
América. O Congresso já deixou claro que não ratificaria um acordo de livre
comércio com o Reino Unido se o ‘Brexit’ pusesse em causa os Acordos de Paz
Sexta-Feira Santa.”
Boris diz que
assinou o acordo de saída com “uma mão amarrada atrás das costas”, graças à
decisão do Parlamento de impedir uma saída sem acordo. O que não diz é que o
“no-deal” seria o caminho mais rápido para a desintegração do Reino Unido, pelo
menos no que diz respeito à Escócia, com os seus sonhos independentistas no
seio da União Europeia.
O segundo pomo da
discórdia diz respeito — imagine-se — às ajudas de Estado, para as quais a
União tem regras estritas (agora suspensas devido à pandemia), que o Governo
britânico não quer aceitar. O debate parece absurdo, tendo em conta que o outro
lado da Mancha sempre foi muito mais liberal em matéria de política económica.
Os analistas britânicos falam de uma estratégia do Governo para competir com os
EUA e com a China na criação de futuras “googles” e “apples”, que obrigaria a
grandes investimentos públicos. Na realidade, como escreve o Financial Times,
as grandes tecnológicas americanas não foram nem escolhidas, nem subsidiadas
pelo Estado e a sua origem explica-se, em primeiro lugar, pela excelência das
universidades e da investigação científica — duas coisas de que o Reino Unido
ainda dispõe em abundância.
4. O que faz,
então, correr Boris Johnson? Como escrevia também o Financial Times, os
populistas morrem normalmente pela incompetência. São bons a fazer promessas muito
simples. Péssimos a lidar com a realidade. Quando essa incompetência fica a
descoberto, têm de se agarrar a qualquer coisa que toque no sentimento das
pessoas. Ninguém, nem Boris Johnson, pode ser comparado a Donald Trump, que
excede a imaginação mais fulgurante no que toca à mentira, à falta de carácter
e à incompetência. Mas o modus operandi talvez seja comparável. Trump agarra-se
furiosamente a um só tema, “law and order”, para atear as chamas e o medo nos
subúrbios americanos, tentando evitar uma derrota prevista em todas as
sondagens. Boris pode ter tido a tentação de se agarrar ao único tema que o
levou até ao número 10 de Downing Street — o “Brexit”. Se for assim, está a
brincar com o fogo de forma irresponsável, acompanhando uma vez mais o seu “émulo”
americano. É um aviso para os riscos imensos do populismo, que atinge a grande
democracia americana e pode atingir a velha e sólida democracia britânica.
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