quarta-feira, 16 de setembro de 2020

O lar de Reguengos e o inquérito que nunca existiu

 


OPINIÃO CORONAVÍRUS

O lar de Reguengos e o inquérito que nunca existiu

 

O inquérito da Segurança Social ao lar de Reguengos foi uma vichyssoise servida por António Costa na primeira página do Expresso.

 

JOÃO MIGUEL TAVARES

17 de Setembro de 2020, 0:08

https://www.publico.pt/2020/09/17/opiniao/opiniao/lar-reguengos-inquerito-existiu-1931833

 

Nesta quinta-feira, o Expresso ofereceu-nos uma notícia extraordinária e particularmente esclarecedora sobre o uso do spin na política. Ela diz respeito a um dos temas mais sensíveis para o Governo desde o início da pandemia: a tragédia no lar de Reguengos de Monsaraz. O spin é do próprio António Costa e foi criado por declarações suas numa entrevista ao Expresso. Vale a pena recordar a linha dos acontecimentos, passo a passo.

 

Como todos sabemos, o surto de Monsaraz causou 17 mortos no lar da Fundação Maria Inácia Silva em Julho deste ano, e causou grandes danos políticos ao Governo, devido a uma auditoria promovida pela Ordem dos Médicos. Divulgada no início de Agosto, essa auditoria arrasava as condições do lar e a actuação da Administração Regional de Saúde do Alentejo. Por tabela, apanhavam a DGS, a Segurança Social e o próprio PS, porque entre a ARS local, o lar e a câmara de Reguengos, o que tínhamos era o habitual albergue de jobs for the boys e a costumeira incompetência gerada pelas escolhas por cartão partidário.

 

Como se isto já não fosse suficientemente mau para o Governo, a ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, Ana Mendes Godinho, deu uma entrevista desastrada ao Expresso no dia 15 de Agosto, afirmando a propósito do relatório da Ordem dos Médicos de que toda a gente falava, dez dias após ele ter sido revelado: “Não o li pessoalmente, mas já pedi que o analisassem.” Aquele “não o li pessoalmente” era uma confissão terrível, e o presidente da República percebeu-o muito bem, tendo declarado no próprio dia da entrevista da ministra: “Eu li os vários relatórios. É preciso lê-los todos.”

 

O inquérito de Julho pura e simplesmente nunca existiu. Aquilo que a ministra da Segurança Social fez nessa data foi somente pedir aos serviços toda a informação que havia disponível sobre o lar.

 

Três dias depois, a 18 de Agosto, António Costa saiu em defesa de Ana Mendes Godinho, afirmando: “Gostaria de recordar que a senhora ministra instaurou um inquérito logo no dia 12 de Julho e no dia 16 de Julho já estava a comunicar os resultados do inquérito ao Ministério Público.” Uma semana depois, foi a vez de o próprio Costa dar uma entrevista ao Expresso, e aí o spin atingiu todo o seu esplendor. Após repetir as declarações sobre o inquérito aberto em Julho, coisa de que a ministra nunca informara o Expresso, Costa foi confrontado pelos jornalistas com essa estranha omissão. Resposta: “Pois, não sei. Acho que tive mais sorte do que vocês na pergunta que fiz à ministra.”

 

Esta quinta-feira soube-se que, afinal, não foi sorte. O inquérito de Julho pura e simplesmente nunca existiu. Aquilo que a ministra da Segurança Social fez nessa data foi somente pedir aos serviços toda a informação que havia disponível sobre o lar. E, entre essa informação, constava um relatório de 24 páginas acerca do lar da Fundação Maria Inácia Silva, produzido após uma visita de técnicos da Segurança Social a… 11 de Março de 2020! Cinco dias antes da primeira morte por covid em Portugal. Uma semana antes da declaração de estado de emergência. Três meses prévios ao início do surto em Reguengos de Monsaraz.

 

O inquérito da Segurança Social ao lar de Reguengos foi uma vichyssoise servida por António Costa na primeira página do Expresso, a 22 de Agosto de 2020. Se não fosse a auditoria da Ordem dos Médicos, a tal que Costa garantiu na mesma entrevista não ter competência legal para fiscalizar o que se passou, nós teríamos tido nada. Zero. Bola. Nicles. A culpa teria morrido solteira, como morreu em dezenas de lares por esse país fora. Bem-vindos ao mundo do spin costista. Viva o Governo. Morra a verdade.

 

Jornalista

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