terça-feira, 8 de setembro de 2020

“Há fogo no Bezelga!” Manual de sobrevivência de um prédio em Lisboa

 


REPORTAGEM

“Há fogo no Bezelga!” Manual de sobrevivência de um prédio em Lisboa

 

Um prédio carismático da Av. Almirante Reis ardeu há mais de dois anos e continua em ruína. Num eixo da cidade onde a pobreza é um negócio, os seus habitantes eram maioritariamente pessoas sem-abrigo que tiveram de reorganizar a sua vida.

 

João Pedro Pincha 5 de Setembro de 2020, 22:05

https://www.publico.pt/2020/09/05/local/reportagem/ha-fogo-bezelga-1930367?fbclid=IwAR1S5VmwcW_qGk8rViMr6AuCBWiuzjAzvHZtBula2NsBqvJe2gP-3vTrLJw

 

Estava muito frio naquela noite. Rui Gonçalves levantou-se para ir fazer chocolate quente e quando chegou à cozinha sentiu um cheiro forte. “A frango assado”, diria à polícia mais tarde. Não deu grande importância, porque no prédio havia uma churrasqueira e a chaminé terminava ali mesmo, no quinto andar em que ele se encontrava. Pôs água ao lume e aguardou. O quadro eléctrico foi abaixo. Também não ligou muito, desde a tarde do dia anterior que as falhas se sucediam.

 

Uns cinco minutos depois, já a caminho do quarto, assustou-se. Um homem que vivia no mesmo apartamento abriu a porta repentinamente. “Saía de lá uma nuvem de fumo, uma labareda”, descreve Rui Gonçalves. “Fui pelo corredor a gritar ‘Fogo! Fogo! Fogo!’. Quando chego ao meu quarto já estavam as paredes a arder.”

 

Eram três da manhã quando o incêndio deflagrou no número 22 da Avenida Almirante Reis, em Lisboa. No último piso, Rui Gonçalves foi bater a todas as portas para avisar os companheiros de casa. No segundo, foi a cadela a rosnar e a ladrar que alertou os habitantes. Na rua, um agente da Polícia Municipal sentiu o cheiro a queimado e aproximou-se do edifício. Viu “chamas a sair do último andar”, mas também “ao nível do rés-do-chão”, “labaredas de grandes proporções” e “moradores aos gritos”, como descreveria mais tarde.

 

Foi ele que chamou os bombeiros e estes apareceram em menos de dez minutos. “Aquando da nossa chegada ao local, constatou-se que o fogo se desenvolvia com grande intensidade, tendo-se propagado à generalidade do edifício”, lê-se no relatório do Regimento de Sapadores Bombeiros. Desfazia-se, perante os seus olhos, um emblemático prédio de Lisboa: o Bezelga, esquina da Almirante Reis com a Rua Andrade, perto do Intendente. Desde esse dia, 6 de Fevereiro de 2018, que ele permanece uma chaga aberta na cidade.

 

Naquela madrugada chegou a registar-se uma temperatura de dois graus. “Estávamos no Pavilhão da Graça a atender as pessoas por causa da vaga de frio e somos avisados de que tinha havido um incêndio”, recorda Celeste Brissos, coordenadora da Unidade de Emergência da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.

 

No momento do fogo estavam 17 pessoas no edifício Bezelga, a maioria nos 3º e 5º pisos. Apesar de haver apenas um apartamento por andar, estas duas casas estavam subarrendadas por quartos. Ali moravam pessoas recentemente saídas da rua ou com graves carências sociais e económicas, a quem Santa Casa pagava a renda.

 

Rui Gonçalves era um deles. Outro era Rómulo Aguiar. “Entravam e saíam pessoas com muita frequência. No meu quarto, éramos quatro”, conta. Em cada um dos dois pisos, haveria “uns seis ou sete quartos”, de diferente capacidade, e espaço total para 19 pessoas.

 

Saía de lá uma nuvem de fumo, uma labareda. Fui pelo corredor a gritar ‘Fogo! Fogo! Fogo!’. Quando chego ao meu quarto já estavam as paredes a arder

Rui Gonçalves

 

Quando recebeu a notícia do fogo, Celeste Brissos tratou de encontrar solução para os desalojados. À excepção de uma família que morava em permanência no segundo andar, todos os ocupantes do prédio “já eram acompanhados pela Santa Casa e estavam em processo de reorganização”, explica. Habitualmente, o percurso de alguém que queira deixar de viver na rua começa num centro de acolhimento temporário, seguindo-se a mudança para um quarto apoiado e o acesso a prestações sociais, a ajuda alimentar e para os transportes.

 

Vários dos então habitantes do Bezelga voltaram à casa de partida e pelo menos uma pessoa esteve a dormir na rua durante alguns meses. A casa que lhe foi temporariamente atribuída ficava longe do centro da cidade e tornava mais complicada a deslocação para o trabalho, tendo preferido ficar no Intendente. “As pessoas, mesmo na rua, sentem-se em casa neste eixo da Av. Almirante Reis”, comenta Ana Filipa Dias, coordenadora da Unidade de Desenvolvimento e Intervenção de Proximidade (UDIP) da Alameda, uma estrutura também da Santa Casa vocacionada para acompanhar estas situações.

 

A pandemia de covid-19 trouxe para as notícias os casos de hostels em que requerentes de asilo vivem em sobrelotação e condições precárias, mas para quem trabalha na área do apoio aos sem-abrigo essa realidade está longe de ser nova. E piorou nos últimos anos, à medida que a cidade ganhou atractividade turística e os senhorios transformavam os quartos destinados a acolher estas pessoas em unidades de alojamento local.

 

“Estamos com um grande problema nos quartos em Lisboa. Além da escassez, há uma grande especulação de preços”, afirma Celeste Brissos. “Há um negócio da pobreza. Há pessoas que enriquecem com a pobreza”, acusa. Ana Filipa Dias concretiza: “Não há alojamento e o que há é caríssimo. Isto está transformado num negócio em que não interessa muito como é que as pessoas estão. A mentalidade é ‘É para encher, é para ganhar dinheiro.’ Temos casos de pessoas que vêm pedir ajuda para arrendamento e quando vamos ver o quarto, aquilo é uma despensa. Uma despensa autêntica.”

 

Causa indeterminada

Não era o caso do Bezelga, em que as casas tinham áreas generosas devido a manterem a tipologia original, mas nem por isso as condições de vida eram ali muito boas. No dia anterior ao incêndio, como já estava muito frio, os moradores do 3º e 5º pisos começaram a ligar os seus aquecedores e isso provocou quedas constantes no quadro eléctrico. Tinham de se revezar na utilização de aparelhos e gritavam entre os quartos para que alguém desligasse qualquer coisa.

 

O seu quarto, diz Rui Gonçalves, estava sempre “cheio de baratas e de ratos” e por isso preferia lá estar o menos tempo possível, passando quase todo o dia na rua. A última vez que lá esteve foi na noite do incêndio, nem sequer voltou para ver se algum dos seus pertences era recuperável.

 

Uma meia hora depois de os bombeiros chegarem, Rui e os restantes colegas de casa desceram pelas escadas metálicas nas traseiras do edifício e chegaram finalmente à rua. Para alguns foi a primeira e última vez que se viram. “A gente dispersou. Voltei lá, uns dois ou três dias depois, só para retirar as minhas coisas”, conta Rómulo Aguiar.

 

Eram quase quatro horas. A caixa das escadas, em madeira, e os pisos superiores estavam destruídos. No rés-do-chão, o fogo consumiu uma churrasqueira, um restaurante de kebabs, uma pastelaria e uma pequena loja de roupa. Desapareceu tudo em pouco tempo.

 

Elisabete Santos, dona da churrasqueira Xiluba ali instalada há mais de 20 anos, viu-se de repente sem pé. “Se não tivesse amigos que me ajudassem, pessoas que me desafiaram a ir à luta outra vez, tinha ido viver para debaixo da ponte. Fiquei sem material, sem emprego, sem nada”, comenta.

 

Se não tivesse amigos que me ajudassem, pessoas que me desafiaram a ir à luta outra vez, tinha ido viver para debaixo da ponte. Fiquei sem material, sem emprego, sem nada

Elisabete Santos

 

Aquela noite “parecia um inferno” e não lhe sai da cabeça “o barulho daquilo tudo”, a madeira a ceder, os vidros a estalar. O relato de pesadelos, dificuldade em dormir e ataques de pânico é comum a outros ocupantes do prédio com quem o PÚBLICO falou. Como eles, Elisabete Santos garante que não recebeu qualquer apoio depois daquele dia. “Nem psicólogos, nem nada. Nunca ninguém falou comigo.”

 

Os bombeiros conseguiram circunscrever o incêndio às 4h15 e dominá-lo às 4h40. Pelas 4h56 ele foi dado como extinto e iniciaram-se os trabalhos de rescaldo. Só às 16h38 do dia seguinte é que o RSB considerou que a missão estava terminada. “Dadas as circunstâncias em que o edifício ficou, não foi possível chegar a uma efectiva e real conclusão da sua origem, pelo que se considera indeterminada”, diz o relatório dos bombeiros.

 

O relatório da Polícia Judiciária (PJ) também não é mais conclusivo. “Não foi possível realizar a competente inspecção judiciária”, admitem os inspectores, justificando que o excesso de escombros no hall de entrada os impediu de fazer diligências. “O grau de dano era tal que todo o material constituinte das escadarias e telhado que não foi totalmente consumido pelas chamas desabou sobre este local.”

 

A PJ constatou que “todos os andares apresentavam um maior grau de dano nas zonas contendentes com a zona das escadarias, o que indica que o incêndio ter-se-á propagado por esta zona, aproveitando a posterior quebra da clarabóia, de vidro, que a encimava, e a subsequente oxigenação, para desenvolver a combustão mais intensa do incêndio e, concomitantemente, a sua propagação para os diversos níveis.”

 

As palmeiras do farmacêutico

Um curto-circuito? Um cigarro mal apagado? Fogo posto? Nos dias que se seguiram ao incêndio ouviram-se teorias de todo o tipo para a sua origem. Não chegou a haver uma conclusão e o inquérito foi arquivado. Sabia-se, no entanto, que a porta da rua estava sempre aberta e que no hall se acumulava lixo e roupa. A PJ apontou esses factos como responsáveis pela “rápida propagação a partir daquele local para os andares superiores”.

 

O edifício Bezelga era, àquela data, propriedade dos Paula Marques, uma família do Porto. Joaquim Paula Marques diz que só no dia do incêndio descobriu que dois pisos estavam a ser subarrendados e usados para alojar pessoas sem-abrigo. “Isso não estava previsto no contrato”, garante.

 

Foi o seu avô que comprou o imóvel, algures nos anos 1930. Até aí ele pertencera ao homem que o mandara construir: João Augusto Bezelga, um farmacêutico que inscreveu o seu nome na História da cidade por ter colocado na fachada umas palmeiras em pedra que são imagem de marca do edifício – e uma singularidade na Almirante Reis.

 

Em 1908, Bezelga apresentou-se na Câmara de Lisboa para arrematar um terreno por doze mil réis o metro quadrado. Situado na esquina entre a Rua Andrade e a então Av. Dona Amélia, o lote tinha perto de 500 metros quadrados e, por isso, custou quase seis contos de réis, um valor de que a autarquia precisava como pão para a boca. No ano anterior, a câmara decidira vender terrenos naquela zona da cidade “para socorrer às despezas das obras de viação”. Frederico Ressano Garcia, que assinava esse ofício, tinha decidido rasgar uma avenida nos Anjos que ainda estava longe de estar concluída.

 

Aliás, a câmara não deixava João Bezelga erguer o prédio antes de ser demolida a antiga Igreja dos Anjos, que se situava ali à esquina, e obrigava-o a construir as serventias de acesso. Na “memoria descriptiva” da construção, apresentada aos serviços a 26 de Junho de 1909, assegurava-se que “os matereaes nella empregados serão de primeira qualidade e será construída em harmonia com o regulamento de salubridade de edificações urbanas”. Apesar de constarem no desenho dos alçados, não há qualquer menção escrita às palmeiras da fachada, ali postas como uma referência à profissão de Bezelga, que abriu uma farmácia no piso térreo.

 

A sua intenção inicial era ocupar todo o lote comprado com a edificação, prolongando o prédio para a Rua Andrade, onde Bezelga residia, mas ainda em 1909 desiste dessa pretensão. Só em 1916 é que o farmacêutico, então já a morar em Queluz e dono de outro prédio de rendimento no Alto da Damaia, decide voltar ao primeiro projecto. A autarquia aprova a ampliação, mas João Bezelga não levanta a licença.

 

Assim, tantos anos depois, a farmácia há muito desaparecida, o edifício mantém-se praticamente inalterado no exterior. Alguns comerciantes do rés-do-chão, como uma retrosaria e uma tabacaria, tentaram nos anos 1930 pôr letreiros mais modernos, mas a câmara nunca deixou que se mudasse a fachada.

 

“Benfica é na China”

Nos dias seguintes ao incêndio, representantes de várias agências imobiliárias apareceram no local para tentar descobrir a quem pertencia o prédio. Depois de uma vistoria técnica, os serviços municipais concluíram que o imóvel era recuperável. Ao fim de quase 90 anos nas suas mãos, os Paula Marques decidiram vendê-lo porque anteviram uma reabilitação muito cara. O edifício mudou de mãos em Agosto de 2018 e outra vez em Outubro do mesmo ano, com uma valorização de 700 mil euros entre ambas as transacções. Corre actualmente um processo de obras nos serviços de Urbanismo da câmara que prevê a divisão dos antigos apartamentos de seis assoalhadas em T1 e T2, mais consonantes com os padrões de vida actuais.

 

Rui Gonçalves, que foi a única pessoa a precisar de tratamento hospitalar por inalação de fumos, conseguiu arranjar quarto numa pensão apenas alguns dias depois do fogo. Ainda hoje lá está. Dos restantes casos que passaram pela UDIP Alameda, várias pessoas recusaram ajuda e desapareceram do radar da Santa Casa. Um agregado, composto por mãe e filho, conseguiu autonomizar-se. Das sete pessoas inicialmente apoiadas pela Unidade de Emergência, duas encontraram trabalho nos meses seguintes ao incêndio e cinco mantiveram-se em quartos apoiados.

 

“Tanto é um caso de sucesso aquele que se integra no mercado de trabalho como aquele que, não conseguindo, tem a possibilidade de uma vida digna”, diz Celeste Brissos. No Bezelga havia “pessoas com patologias várias do foro físico e mental” e “com necessidade de apoio à medicação”, além de pessoas com problemas de toxicodependência, que foram integradas em comunidades terapêuticas.

 

Uma realidade que Ana Filipa Dias também conhece bem. “Baixa escolaridade, baixas competências, desemprego prolongado, doença psiquiátrica por vezes”, diagnostica a coordenadora da UDIP. E um grande sentimento de pertença ao eixo da Av. Almirante Reis, entre o Martim Moniz e a Alameda, onde se situa a maioria dos quartos e centros de apoio à população sem-abrigo da cidade. “Para as pessoas que aqui estão há muitos anos, mesmo andando a saltitar de quarto em quarto ou na rua, isto é a vida delas. Benfica é na China.”

 

“Todos os dias quando abrimos a porta ao público nos deparamos com situações novas. A nossa criatividade tem de trabalhar todos os dias”, desabafa Ana Filipa Dias. Para Celeste Brissos, há quase 40 anos nestas andanças, “dá muita gratificação ver que a intervenção muda mesmo a vida das pessoas”. Mesmo que, muitas vezes, haja muita frustração antes de lá chegar. “Quando eu tirei o curso de assistente social queria mudar o mundo e pensava que éramos todos bons. Depois é que vi que não.”

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