REPORTAGEM
“Há fogo no Bezelga!” Manual de sobrevivência de um
prédio em Lisboa
Um prédio carismático da Av. Almirante Reis ardeu há mais
de dois anos e continua em ruína. Num eixo da cidade onde a pobreza é um
negócio, os seus habitantes eram maioritariamente pessoas sem-abrigo que
tiveram de reorganizar a sua vida.
João Pedro Pincha
5 de Setembro de 2020, 22:05
Estava muito frio
naquela noite. Rui Gonçalves levantou-se para ir fazer chocolate quente e
quando chegou à cozinha sentiu um cheiro forte. “A frango assado”, diria à
polícia mais tarde. Não deu grande importância, porque no prédio havia uma
churrasqueira e a chaminé terminava ali mesmo, no quinto andar em que ele se
encontrava. Pôs água ao lume e aguardou. O quadro eléctrico foi abaixo. Também
não ligou muito, desde a tarde do dia anterior que as falhas se sucediam.
Uns cinco minutos
depois, já a caminho do quarto, assustou-se. Um homem que vivia no mesmo
apartamento abriu a porta repentinamente. “Saía de lá uma nuvem de fumo, uma
labareda”, descreve Rui Gonçalves. “Fui pelo corredor a gritar ‘Fogo! Fogo!
Fogo!’. Quando chego ao meu quarto já estavam as paredes a arder.”
Eram três da
manhã quando o incêndio deflagrou no número 22 da Avenida Almirante Reis, em
Lisboa. No último piso, Rui Gonçalves foi bater a todas as portas para avisar
os companheiros de casa. No segundo, foi a cadela a rosnar e a ladrar que
alertou os habitantes. Na rua, um agente da Polícia Municipal sentiu o cheiro a
queimado e aproximou-se do edifício. Viu “chamas a sair do último andar”, mas
também “ao nível do rés-do-chão”, “labaredas de grandes proporções” e
“moradores aos gritos”, como descreveria mais tarde.
Foi ele que
chamou os bombeiros e estes apareceram em menos de dez minutos. “Aquando da
nossa chegada ao local, constatou-se que o fogo se desenvolvia com grande
intensidade, tendo-se propagado à generalidade do edifício”, lê-se no relatório
do Regimento de Sapadores Bombeiros. Desfazia-se, perante os seus olhos, um
emblemático prédio de Lisboa: o Bezelga, esquina da Almirante Reis com a Rua
Andrade, perto do Intendente. Desde esse dia, 6 de Fevereiro de 2018, que ele
permanece uma chaga aberta na cidade.
Naquela madrugada
chegou a registar-se uma temperatura de dois graus. “Estávamos no Pavilhão da
Graça a atender as pessoas por causa da vaga de frio e somos avisados de que
tinha havido um incêndio”, recorda Celeste Brissos, coordenadora da Unidade de
Emergência da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.
No momento do
fogo estavam 17 pessoas no edifício Bezelga, a maioria nos 3º e 5º pisos.
Apesar de haver apenas um apartamento por andar, estas duas casas estavam
subarrendadas por quartos. Ali moravam pessoas recentemente saídas da rua ou
com graves carências sociais e económicas, a quem Santa Casa pagava a renda.
Rui Gonçalves era
um deles. Outro era Rómulo Aguiar. “Entravam e saíam pessoas com muita
frequência. No meu quarto, éramos quatro”, conta. Em cada um dos dois pisos,
haveria “uns seis ou sete quartos”, de diferente capacidade, e espaço total
para 19 pessoas.
Saía de lá uma nuvem de fumo, uma labareda. Fui pelo
corredor a gritar ‘Fogo! Fogo! Fogo!’. Quando chego ao meu quarto já estavam as
paredes a arder
Rui Gonçalves
Quando recebeu a
notícia do fogo, Celeste Brissos tratou de encontrar solução para os
desalojados. À excepção de uma família que morava em permanência no segundo
andar, todos os ocupantes do prédio “já eram acompanhados pela Santa Casa e
estavam em processo de reorganização”, explica. Habitualmente, o percurso de
alguém que queira deixar de viver na rua começa num centro de acolhimento
temporário, seguindo-se a mudança para um quarto apoiado e o acesso a
prestações sociais, a ajuda alimentar e para os transportes.
Vários dos então
habitantes do Bezelga voltaram à casa de partida e pelo menos uma pessoa esteve
a dormir na rua durante alguns meses. A casa que lhe foi temporariamente
atribuída ficava longe do centro da cidade e tornava mais complicada a
deslocação para o trabalho, tendo preferido ficar no Intendente. “As pessoas,
mesmo na rua, sentem-se em casa neste eixo da Av. Almirante Reis”, comenta Ana
Filipa Dias, coordenadora da Unidade de Desenvolvimento e Intervenção de
Proximidade (UDIP) da Alameda, uma estrutura também da Santa Casa vocacionada
para acompanhar estas situações.
A pandemia de
covid-19 trouxe para as notícias os casos de hostels em que requerentes de
asilo vivem em sobrelotação e condições precárias, mas para quem trabalha na
área do apoio aos sem-abrigo essa realidade está longe de ser nova. E piorou
nos últimos anos, à medida que a cidade ganhou atractividade turística e os
senhorios transformavam os quartos destinados a acolher estas pessoas em
unidades de alojamento local.
“Estamos com um
grande problema nos quartos em Lisboa. Além da escassez, há uma grande
especulação de preços”, afirma Celeste Brissos. “Há um negócio da pobreza. Há
pessoas que enriquecem com a pobreza”, acusa. Ana Filipa Dias concretiza: “Não
há alojamento e o que há é caríssimo. Isto está transformado num negócio em que
não interessa muito como é que as pessoas estão. A mentalidade é ‘É para encher,
é para ganhar dinheiro.’ Temos casos de pessoas que vêm pedir ajuda para
arrendamento e quando vamos ver o quarto, aquilo é uma despensa. Uma despensa
autêntica.”
Causa
indeterminada
Não era o caso do
Bezelga, em que as casas tinham áreas generosas devido a manterem a tipologia
original, mas nem por isso as condições de vida eram ali muito boas. No dia
anterior ao incêndio, como já estava muito frio, os moradores do 3º e 5º pisos
começaram a ligar os seus aquecedores e isso provocou quedas constantes no quadro
eléctrico. Tinham de se revezar na utilização de aparelhos e gritavam entre os
quartos para que alguém desligasse qualquer coisa.
O seu quarto, diz
Rui Gonçalves, estava sempre “cheio de baratas e de ratos” e por isso preferia
lá estar o menos tempo possível, passando quase todo o dia na rua. A última vez
que lá esteve foi na noite do incêndio, nem sequer voltou para ver se algum dos
seus pertences era recuperável.
Uma meia hora
depois de os bombeiros chegarem, Rui e os restantes colegas de casa desceram
pelas escadas metálicas nas traseiras do edifício e chegaram finalmente à rua.
Para alguns foi a primeira e última vez que se viram. “A gente dispersou.
Voltei lá, uns dois ou três dias depois, só para retirar as minhas coisas”,
conta Rómulo Aguiar.
Eram quase quatro
horas. A caixa das escadas, em madeira, e os pisos superiores estavam
destruídos. No rés-do-chão, o fogo consumiu uma churrasqueira, um restaurante
de kebabs, uma pastelaria e uma pequena loja de roupa. Desapareceu tudo em
pouco tempo.
Elisabete Santos,
dona da churrasqueira Xiluba ali instalada há mais de 20 anos, viu-se de
repente sem pé. “Se não tivesse amigos que me ajudassem, pessoas que me
desafiaram a ir à luta outra vez, tinha ido viver para debaixo da ponte. Fiquei
sem material, sem emprego, sem nada”, comenta.
Se não tivesse amigos que me ajudassem, pessoas que me
desafiaram a ir à luta outra vez, tinha ido viver para debaixo da ponte. Fiquei
sem material, sem emprego, sem nada
Elisabete Santos
Aquela noite
“parecia um inferno” e não lhe sai da cabeça “o barulho daquilo tudo”, a
madeira a ceder, os vidros a estalar. O relato de pesadelos, dificuldade em
dormir e ataques de pânico é comum a outros ocupantes do prédio com quem o
PÚBLICO falou. Como eles, Elisabete Santos garante que não recebeu qualquer
apoio depois daquele dia. “Nem psicólogos, nem nada. Nunca ninguém falou
comigo.”
Os bombeiros
conseguiram circunscrever o incêndio às 4h15 e dominá-lo às 4h40. Pelas 4h56
ele foi dado como extinto e iniciaram-se os trabalhos de rescaldo. Só às 16h38
do dia seguinte é que o RSB considerou que a missão estava terminada. “Dadas as
circunstâncias em que o edifício ficou, não foi possível chegar a uma efectiva
e real conclusão da sua origem, pelo que se considera indeterminada”, diz o
relatório dos bombeiros.
O relatório da
Polícia Judiciária (PJ) também não é mais conclusivo. “Não foi possível
realizar a competente inspecção judiciária”, admitem os inspectores,
justificando que o excesso de escombros no hall de entrada os impediu de fazer
diligências. “O grau de dano era tal que todo o material constituinte das
escadarias e telhado que não foi totalmente consumido pelas chamas desabou
sobre este local.”
A PJ constatou
que “todos os andares apresentavam um maior grau de dano nas zonas contendentes
com a zona das escadarias, o que indica que o incêndio ter-se-á propagado por
esta zona, aproveitando a posterior quebra da clarabóia, de vidro, que a
encimava, e a subsequente oxigenação, para desenvolver a combustão mais intensa
do incêndio e, concomitantemente, a sua propagação para os diversos níveis.”
As palmeiras do
farmacêutico
Um
curto-circuito? Um cigarro mal apagado? Fogo posto? Nos dias que se seguiram ao
incêndio ouviram-se teorias de todo o tipo para a sua origem. Não chegou a
haver uma conclusão e o inquérito foi arquivado. Sabia-se, no entanto, que a
porta da rua estava sempre aberta e que no hall se acumulava lixo e roupa. A PJ
apontou esses factos como responsáveis pela “rápida propagação a partir daquele
local para os andares superiores”.
O edifício
Bezelga era, àquela data, propriedade dos Paula Marques, uma família do Porto.
Joaquim Paula Marques diz que só no dia do incêndio descobriu que dois pisos
estavam a ser subarrendados e usados para alojar pessoas sem-abrigo. “Isso não
estava previsto no contrato”, garante.
Foi o seu avô que
comprou o imóvel, algures nos anos 1930. Até aí ele pertencera ao homem que o
mandara construir: João Augusto Bezelga, um farmacêutico que inscreveu o seu
nome na História da cidade por ter colocado na fachada umas palmeiras em pedra
que são imagem de marca do edifício – e uma singularidade na Almirante Reis.
Em 1908, Bezelga
apresentou-se na Câmara de Lisboa para arrematar um terreno por doze mil réis o
metro quadrado. Situado na esquina entre a Rua Andrade e a então Av. Dona
Amélia, o lote tinha perto de 500 metros quadrados e, por isso, custou quase
seis contos de réis, um valor de que a autarquia precisava como pão para a
boca. No ano anterior, a câmara decidira vender terrenos naquela zona da cidade
“para socorrer às despezas das obras de viação”. Frederico Ressano Garcia, que
assinava esse ofício, tinha decidido rasgar uma avenida nos Anjos que ainda
estava longe de estar concluída.
Aliás, a câmara
não deixava João Bezelga erguer o prédio antes de ser demolida a antiga Igreja
dos Anjos, que se situava ali à esquina, e obrigava-o a construir as serventias
de acesso. Na “memoria descriptiva” da construção, apresentada aos serviços a
26 de Junho de 1909, assegurava-se que “os matereaes nella empregados serão de
primeira qualidade e será construída em harmonia com o regulamento de
salubridade de edificações urbanas”. Apesar de constarem no desenho dos
alçados, não há qualquer menção escrita às palmeiras da fachada, ali postas
como uma referência à profissão de Bezelga, que abriu uma farmácia no piso
térreo.
A sua intenção
inicial era ocupar todo o lote comprado com a edificação, prolongando o prédio
para a Rua Andrade, onde Bezelga residia, mas ainda em 1909 desiste dessa
pretensão. Só em 1916 é que o farmacêutico, então já a morar em Queluz e dono
de outro prédio de rendimento no Alto da Damaia, decide voltar ao primeiro
projecto. A autarquia aprova a ampliação, mas João Bezelga não levanta a
licença.
Assim, tantos
anos depois, a farmácia há muito desaparecida, o edifício mantém-se
praticamente inalterado no exterior. Alguns comerciantes do rés-do-chão, como
uma retrosaria e uma tabacaria, tentaram nos anos 1930 pôr letreiros mais
modernos, mas a câmara nunca deixou que se mudasse a fachada.
“Benfica é na
China”
Nos dias
seguintes ao incêndio, representantes de várias agências imobiliárias
apareceram no local para tentar descobrir a quem pertencia o prédio. Depois de
uma vistoria técnica, os serviços municipais concluíram que o imóvel era
recuperável. Ao fim de quase 90 anos nas suas mãos, os Paula Marques decidiram
vendê-lo porque anteviram uma reabilitação muito cara. O edifício mudou de mãos
em Agosto de 2018 e outra vez em Outubro do mesmo ano, com uma valorização de
700 mil euros entre ambas as transacções. Corre actualmente um processo de
obras nos serviços de Urbanismo da câmara que prevê a divisão dos antigos
apartamentos de seis assoalhadas em T1 e T2, mais consonantes com os padrões de
vida actuais.
Rui Gonçalves,
que foi a única pessoa a precisar de tratamento hospitalar por inalação de
fumos, conseguiu arranjar quarto numa pensão apenas alguns dias depois do fogo.
Ainda hoje lá está. Dos restantes casos que passaram pela UDIP Alameda, várias
pessoas recusaram ajuda e desapareceram do radar da Santa Casa. Um agregado,
composto por mãe e filho, conseguiu autonomizar-se. Das sete pessoas
inicialmente apoiadas pela Unidade de Emergência, duas encontraram trabalho nos
meses seguintes ao incêndio e cinco mantiveram-se em quartos apoiados.
“Tanto é um caso
de sucesso aquele que se integra no mercado de trabalho como aquele que, não
conseguindo, tem a possibilidade de uma vida digna”, diz Celeste Brissos. No
Bezelga havia “pessoas com patologias várias do foro físico e mental” e “com
necessidade de apoio à medicação”, além de pessoas com problemas de toxicodependência,
que foram integradas em comunidades terapêuticas.
Uma realidade que
Ana Filipa Dias também conhece bem. “Baixa escolaridade, baixas competências,
desemprego prolongado, doença psiquiátrica por vezes”, diagnostica a
coordenadora da UDIP. E um grande sentimento de pertença ao eixo da Av.
Almirante Reis, entre o Martim Moniz e a Alameda, onde se situa a maioria dos
quartos e centros de apoio à população sem-abrigo da cidade. “Para as pessoas
que aqui estão há muitos anos, mesmo andando a saltitar de quarto em quarto ou
na rua, isto é a vida delas. Benfica é na China.”
“Todos os dias
quando abrimos a porta ao público nos deparamos com situações novas. A nossa
criatividade tem de trabalhar todos os dias”, desabafa Ana Filipa Dias. Para
Celeste Brissos, há quase 40 anos nestas andanças, “dá muita gratificação ver
que a intervenção muda mesmo a vida das pessoas”. Mesmo que, muitas vezes, haja
muita frustração antes de lá chegar. “Quando eu tirei o curso de assistente
social queria mudar o mundo e pensava que éramos todos bons. Depois é
que vi que não.”
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