OPINIÃO
O vírus que atacou a língua portuguesa
A língua é uma coisa viva e o “acordês” é uma língua
morta. Foi ferida por um vírus pior nos seus efeitos sociais e culturais do que
o coronavírus.
JOSÉ PACHECO
PEREIRA
9 de Maio de
2020, 0:40
“No tempo do Getúlio
(Brasil) e de Salazar (Portugal) foram feitos acordos que não prevaleceram,
porque, na realidade, quem faz a língua não são as academias, nem os governos.
Quem faz a língua é o povo.”
Carlos Heitor
Cony
Tenho à minha
frente uma série de jornais e de outras publicações do Brasil, de Angola, de
Cabo Verde, de Moçambique, da Guiné, de Macau e de Timor. São actuais e nenhum
respeita o Acordo Ortográfico. Se acrescentar a esses jornais e publicações
mais uma série oriunda de Portugal, ou explicitamente recusam o Acordo, ou
misturam artigos escritos nas duas línguas, o “acordês” e o português. Já não
ponho livros em cima da mesa, romances, poemas, ensaios, porque quanto mais
conhecido e criativo é o autor, menos usa o “acordês”.
Por detrás destas
publicações está uma série de acordos diplomáticos que, ou estão a ser
ilegalmente aplicados, ou foram ratificados e metidos na gaveta, com explícitas
declarações de que são para meter na gaveta, ou, por fim, não foram aprovados
pelos países que deveriam tê-los incorporado na legislação nacional. Como
monumental falhanço diplomático, é um caso exemplar. O problema nem sequer é
esse: é que, como falhanço cultural, é uma desgraça, mas, vindo de quem vem, é
previsível.
A razão é muito
simples: a língua é uma coisa viva, e o “acordês” é uma língua morta. Foi
ferida por um vírus pior nos seus efeitos sociais e culturais do que o coronavírus,
e é mantida moribunda por duas forças infelizmente poderosas nos nossos dias: a
inércia e a arrogância de não querer perder a face e admitir o erro. E não
adianta virem dizer-me que língua e ortografia são coisas diferentes e que a
ortografia é uma convenção, e que há muitos precedentes de acordos. Há, mas
nenhum como este, nem no tempo deste.
A ortografia é
uma espécie de impressão digital da língua, faz parte da sua identidade e
qualidade cultural. Transporta a sua memória e a sua história, as suas raízes
nas línguas que foram a sua origem e que a fazem comunicar com as outras
línguas com o mesmo tronco latino. E, como ser vivo, a língua e a sua
ortografia evoluem todos os dias, traduzindo o dinamismo dos povos e das
sociedades onde é falada e escrita. O tragicamente ardido Museu da Língua, em
S. Paulo, traduzia esse dinamismo com a enorme vitalidade do português do
Brasil, incorporando no vocabulário milhares de novas palavras oriundas de
outras línguas trazidas pela emigração ou pelos tempos modernos. Não foi por
acaso que este museu foi feito pelo Brasil, com a sua única e excepcional
homenagem à língua portuguesa, enquanto por cá ninguém sequer aproveitou a
oportunidade da sua desaparição para fazer um museu à língua cá, nem sequer
pediu aos brasileiros que fizessem uma réplica cá, com a adaptação necessária.
Não, em vez disso, continuamos a manter um Acordo que estraga a nossa língua e
que é imposto administrativamente nas escolas e no Estado, para ainda mais
afundar a nossa cultura, em tempos de ignorância agressiva.
É por ter lido
com indignação um artigo publicado no PÚBLICO por quatro ministros
autoglorificando-se pelo que têm feito pela língua portuguesa, numa altura em
que toda a gente sabe que tem havido um considerável recuo da presença do
português de Portugal por tudo quanto é universidade estrangeira, escola,
instituição paga pelos contribuintes como o Instituto Camões, que escrevo. E se
a situação não é pior, deve-se ao Brasil. Mas o que mais me encanita é o
estarem muito contentes pela “dignificação” da língua portuguesa, quando eles
próprios e os seus antecessores do PS e do PSD, desde 1990, são os principais
responsáveis por a manter menos digna, menos própria, menos lavada, menos
forte, menos saudável, doente.
Eu não desisto, porque há ainda muita coisa a fazer
contra o Acordo. A língua portuguesa precisa de nós. E não se esqueçam deste
facto: o Acordo é impopular
É uma causa
quixotesca? Não, não é. Há muita coisa que ainda não se fez. Faça-se como o
lóbi das armas nos EUA (eu sei, péssimo exemplo, mas de lóbis percebem eles…)
e, quando houver uma eleição, pergunta-se ao candidato, seja autárquico, seja
legislativo, qual a sua posição. Depois ajuda-se por todos os meios os que
explicitamente são contra o Acordo, de modo a criar um caucus (que vem do latim
e do grego) na Assembleia e noutras instituições para fazer recuar o uso do
Acordo e criar condições para acabar com ele, ou com a sua aplicação imposta,
sorrateira e maliciosa.
Eu não desisto,
porque há ainda muita coisa a fazer contra o Acordo. Angarie-se algum dinheiro,
e há quem esteja disposto a dá-lo, seja mais, seja uma contribuição de um euro,
façam-se anúncios de página inteira nos jornais, coloquem-se outdoors nas ruas,
peça-se a escritores, criativos, artistas, cientistas, que escrevam uma frase
em defesa da nossa língua ou façam um desenho, um grafismo, uma história aos
quadradinhos, façam-se bancas nas ruas para recolha de assinaturas com a
presença das muitas pessoas conhecidas e de prestígio que ainda escrevem
português, faça-se uma associação de defesa da língua portuguesa ou dinamize-se
uma que já exista, exija-se direito de antena e pressionem-se os órgãos de
comunicação a darem voz a estes críticos da degradação da língua e da cultura.
A língua
portuguesa precisa de nós. E não se esqueçam deste facto: o Acordo é impopular.
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