CORONAVÍRUS
Desconfinar pessoas e não os carros, o novo desafio das
cidades
Governo acredita na capacidade e organização do
transporte público, mas várias vozes pedem mudanças no espaço urbano para
favorecer a mobilidade pedonal e ciclável.
João Pedro Pincha
e Abel Coentrão 4 de Maio de 2020, 7:00
De entre os
vários palavrões que entraram inesperadamente na linguagem do dia-a-dia no
último mês e meio, “desconfinamento” é o que tem preenchido os dias mais
recentes e o que poderia trazer mais alívio a quem passou os últimos quarenta
dias praticamente enclausurado em casa. Mas “alívio” talvez não seja a palavra
certa para as pessoas que esta segunda-feira começam a retomar as suas
deslocações para o local de trabalho. O perigo de contágio com covid-19 não
desapareceu e nas grandes cidades há um cocktail de situações que potenciam a
incerteza e o medo.
Transportes
cheios, passeios estreitos, uma desconfiança generalizada em relação ao outro.
As notícias sobre a Avenida da Liberdade quase sem poluição talvez em breve sejam
apenas uma memória vaga. “Quem puder não vai andar de transportes públicos”,
antecipa João Figueira de Sousa, consultor e investigador em Transportes e
Mobilidade na Universidade Nova de Lisboa. “Vamos ter alterações significativas
na maneira como as pessoas se movem porque vão ter medo.” Esse sentimento não
desaparece de um dia para o outro, mas não é linear que toda a gente se vire
inevitavelmente para o automóvel.
Essa é, desde
logo, a expectativa do Governo. Ao PÚBLICO, o ministro do Ambiente (que tutela
os transportes urbanos) adiantou que, nestes primeiros dias, até se avaliar
melhor as necessidades, há empresas que reforçarão ao limite a oferta de
transporte nas horas de ponta, para garantir que mais gente possa viajar em
cumprimento das regras de lotação agora estabelecidas, e que reduzem em um
terço a capacidade dos veículos. Com menos gente, frota higienizada várias
vezes ao dia e todos os passageiros de máscara na face (e com multas para quem
não usar), a tutela espera conseguir minimizar os naturais receios de quem
regressa ao “posto” de trabalho e aos seus afazeres quotidianos.
Mesmo com algum
reforço de frequências, onde for possível, há certamente menos lugares
disponíveis nos comboios e nos operadores públicos e privados rodoviários, em
táxis e serviços similares, mas Matos Fernandes assinala também que foi pedido
aos grandes empregadores (e à sociedade em geral), que adapte horários e turnos
para evitar a habitual concentração de deslocações nas horas de ponta. E lembra
que o teletrabalho continua a ser uma obrigação nas actividades em que seja
possível, e que o Estado mantém muitos dos seus funcionários, boa parte deles
das duas áreas metropolitanas, a trabalhar a partir de casa, diminuindo desta
forma a pressão sobre os transportes e sobre a rede viária.
Na nova economia
da língua, desconfinamento e ajuntamento são, para já, palavras a manter
distantes uma da outra, não se devem conjugar na mesma frase, e o urbanismo tem
aqui uma palavra a dizer. Como? Cidades de todo o mundo têm dado respostas.
Milão, Bruxelas, Paris, Barcelona, Vilnius, São Francisco, Nova Iorque, Bogotá
são apenas algumas das que já anunciaram planos mais ou menos ambiciosos para
os próximos tempos – e em todas há alguns denominadores comuns: aumento do
espaço pedonal para facilitar deslocações e garantir o necessário
distanciamento social, criação das chamadas ciclovias instantâneas para
incentivar mais pessoas a andar de bicicleta.
Por cá, neste
aspecto mais imediato, ainda não há decisões conhecidas. A gestão da via pública
e a sua afectação aos vários tipos de mobilidade é uma prerrogativa dos
municípios, o que, noutros países, como Espanha e França, só para referir
exemplos próximos, não impediu que governos avançassem desde já com planos e
medidas imediatas para incentivar, no plano nacional, por exemplo, o recurso à
bicicleta: vista, nos circuitos mais curtos, como uma alternativa desejável ao
transporte público; que ocupa menos espaço, numa altura em que se pede
distância social, e que não polui, outro aspecto importante também neste
momento específico, tendo em conta os estudos que associam a poluição a um
aumento da taxa de mortalidade em doentes com covid-19.
Associações de
defesa da mobilidade activa, como a Mubi, em cartas aos municípios de Lisboa e
do Porto, e especialistas da área do urbanismo e da mobilidade, em múltiplos
artigos de opinião na imprensa, têm alertado para a necessidade, e
oportunidade, de introdução de mudanças nas deslocações urbanas à boleia dos
constrangimentos provocados pela covid-19. E o próprio Governo assume que estes
meses que tanto mexeram com as nossas vidas, dando-nos, em contrapartida, a
experiência de cidades sem poluição, com ruas libertas e silêncio, impelem uma
mudança. E, em declarações ao PÚBLICO, o Matos Fernandes garante estar receptivo
a propostas.
Num documento
recentemente divulgado pelo ministro do Ambiente, em entrevista ao PÚBLICO, a
equipa de Matos Fernandes sintetizava precisamente que, numa sociedade
pós-covid, “importa também repensar a reorganização da circulação e dos espaços
públicos das cidades, tirando partido da menor pressão exercida pelas
deslocações pendulares, de modo a promover o reaproveitamento dos espaços
destinados ao estacionamento e à circulação automóvel para outras funções mais
sustentáveis, nomeadamente canais de circulação para transportes colectivos e
modos suaves e espaços públicos e zonas verdes”.
Num artigo de
opinião, no PÚBLICO, três arquitectos e académicos, Avelino Oliveira, Luís
Pinto de Faria e João Castro Ferreira desafiam os “produtores do espaço” a
começar a trabalhar – em partilha – na construção de respostas para estes novos
tempos. A partir da próxima semana, a galeria de arquitectura Note vai começar
a divulgar vídeos em que arquitectos como Gonçalo Byrne, Carrilho da Graça,
Inês Lobo, José Adrião, Ricardo Bak Gordon e Samuel Torres de Carvalho vão
reflectir sobre o futuro das cidades.
“Não vamos ter um
polícia na porta do comboio”
O ateliermob, do
arquitecto Tiago Mota Saraiva, lançou já uma proposta com oito pontos, num
documento a que chamou “Medidas urgentes para uma cidade aberta
pós-quarentena”, em que assume o “urbanismo táctico, o reforço dos transportes
públicos e a redução drástica do trânsito automóvel” como a única forma de
“deter o aumento exponencial da utilização do automóvel, as expressões mais
violentas do medo perante o outro e a sensação generalizada de que o espaço público
é um território de insegurança”.
Na lista de
ideias deste atelier estão vários pontos comuns às propostas implementadas
noutros locais, como o alargamento de passeios através da supressão de uma via
de trânsito ou de estacionamento, a criação de novas áreas de esplanada
sobretudo para cafés ou restaurantes com pouca capacidade interior ou a
definição de uma rede de ciclovias instantâneas, que não precisem de grande
investimento em infra-estruturas.
Mas a medida mais
nevrálgica, diz Tiago Mota Saraiva, é a que se tomar sobre transportes
públicos. “A decisão sobre os transportes é a que vai ditar se vamos ter as
nossas cidades invadidas por carros ou não, se vai haver segregação social ou
não”, afirma o arquitecto, que defende um reforço da oferta “quase até ao
limite da capacidade”, como se fosse sempre hora de ponta.
“Não vejo outra
hipótese que não um aumento extraordinário dos transportes públicos.” É para aí
também que aponta João Figueira de Sousa, argumentando que a bicicleta não é um
meio de deslocação que toda a gente possa usar. “Acredito que sim, que possa
ser um passo importante, mas para grandes distâncias? Na linha de Sintra as
pessoas não vão de bicicleta. A questão da confiança nos transportes públicos é
essencial”, opina. “É importantíssimo estar assinalada a distância a que as
pessoas devem estar e haver uma pessoa, para além do motorista, a controlar as
entradas para que as pessoas sintam segurança”, acrescenta Tiago Saraiva.
O ministro do
Ambiente conta com a organização das empresas para garantir o cumprimento das
regras de lotação, mas assume que, nos sistemas de metro, a tarefa se torna
mais difícil. “Não vamos ter um polícia em cada porta do comboio”, assumiu,
apelando ao civismo dos utentes. “Cada pessoa deve gerir da melhor maneira as
suas deslocações, em respeito pela sua saúde e pela dos outros”, insiste,
lembrando que o dever de recolhimento se mantém o que pressupõe que se façam
apenas as deslocações associadas às actividades que estão a ser retomadas.
A situação é, a
todos os títulos, desafiante, e para o arquitecto Tiago Mota Saraiva “há que
aproveitar este tempo” para ser ambicioso na organização do espaço público. A
sua proposta de criar passeios em vias de trânsito ou estacionamento é
acompanhada por outra, de tornar todo o parqueamento gratuito “de modo a
garantir a pedonalização das áreas de rua actualmente reservadas ao
estacionamento”.
O ateliermob
advoga ainda pela criação de um plano de ruas lentas em que o trânsito
automóvel seja total ou parcialmente cortado, o que “faria mais sentido em
zonas de maior densidade habitacional e de trabalho, não tanto no centro das
cidades para não criar insegurança ou encher todo o espaço público com
esplanadas”, diz ainda Tiago Saraiva.
Imunidade em conjunto
A imunidade de grupo é, portanto, uma imunidade
indirecta, conseguida ao estar-se rodeado de pessoas imunes à doença que, mesmo
em contacto com o vírus, vão travá-lo. Esta é especialmente essencial para
proteger grupos vulneráveis de pessoas que, por várias razões, não podem ser vacinadas.
Rita de Almeida
Neves
A Rita é
bioquímica por paixão e comunicadora por natureza, vê a vida em palavras e
moléculas.
Rita Cruz
Bioquímica a
investigar infecção e imunidade
4 de Maio de
2020, 8:38 actualizada às 12:17
Nos últimos meses
a pandemia transformou a nossa vida, as nossas rotinas, e, inevitavelmente, os
temas de conversa entre qualquer grupo de amigos. Como bioquímicas (e amigas há
muito tempo), dificilmente imaginaríamos que as nossas conversas, que entre as
coisas mais banais tantas vezes iam parar à ciência, passariam de simples
trocas de ideias a algo tão real.
Num mesmo
objectivo de fazer frente ao novo coronavírus, uma em Portugal a fazer
Comunicação de Ciência, e outra nos Países Baixos a fazer o doutoramento em
Infecção e Imunidade, assistimos e acabamos por questionar as diferentes
estratégias de combate e de gestão do contágio. A imunologia tomou conta das
conversas, demos por nós a rever conceitos, a tentar perceber como os tornar
claros e a ter mais dúvidas que certezas. Do isolamento social à busca pela
vacina, pela normalidade e pela tão desejada imunidade de grupo.
Mas, afinal, o
que tem de grupo esta imunidade? Vivemos em comunidade, em grupo, e se fizermos
o exercício de contar com quantas pessoas contactamos por dia, chegaremos
certamente a um número elevado. Muitos vírus e bactérias são transmitidos de
pessoa para pessoa, criando então a cadeia de transmissão que só pode ser
travada se evitarmos este contacto (o mote do isolamento), ou se algumas dessas
pessoas estiverem imunes à doença. A questão é que a probabilidade de
transmissão varia de vírus para vírus — e este ainda é um desconhecido para
nós. É aqui que pode surgir a razão para que, em primeira instância, governos
tenham olhado para esta pandemia com diferentes abordagens.
Olhamos agora
para a vacina como a solução necessária e tal decisão está relacionada com o
número que invadiu os nossos dias, o R0, número básico de reprodução. Este R0 é
igual ao número de pessoas que, em média, cada um de nós pode infectar. Mas
este não é um número estático para cada vírus ou bactéria; o nosso comportamento
ou factores ambientais podem influenciá-lo. No entanto, este é um número chave
para percebermos que percentagem da população precisa de ser imunizada para
conseguirmos controlar uma epidemia.
Por exemplo, se o
R0 for igual a 2, numa população susceptível à doença, cada pessoa pode
infectar duas outras pessoas (em média). Mas, se mais de 50% da população for
imune a esta doença, cada pessoa apenas a pode transmitir, em média, a uma
única pessoa. Assim, este número passa a ser inferior a 1 e a transmissão da
doença é travada. E é aqui queremos todos chegar, e também é aqui que entra o
conceito de imunidade de grupo.
Atingimos a
imunidade de grupo quando uma grande fatia da população é imune à doença, será
até uma percentagem menor do que 100% mas é o suficiente para parar a
transmissão da doença. A imunidade de grupo é, portanto, uma imunidade
indirecta, que se ganha ao estar-se rodeado de pessoas imunes à doença, que
mesmo em contacto com o vírus vão travá-lo. Esta é especialmente essencial para
proteger grupos vulneráveis de pessoas que, por várias razões, não podem ser
vacinadas. Racional e até emocionalmente, sabemos que o melhor é evitar o risco
de contrair a doença ou de a transmitir aos outros.
Voltamos ao
início da questão e das diferentes visões. A imunidade de grupo pode
conseguir-se de duas formas, através do contacto directo com o microrganismo
causador de doença ou por meio de vacinação. Ao contactar directamente com o
microrganismo ou o “inimigo”, o nosso sistema imunitário, “os soldados do nosso
corpo”, aprende a combatê-lo em pleno campo de batalha. Assim, como é um
inimigo real, nunca antes visto, esta é uma batalha dura e muito difícil de
travar, o que resulta no desenvolvimento de sintomas severos. Esta forma de
criar imunidade é, portanto, associada a alta mortalidade. Já ao tomarmos uma
vacina, primeiro, ensinamos aos nossos soldados a produzir anticorpos ou
“ferramentas” que vão ser essenciais na luta contra o verdadeiro inimigo.
Depois, caso tenhamos contacto com a ameaça real, temos tudo preparado para
ganhar a batalha e sair ilesos, ou seja, conseguimos prevenir o desenvolvimento
de doença. Embora existam vários tipos de vacinas (microrganismo atenuado,
inactivo, ou apenas numa pequena porção ou toxina enfraquecida produzida por ele),
estas consistem sempre numa forma não patogénica do microrganismo e, desta
forma, a imunidade é adquirida de uma maneira bastante mais segura e
controlada.
No final das
contas, das várias abordagens ou visões, é importante não esquecer que grupo
significa também conjunto, um conjunto de pessoas que formam um todo. E neste
todo, todos somos responsáveis por nos proteger, para proteger os nossos e os
outros. Não sabemos o que as próximas conversas nos reservam ou que desafios
nos esperam, mas sabemos pelo menos que a ciência estará sempre na base das
nossas questões e das nossas respostas.
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