Cavaco
não deve dar posse a Costa
JOÃO MIGUEL TAVARES
12/11/2015 - PÚBLICO
Aceitar
aqueles três desacordos daria uma grande felicidade à esquerda. Mas
transformaria o presidente da República num triste notário.
Façam-me a justiça
de admitir que eu nunca neguei legitimidade a uma coligação de
esquerda, nem alinhei na conversa do golpe de estado. Há
precisamente um mês, escrevi um texto intitulado “Um xanax para a
direita” onde criticava esse paleio e alertava para o facto de um
regime que elege deputados, e não primeiros-ministros, ter de
admitir que o partido mais votado pode não chegar a governar.
Contudo, também deixei claro, muito antes de conhecer os acordos da
tríplice aliança, que Cavaco Silva não podia, neste contexto,
entregar as chaves de São Bento a uma mera coligação negativa.
Desculpem estar a
citar-me a mim próprio, mas desta vez tem de ser: “O acordo da
esquerda não pode ser um Frankenstein keynesiano-leninista colado a
cuspo. O acordo da esquerda não pode ser uma fraude intelectual. O
acordo da esquerda não pode ser um discurso de Miss Universo,
composto em exclusivo de suspiros por um mundo melhor.” Ora, o
acordo de esquerda, que não é sequer um acordo mas três
desacordos, é tudo isto, mas em pior. E só mesmo a carneirização
da pátria e o nosso notável talento para ir atrás do primeiro
flautista de Hamelin que se atravessa no caminho é que pode conduzir
à suspensão, tanto à direita como à esquerda, dos mais básicos
critérios de exigência intelectual e de honestidade política, e a
uma espécie de aceitação conformada da inevitabilidade de António
Costa ter de vir a ser indigitado primeiro-ministro. Desculpem: não,
não tem.
A chave para
entender a trafulhice dos desacordos está escrita num português
miserável, não por deficiente alfabetização do escriba mas porque
é mesmo para não entender: “O PS e o [é escolher o partido,
porque a frase consta dos três textos] reconhecem as maiores
exigências de identificação política que um acordo sobre um
governo e um programa de governo colocava.” Dito assim, não se
percebe. Mas coloquemos a frase em português decente: “O PS, o
PCP, o Bloco e o PEV reconhecem que um acordo sobre um governo e um
programa de governo exigia maior identificação política” –
identificação essa que, claro está, não foi possível alcançar.
É isso que lá está escrito. Não fui eu que o disse, nem
subscrevi. António Costa assinou três acordos a admitir que não há
acordo.
De resto, não há
qualquer promessa de aprovação dos orçamentos de Estado, mas
apenas um “exame comum”; não há uma palavra sobre a Europa nem
sobre o respeito do Tratado Orçamental; nada se diz sobre o que
fazer perante imprevistos financeiros; e nem sequer nas medidas mais
pacíficas, como o descongelamento das pensões ou a reposição dos
feriados, se assume que se vai convergir, mas apenas que “é
possível convergir”. Não é por acaso que o acordo nem acordo se
chama – é uma “posição conjunta”. Na verdade, é uma “fezada
conjunta”. E uma mera fezada é inaceitável como justificação
para dar posse a um partido que perdeu as eleições. Seria
substituir um governo minoritário por outro ainda mais minoritário.
A opção de Cavaco
não tem de ser um governo de gestão, nem de iniciativa
presidencial. O que ele tem de fazer é ater-se aos critérios de
solidez e estabilidade que enunciou e pedir a António Costa para
parar de brincar connosco e assinar alguma coisa séria, se quer ser
primeiro-ministro. Aceitar aqueles três desacordos daria uma grande
felicidade à esquerda. Mas transformaria o presidente da República
num triste notário, obrigado a carimbar qualquer papel que lhe
pusessem à frente. A bem da salubridade do regime, não pode ser.
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