O
medo e o resto
JORGE ALMEIDA
FERNANDES 14/11/2015 - PÚBLICO
Pierre
Hassner diz que “estamos entre dois medos: temos razão de ter medo
do terrorismo, mas também de ter medo das medidas que se tomam
contra o terrorismo”
Comecemos por falar
daquilo com que poderíamos concluir: o medo. A Europa percebeu que
se torna mais vulnerável à medida que se intensifica a guerra de
múltiplas frentes na Síria. A carnificina de Paris não é apenas
uma declaração de guerra do Estado Islâmico (EI) à França —
visa também a Europa, em plena crise dos refugiados. A sua mais
sinistra ameaça resume-se num dito de Bin Laden: “Nós temos
jovens que amam a morte mais do que vós amais a vida.”
O terror do EI tem
um desígnio estratégico com muitos vectores: demonstrar a força
dos jihadistas e galvanizar os adeptos, provocar a partir do medo
recíprocas reacções de ódio para romper as críticas pontes entre
a Europa e as suas comunidades islâmicas e, enfim, fazer inflectir a
política dos Estados europeus que intervêm na Síria, no Iraque ou
na África, e também dissuadir os outros de o perseguirem.
O medo é uma das
mais poderosas paixões. Dele escreveu Georges Bernanos a partir da
sua experiência na Guerra Civil de Espanha: “O medo, o medo
verdadeiro, é um delírio furioso. De todas as loucuras de que somos
capazes, o medo é a mais cruel. Nada iguala o seu vigor, nada pode
suster o seu choque. A cólera, que se lhe assemelha, não passa de
um sentimento passageiro, uma brusca dissipação das forças da
alma. Para mais é cega. O medo, ao contrário, desde que se
ultrapasse a primeira angústia, forma com o ódio um dos mais
estáveis compostos psicológicos que há.”
O veterano
politólogo francês Pierre Hassner, para quem a “desordem”
substituiu a “ordem internacional”, fala de medos contraditórios.
“Estamos entre dois medos: temos razão de ter medo do terrorismo,
mas também de ter medo das medidas que se tomam contra o terrorismo.
Os meios de protecção que temos tornaram-se eles próprios
ameaçadores, (...) seja pelas ameaças ligadas às exigências da
defesa ou pelas ameaças às liberdades individuais que constituem as
medidas de segurança adoptadas pelos governos.” Previne contra o
modelo da reacção de George W. Bush e dos neoconservadores após o
11 de Setembro.
Escrevia ontem o
analista francês François Heisbourg: “É a partir de agora que se
joga a derrota necessária — ou a possível vitória dos
jihadistas. E em primeiro lugar no plano interno. Será forte a
tentação de preparar uma legislação de excepção, rápida e mal
feita: um Patriot Act à francesa.”
A derrota do
terrorismo será determinada pela reacção da sociedade. E também
da escala e do timing da próxima atrocidade, previne a The
Economist. Se os cidadãos se convencerem de que os serviços de
segurança se tornaram incapazes de lhes assegurar um mínimo de
protecção, muito pode mudar, suscitando o agravamento da tensão
com as comunidades muçulmanas. “O Estado Islâmico procura
desencadear a guerra civil em França”, escrevia ontem no Monde
Gilles Kepel, um especialista do islão.
Testes: FN e
refugiados
O problema não é
retórico. A França, com a maior comunidade muçulmana na Europa,
cinco milhões de pessoas, é o país mais exposto ao terrorismo da
“segunda geração”. A actual mobilização jihadista “é um
fenómeno sem precedentes e de alcance global pois tem uma das suas
bases fundamentais na Europa”, escreve o especialista espanhol
Fernando Reinares. “Os países mais afectados são aqueles em que
predominam os muçulmanos de segunda geração”, como a França, a
Grã-Bretanha ou a Alemanha.
Tal mobilização
decorre de uma “crise generalizada de identidade dos jovens
muçulmanos”. Muitos acabam por sentir que o islão é a sua única
nação. O multiculturalismo inglês e a política de assimilação
francesa griparam. “Expostos à propaganda jihadista na Internet e
nas redes sociais”, radicalizam-se. “Contribuem para a
insurreição jihadista na Síria e no Iraque. E [na Europa] elevam a
ameaça do terrorismo endógeno.”
A 6 e 13 de Dezembro
há eleições regionais em França. Serão um termómetro. Já não
apenas do populismo da Frente Nacional de Marine Le Pen mas também
do efeito das vagas de refugiados — que, diga-se de passagem, a
França praticamente não acolheu. E, agora, dos ataques em Paris.
Yves Camus e Nicolas Lebourg, estudiosos da extrema-direita, lembram
num livro recente (Les droites extrêmes en Europe) que a última
grande vaga da extrema-direita se alimentou do 11 de Setembro e do
temor provocado pelo islão.
O tom está dado:
“Enquanto Hollande e Valls combatiam a FN, os assassinos
sanguinários preparavam os seus atentados! Vergonha, vergonha para
os dois” — escreve num tweet Nicolas Bay, secretário-geral da
FN.
O segundo teste foi
antecipado. Imediatamente antes dos atentados, Angela Merkel, isolada
na UE e no seu governo, foi forçada a uma drástica revisão da sua
política de acolhimento de refugiados, aplicando de novo as regras
ditas de Dublin e obrigando os refugiados a apresentar o pedido de
asilo no país de entrada na UE. Berlim decidiu endurecer o controlo
nas fronteiras. Antes da Alemanha foi a generosa Suécia a fechar as
portas.
Os refugiados vão
ser as “vítimas colaterais” de Paris. Mais muros se vão erguer.
Às portas do Inverno, eles vão permanecer concentrados em condições
provisórias e degradantes. A Europa de Schengen está a ser
corroída. A “hora humanitária” está a esgotar-se.
Síria
A montante de tudo
isto — terror e refugiados — está a Síria, país que já não
existe. A “antiga” Síria está internamente fracturada e
dividida em áreas de influência por potências externas. É um
emaranhado de conflitos: guerra civil entre Assad e jihadistas,
guerra regional entre árabes xiitas e sunitas, turcos e curdos,
agora também palco da rivalidade russo-americana. Como combater
eficazmente o EI? Esquecer Assad ou combater ao mesmo tempo o EI e
Assad? As chancelarias hesitam.
Os ocidentais, e
sobretudo os media, acumularam erros de avaliação desde 2011,
enquanto os Estados árabes não resistiam a incendiar a região. “Se
a Síria explodir, fará explodir a região”, profetizou em Abril
de 2011 o analista turco Mehmet Ali Birand. É uma tragédia que já
fez mais de 250 mil mortos e milhões de deslocados e refugiados.
A nova dimensão do
conflito sírio é a “exportação” da guerra para a Europa.
Primeiro, através de centenas de milhares de refugiados. Depois,
pela aparente viragem estratégica do EI, que estará a tentar
alargar a guerra à Europa. Foi, há duas semanas, o avião russo
aparentemente abatido no Sinai por uma filial do EI: 224 mortos.
Agora, a carnificina de Paris.
A França está em
guerra com o EI. É previsível uma intensificação das acções
militares. Mas, sobretudo, deverá resistir ao “delírio furioso”
do medo, que significaria o triunfo do terror.
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