António
Barreto. “Houve alguma ingratidão na maneira como o PSD foi
afastado”
ISABEL TAVARES E
JOSÉ CABRITA SARAIVA (TEXTO) ANTÓNIO PEDRO SANTOS (FOTOGRAFIA)
14/11/2015 / Jornal
i online
Hoje faria uma
reforma agrária diferente. E talvez não tivesse a intenção de dar
terra aos pequenos agricultores.
Fizemo-lo perder a
“Tosca” de Masada – “uma produção no deserto de Israel –
no canal Mezzo, um dos prazeres que descobriu desde que passou a
trabalhar na sua casa/escritório, na Estrela, onde recebeu o i.
Reformado e sem os compromissos na Fundação Francisco Manuel dos
Santos, que, entre 2009 e Fevereiro de 2014, lhe tomavam quase 15
horas do dia, foi cedendo à conversa e as histórias sucederam-se.
Numa sala alcatifada, inundada de luz natural e com um tecto de
estuque trabalhado, falámos um pouco de tudo: do momento político
actual, mas também da sua juventude, da religião, da reforma
agrária. Aos 73 anos, António Barreto tem uma máxima: “Quando
saio arranco o retrovisor.” Mas tudo serve de aprendizagem, “e os
últimos cinco anos vêm enriquecer muito” os livros sobre a
sociedade portuguesa que deixou em espera e está agora a retomar. O
sociólogo confessa que se tivesse escrito a história de Portugal
então, sem passar este último período, ela seria bem diferente:
“Acreditava que as transformações eram mais sólidas e afinal é
tudo muito frágil”, justifica.
A propósito do
actual momento político, parafraseando Orwell, podemos dizer que
todos os partidos são iguais mas uns são mais iguais do que outros?
Todos são iguais em
direitos e deveres. Não são iguais naquilo em que acreditam, na
maneira como servem o país. Esta moção de rejeição e a criação
do governo de esquerda geraram um ou dois debates absolutamente
ridículos. É de lastimar, parece que em Portugal estamos sempre na
idade da pedra lascada.
Que debates?
Uma das discussões
é saber se os governos – o que caiu e o que entrará em funções
– são legítimos. As pessoas não sabem o que quer dizer
“legítimo”. O Presidente da República ter encomendado ao Dr.
Passos Coelho, líder do partido mais votado, um governo, é
legítimo. O direito e dever de criar esse governo é legítimo. Ir
ao parlamento com ele legítimo é. Os partidos da oposição
juntarem-se para derrubar esse governo, é legítimo. O Partido
Socialista querer fazer governo, é vontade legítima. O presidente
estar um bocadinho apertado e talvez até não gostar mas ser
obrigado a pedir ao PS que forme governo é também legítimo.
Legítimo vem de legis, “o que é reconhecido pela lei”. Mas
também o que é genuíno, verdadeiro. Ou o que está conforme a
valores reconhecidos, morais, éticos. Tudo o que se passou até
agora é legítimo, podemos é não gostar.
Pessoalmente gosta?
Eu não gosto desta
aliança, deste acordo com o PC e com o Bloco, porque é um acordo
monstruoso e absurdo. Mas têm o direito de o fazer. Penso que o
governo não vai prestar, mas isso é outra coisa, não tem nada a
ver com legitimidade.
Qual é a segunda
discussão ridícula?
O argumento
fantástico de que não há partidos de primeira e partidos de
segunda, não há deputados de primeira e deputados de segunda. Mas
quem disse que há?! Isto são os PC, os bloquistas e os PS a dizer
“nós também temos o direito de ir a governo”.
Mas no fundo a
esquerda é que diz que a coligação não tem direito de formar
governo...
O que a esquerda diz
é isso. É que por vontade deles, já que são mais, são eles que
fazem a lei, portanto não é preciso seguir as regras. Estamos na
idade púbere da democracia.
Há uma inversão de
posições?
Hoje em Portugal
dizer de alguém que é de direita é um insulto. Dizer que alguém é
de esquerda é um título de nobreza. Quantas vezes os senhores e as
senhoras do Bloco de Esquerda, para argumentar, dizem “isto é uma
política da direita”? E isso basta. Mas não devia bastar, têm de
se explicar. É lamentável que ao fim de 40 anos tenhamos coisas tão
sérias para discutir, problemas tão novos e tão pesados, e
estejamos ainda embrulhados na trica adjectiva, absolutamente
nonsense.
A moralidade do
governo PS é discutível?
O que é moralidade
em política? Eu teria preferido que o Partido Socialista tivesse
dito antes das eleições que se não ganhasse faria governo e com
quem. Mas não é uma contravenção absoluta. O que há é que PC e
Bloco acusaram o PS de ser de direita, um falsário, um traidor, um
aldrabão, até 24 horas antes e 24 horas depois estão disponíveis
para reconhecer a bondade e a glória do PS. Não é muito sólido, é
frágil, mas não se pode dizer que seja imoral. Fui de um governo do
PS e defendi uma coligação com o PSD, um governo central – é um
velho vício que tenho [risos]. O Dr. Mário Soares, que não queria
estar no mesmo governo que o Dr. Sá Carneiro, tirou da cartola um
governo com o CDS. Eu, que por razões várias fiquei de fora, não
achei que fosse imoral. A política cria muitas vezes situações de
necessidade, que pedem seriedade, inteligência e obrigam a explicar.
O PS fez isso,
explicou-se?
Isso é o que penso
que o PS ainda não fez. O Dr. António Costa e o Partido Socialista
ainda não explicaram o que querem fazer. Se o Presidente da
República encomendar o governo, se o Dr. António Costa fizer o
governo, tem de explicar porque fez isto e o que quer fazer.
Ainda vai a tempo?
O PS é o que é
porque foi anticomunista durante 30 anos, nem teria sequer ganho
eleições se o não fosse. Seria hoje, talvez, um partido
social-democrata franzino caso não tivesse tido como grande processo
político fazer frente à revolução, aos militares, à
extrema-esquerda e ao PC em especial. O anticomunismo no PS é
genético.
António Costa diz
que se quebrou um tabu...
O Dr. António Costa
não deve perceber muito bem o que diz em relação ao Muro do
Berlim, porque a queda do Muro foi a morte do comunismo. O que está
a dizer a Jerónimo de Sousa é “isto vai ser a tua morte”. E
está convencido que fez uma coisa de carácter histórico, à escala
portuguesa. Não fez, de modo nenhum. O que se está a passar lembra
políticas de há 30, 40 ou 50 anos. O nosso atraso político é
esse.
E que outras
explicações terá de dar o PS?
António Costa vai
ter de explicar porque aceitou estas 30 ou 40 sugestões do Bloco de
Esquerda e do PC. Li os documentos e são muito estranhos, é uma
coisa bizarra. O que está a dizer à população é que a TSU, a
sobretaxa, as devoluções, são tudo exigências do Bloco e do PC,
coisas que afinal não estavam nas intenções do Partido Socialista.
Então qual era o programa do PS? Quer dizer que tinha um programa
mais ao centro ou à direita e ainda de austeridade. Também vai ter
de explicar, mas isso será só daqui a um ano, quando os
revolucionários começarem a dizer que o PS está a faltar ao acordo
– porque estes acordos são uma espécie de tratados de minas e
armadilhas – onde está a ideia mais generosa sobre o salário
mínimo, as pensões.
A sociologia tem
algum nome para o momento que estamos a atravessar?
[Reflecte.] Lamento
ainda não ter visto uma linha sobre a visão do mundo disto tudo. O
que quer o PS? Que quer o poder, sabemos. Que quer derrubar a
direita, sabemos. Quer gerir. Mas qual é a ideia do PS para
Portugal? Nos meus velhos tempos, há 20 ou 30 anos, a modernidade
consistia nisso: definir um projecto para o país, ter uma visão do
mundo, da Europa. Hoje do Partido Socialista vêm zero ideias.
Uns meses antes das
eleições disse que o seu desapontamento com a política era tal que
não sabia se ia votar. Votou?
Não. Fui lá mas
não votei.
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