O
sufoco da nação à qual Portugal ficou a dever a sua independência
Em
1640, em lados opostos da península Ibérica, dois territórios
revoltaram-se contra a Espanha de Filipe IV. O monarca teve de
escolher um.
DIOGO VAZ PINTO
14/11/2015 14:57
“Mais que
inconstitucional”, diz o “El País” após consultar destacados
juristas espanhóis sobre a declaração independentista aprovada
pelo parlamento da Catalunha no início desta semana. Que se trata de
uma provocação directa à Constituição espanhola, a própria
declaração o refere, assumindo-se como um desafio necessário à
norma suprema da nação, erigida como um obstáculo às pretensões
secessionistas de algumas das suas regiões. Como o País Basco e a
Galiza, a Catalunha mantém-se unida a Espanha após ser submetida
pela força e, há séculos, a uma ideia de nação que uma parte
significativa, se não maioritária, do povo catalão considera
atentatória da sua própria identidade e cultura – vendo no
vínculo a Espanha algo mais na ordem de uma velha tradição de
terror do que de uma união feliz e frutuosa.
Num primeiro passo
para a “desconexão” do resto de Espanha, o parlamento da
Catalunha declarou a sua insubordinação à autoridade do Tribunal
Constitucional. Não podia ser de outra forma, já que à luz da lei
constitucional não há qualquer margem para uma fissura, para um
projecto de secessão. Desde os artigos iniciais, a Constituição
procura blindar a unidade de Espanha. Alberto López Basaguren,
catedrático constitucionalista da Universidade do País Basco, diz
que a declaração catalã “ataca a coluna vertebral de qualquer
sistema constitucional e político”. E Roberto Blanco, catedrático
da mesma disciplina na Universidade de Santiago, sublinha que “uma
parte do povo não pode arrogar-se toda a soberania”, tendo como
base o artigo 1.o, que diz que “a soberania nacional reside no povo
espanhol”.
Já o artigo 2.o
refere que “a Constituição se fundamenta na unidade indissolúvel
da Nação espanhola, pátria comum e indivisível de todos os
espanhóis”. Ora, o segundo ponto da resolução do parlamento
catalão “declara solenemente o início do processo de criação do
Estado catalão independente em forma de república”.
guerra de palavras
Filipe VI falou na quinta-feira. “Quero transmitir uma mensagem de
serenidade e confiança. A Constituição prevalecerá. Que ninguém
duvide disso”, declarou no tom mais solene, sob fortes aplausos dos
empresários e membros do executivo reunidos numa cerimónia de
promoção dos embaixadores honorários da Marca Espanha, uma
iniciativa para promover a imagem do país no estrangeiro. “Viva o
rei”, ouviu-se também. E Filipe, que luta para restituir a
instituição monárquica à glória dos dias em que Juan Carlos foi
responsável pela transição do franquismo para a democracia, disse
que o povo espanhol “não está disposto a que se ponha em causa a
sua unidade, a base da sua convivência em paz e liberdade”.
Mas o que para a
maioria dos espanhóis são palavras tranquilizadoras, tendo o chefe
de Estado enfatizado o período de prosperidade que marcou quase todo
o reinado do seu pai antes da desgraça dos últimos anos, para os
catalães escondem um sabor a ameaça. A tal da paz é mantida sob a
condição de que os catalães esqueçam ou, pelo menos, adiem uma
vez mais as suas aspirações independentistas.
Filipe sublinhou
como o seu papel é continuar “ao lado de todos os espanhóis”.
Contudo, a própria monarquia é um símbolo e um resquício do
império que repetidamente frustrou a luta pela instauração daquele
Estado republicano. Como lembrava há dias o jurista português Luís
Menezes Leitão no blogue Delito de Opinião, “Portugal tem uma
dívida histórica para com a Catalunha”, uma vez que foi a revolta
contra Filipe IV, entre 1640 e 1652, que obrigou o monarca a fazer
uma escolha. Seríamos hoje espanhóis, para gáudio de não tão
poucos deste lado da fronteira da península Ibérica, porque não
teria sido difícil esmagar a revolta portuguesa que celebrávamos no
feriado do 1.o de Dezembro, abolido pelo governo que está agora a
cessar funções.
Menezes Leitão
refere que a Catalunha se mantém, até aos dias de hoje, uma “nação
própria, com um povo e uma língua diferente”, e que “não há,
por isso, motivo nenhum para que não aspire a ser um Estado”.
Entre nós, quem também foi sensível às aspirações catalãs foi
Fernando Pessoa. Em 1918, o poeta escreveu que “no pleito, que o
Destino faz que se digladie entre a Espanha e a Catalunha, há o
facto essencial de todos os dramas. Como em todos os dramas, um
momento criado pelo Destino, mas segundo inevitáveis resultados de
um passado que surdamente se acumulou, faz entrar em conflito forças
e ideias que é absurdo que entrem em conflito, que é doloroso que
se encontrem em guerra. Como em todos os dramas, não há solução
satisfatória para o problema, porque a única arbitragem certa, e
por isso injusta, é a do Destino. E como em todos os dramas, ambas
as partes têm igual razão”.
Entraves legais A
Constituição espanhola é, à luz destas palavras, não mais do que
a vontade que o Destino fixou, e só intensifica o conflito entre
duas nações, uma guerra que resulta há séculos numa humilhação
para a mais frágil. Assim, quando o presidente do governo espanhol,
Mariano Rajoy, insiste em classificar a luta dos independentistas
catalães como um desafio ao Estado de direito e, portanto, à
democracia, não atende às particularidades deste desafio, como há
quase um século o compreendeu Pessoa, assinalando então: “Dos
problemas que hoje agitam e perturbam a indisciplinada vida da
Europa, o do separatismo catalão é talvez o que mais flagrantemente
foca o conflito fundamental que se trava hoje no mundo, e, portanto,
aquele que mais curiosos ensinamentos contém.”
Para o grande rosto
do modernismo português, esta contenda, porque não tem solução,
continuará a reencenar-#-se ao longo dos tempos, representando “o
conflito entre o conceito nacional de país e o conceito
civilizacional de país. Um conceito é geográfico, supõe-se ser
étnico, e afirma-se como linguístico. #O outro conceito é
histórico, supõe-se ser imperialista e afirma-se como cultural”.
Além da revolta de
1640, também conhecida como a Guerra dos Segadores (cuja referência
se mantém no actual hino da Catalunha), houve outros três momentos
– em 1873, 1931 e 1934 – em que esta nação se proclamou
independente de Espanha. É curioso que a primeira proclamação,
feita pelo então presidente da generalitat, Pau Claris, no dia 17 de
Janeiro de 1941, tenha resultado em apenas seis dias de
independência, já que Claris resolveu no dia 23 rectificar a sua
declaração, proclamando o rei Luís XIII de França como conde de
Barcelona e colocando o principado da Catalunha sob a soberania
gaulesa. O rei-sol, Luís XIV, sucedeu-lhe em 1643, e até 1652 a
Catalunha esteve do lado de França e de outras potências europeias
contra Espanha durante a Guerra dos Trinta Anos.
Com 7,5 milhões de
pessoas, a Catalunha é a quinta região mais rica das 17 comunidades
autónomas espanholas. #A Constituição de 1978 reconhece-lhes o
direito de autonomia, mas existe uma ressalva: o artigo 155.o, que
permite ao governo central suspendê-la se esta ameaçar romper com o
quadro constitucional. Poderá ser essa a próxima arma de Rajoy.
“Somos
nações da Europa. Adeus, Espanha!”
Quando
o futebol serve de parábola para o destino do Estado espanhol. Nos
estádios, há muito que Espanha já era.
NUNO RAMOS DE
ALMEIDA
14/11/2015 15:07 /
Jornal i online
Trinta de Junho de
2015, final da Taça do Rei entre Barcelona e Atlético de Bilbau. O
estádio de Camp Nou, em Barcelona, estava cheio. Quase 100 mil
pessoas agitavam a ikuriña basca e a senyera catalã, as bandeiras
das duas nações sem Estado. Começa o hino espanhol, tocado a
máximo volume nas colunas do estádio. Um assobio (pitada)
gigantesco da multidão sobrepõe-se à música oficial.
A guerra da
Catalunha com Espanha e de Artur Mas com Antonio Baños
Os que são a favor
do reconhecimento internacional das selecções desportivas catalã e
basca (casos da Plataforma Pro-Seleccions Esportives Catalanes e do
movimento basco Esait) pediram aos seus adeptos que enchessem o
estádio e deixassem clara a sua opinião. O movimento Catalunya
Acció defendia em comunicado: “Assobia com a língua, assobia pela
liberdade, pelas eleições, assobia contra o roubo e assobia pelo
novo Estado catalão.” Apesar de o hino só ter sido tocado durante
48 segundos, na presença do rei Filipe IV, uma monumental
assobiadela deixou clara a opinião dos adeptos presentes sobre
Castela e a monarquia.
Esta é uma história
que se repete. Há três anos, Atlético de Bilbau e Barcelona
jogaram a final da Taça na capital do “inimigo” e causaram
embaraço. A presidente da Câmara de Madrid, Esperanza Aguirre, do
PP, avisou que, se desrespeitassem a bandeira, o jogo seria
cancelado. “Os ultrajes à bandeira ou ao hino são delito no
Código Penal”, avisou a autarca madrilena. “Não devem ser
consentidos”, defendeu em declarações à rádio Onda Cero. “Este
é o campeonato de Espanha. Esta taça já a entregava o presidente
da república quando havia república, Franco quando estava Franco, e
agora é a taça de sua majestade o rei, mas é a Taça de Espanha”,
justificou. “Se alguns dos adeptos, que estou segura de não serem
todos e que há muitos que não são nacionalistas nem separatistas
nem anti-espanhóis, quiserem assobiar, digo já que o jogo não se
realizará, de certeza”, ameaçou. Mas o jogo realizou-se e o hino
foi mais uma vez assobiado.
Incógnita Desde há
muito que as autoridades de Madrid não sabem o que fazer nas finais
com equipas bascas e catalãs. Já em 2009, na anterior final da Taça
do Rei, em Valência, que opôs o Barça ao Atlético de Bilbau, na
presença de Juan Carlos, o assobio foi tão poderoso que a TVE
passou o hino de Espanha em diferido, montado sobre imagens neutras
de espectadores, sem som, usando planos anteriores ao assobio e onde
não se vissem bandeiras independentistas. Durante aqueles largos 50
segundos que durou a “Marcha Real”, tocada sob a vaia dos adeptos
bascos e catalães, também se viam cartazes como “We are nations
of Europe, goodbye Spain” (”Somos nações da Europa, adeus
Espanha”).
A “pitada”
(assobios) desse dia 13 de Maio de 2009 foi considerada, pela
justiça, “liberdade de expressão”. O juiz da Audiência
Nacional, Santiago Pedraz, não deu razão à queixa apresentada pela
fundação Defesa da Nação Espanhola (Denaes) contra a Catalunya
Acció e o movimento pró-selecção basca Esait, como alegados
organizadores do protesto, acusados de “injúrias contra o rei,
apologia do ódio nacional e ultraje a Espanha”. Para evitar a
repetição deste tipo de liberdades, em 2013, o governo espanhol fez
legislação para criminalizar os independentistas.
A Lei de Segurança
e Cidadania, aprovada pelo conselho de ministros de Espanha em
Novembro de 2013, dá conta de que ofensas a Espanha, às comunidades
autónomas, às instituições, hinos, símbolos ou emblemas
efectuadas por qualquer meio serão severamente punidas.
Durante este ano de
2015, Javier Tebas, presidente da LFP (instituição que organiza o
Campeonato Espanhol) declarou que esperava não ouvir assobios
durante a execução do hino na final. “Se acontecessem assobios,
eu suspenderia a final do campeonato. O hino é um dos símbolos da
final da competição. Ainda que não seja organizada por nós, a LFP
está muito preocupada com a organização, não devemos deixar que
se boicote o hino”, declarou. E a punição chegou. Não
conseguindo evitar a liberdade dos espectadores, as autoridades
passaram pesadas multas aos alegados organizadores do protesto.
O coro de assobios
(foram então registados 110 decibéis) ouvido antes do início da
final da Taça de Espanha, no Estádio Camp Nou, em 30 de Junho
passado, vai render nada menos que 377 mil euros à Comissão
Antiviolência de Espanha. Face ao ocorrido no jogo (assobios e
cartazes independentistas), foram multados o Barcelona em 66 mil
euros, o Atlético de Bilbau em 18 mil e a Federação Espanhola de
Futebol em 123 mil, além de castigos de 100 mil euros à Catalunya
Acció e 70 mil a outras plataformas independentistas.
Escolha de Rajoy A
repressão tem sido sempre o remédio para lidar com as pretensões
independentistas dos catalães, bascos e galegos. A Constituição
espanhola, negociada na transição do franquismo, proíbe
terminantemente qualquer possibilidade legal de discutir democrática
e pacificamente, como aconteceu na Escócia, a independência de
qualquer parte do Estado espanhol. Não só Espanha é
constitucionalmente indivisível como a carta magna do país prevê
que o exército é o garante dessa unidade. As forças armadas podem,
legalmente, ser chamadas a reprimir qualquer aspiração de
independência.
A situação é
ainda mais perversa por calculismos eleitorais. Nas sondagens, o PP
tem cerca de 25% das intenções de voto, mas há muito que deixou de
ter legitimidade popular, atascado como está em escândalos de
corrupção e numa política de austeridade que faz de Espanha a
recordista do desemprego na Europa. A tentativa de bascos e catalães
serem independentes vai permitir a Mariano Rajoy fazer um discurso
nacionalista castelhano com frutos eleitorais garantidos. Durante
muitos anos, o combate à ETA foi o seguro eleitoral do PP de Aznar.
A violência contra catalães e bascos leva ao desastre a médio
prazo, mas pode permitir ao PP ganhar as próximas eleições de 20
de Dezembro. O problema político só vai ser agravado com a
repressão: mais de 50% dos deputados catalães pertencem a partidos
independentistas e mais de 60% dos bascos votaram no Partido
Nacionalista Basco e no Bildu (esquerda abertzale próxima da ETA).
A União Europeia
podia jogar um papel de arbitragem nesta questão, mas apenas está a
deitar gasolina para a fogueira. É muito compreensiva e apoia a
autodeterminação de povos a leste, como as repúblicas bálticas,
os povos da ex-Jugoslávia e a divisão da Checoslováquia, mas faz
finca-pé na manutenção da unidade do estado espanhol. Os
burocratas de Bruxelas não percebem que se 90% dos catalães querem
poder ser consultados sobre a independência, provavelmente, como na
Escócia, votariam “não” num referendo. Espanha tem duas
hipóteses: a paz no quadro de um outro relacionamento mais
confederal entre as suas nações ou o desastre da repressão. Rajoy
escolheu resolver as coisas à bomba.
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