domingo, 15 de novembro de 2015

O sufoco da nação à qual Portugal ficou a dever a sua independência / “Somos nações da Europa. Adeus, Espanha!”


O sufoco da nação à qual Portugal ficou a dever a sua independência
Em 1640, em lados opostos da península Ibérica, dois territórios revoltaram-se contra a Espanha de Filipe IV. O monarca teve de escolher um.

DIOGO VAZ PINTO
14/11/2015 14:57

“Mais que inconstitucional”, diz o “El País” após consultar destacados juristas espanhóis sobre a declaração independentista aprovada pelo parlamento da Catalunha no início desta semana. Que se trata de uma provocação directa à Constituição espanhola, a própria declaração o refere, assumindo-se como um desafio necessário à norma suprema da nação, erigida como um obstáculo às pretensões secessionistas de algumas das suas regiões. Como o País Basco e a Galiza, a Catalunha mantém-se unida a Espanha após ser submetida pela força e, há séculos, a uma ideia de nação que uma parte significativa, se não maioritária, do povo catalão considera atentatória da sua própria identidade e cultura – vendo no vínculo a Espanha algo mais na ordem de uma velha tradição de terror do que de uma união feliz e frutuosa.

Num primeiro passo para a “desconexão” do resto de Espanha, o parlamento da Catalunha declarou a sua insubordinação à autoridade do Tribunal Constitucional. Não podia ser de outra forma, já que à luz da lei constitucional não há qualquer margem para uma fissura, para um projecto de secessão. Desde os artigos iniciais, a Constituição procura blindar a unidade de Espanha. Alberto López Basaguren, catedrático constitucionalista da Universidade do País Basco, diz que a declaração catalã “ataca a coluna vertebral de qualquer sistema constitucional e político”. E Roberto Blanco, catedrático da mesma disciplina na Universidade de Santiago, sublinha que “uma parte do povo não pode arrogar-se toda a soberania”, tendo como base o artigo 1.o, que diz que “a soberania nacional reside no povo espanhol”.

Já o artigo 2.o refere que “a Constituição se fundamenta na unidade indissolúvel da Nação espanhola, pátria comum e indivisível de todos os espanhóis”. Ora, o segundo ponto da resolução do parlamento catalão “declara solenemente o início do processo de criação do Estado catalão independente em forma de república”.

guerra de palavras Filipe VI falou na quinta-feira. “Quero transmitir uma mensagem de serenidade e confiança. A Constituição prevalecerá. Que ninguém duvide disso”, declarou no tom mais solene, sob fortes aplausos dos empresários e membros do executivo reunidos numa cerimónia de promoção dos embaixadores honorários da Marca Espanha, uma iniciativa para promover a imagem do país no estrangeiro. “Viva o rei”, ouviu-se também. E Filipe, que luta para restituir a instituição monárquica à glória dos dias em que Juan Carlos foi responsável pela transição do franquismo para a democracia, disse que o povo espanhol “não está disposto a que se ponha em causa a sua unidade, a base da sua convivência em paz e liberdade”.

Mas o que para a maioria dos espanhóis são palavras tranquilizadoras, tendo o chefe de Estado enfatizado o período de prosperidade que marcou quase todo o reinado do seu pai antes da desgraça dos últimos anos, para os catalães escondem um sabor a ameaça. A tal da paz é mantida sob a condição de que os catalães esqueçam ou, pelo menos, adiem uma vez mais as suas aspirações independentistas.

Filipe sublinhou como o seu papel é continuar “ao lado de todos os espanhóis”. Contudo, a própria monarquia é um símbolo e um resquício do império que repetidamente frustrou a luta pela instauração daquele Estado republicano. Como lembrava há dias o jurista português Luís Menezes Leitão no blogue Delito de Opinião, “Portugal tem uma dívida histórica para com a Catalunha”, uma vez que foi a revolta contra Filipe IV, entre 1640 e 1652, que obrigou o monarca a fazer uma escolha. Seríamos hoje espanhóis, para gáudio de não tão poucos deste lado da fronteira da península Ibérica, porque não teria sido difícil esmagar a revolta portuguesa que celebrávamos no feriado do 1.o de Dezembro, abolido pelo governo que está agora a cessar funções.

Menezes Leitão refere que a Catalunha se mantém, até aos dias de hoje, uma “nação própria, com um povo e uma língua diferente”, e que “não há, por isso, motivo nenhum para que não aspire a ser um Estado”. Entre nós, quem também foi sensível às aspirações catalãs foi Fernando Pessoa. Em 1918, o poeta escreveu que “no pleito, que o Destino faz que se digladie entre a Espanha e a Catalunha, há o facto essencial de todos os dramas. Como em todos os dramas, um momento criado pelo Destino, mas segundo inevitáveis resultados de um passado que surdamente se acumulou, faz entrar em conflito forças e ideias que é absurdo que entrem em conflito, que é doloroso que se encontrem em guerra. Como em todos os dramas, não há solução satisfatória para o problema, porque a única arbitragem certa, e por isso injusta, é a do Destino. E como em todos os dramas, ambas as partes têm igual razão”.

Entraves legais A Constituição espanhola é, à luz destas palavras, não mais do que a vontade que o Destino fixou, e só intensifica o conflito entre duas nações, uma guerra que resulta há séculos numa humilhação para a mais frágil. Assim, quando o presidente do governo espanhol, Mariano Rajoy, insiste em classificar a luta dos independentistas catalães como um desafio ao Estado de direito e, portanto, à democracia, não atende às particularidades deste desafio, como há quase um século o compreendeu Pessoa, assinalando então: “Dos problemas que hoje agitam e perturbam a indisciplinada vida da Europa, o do separatismo catalão é talvez o que mais flagrantemente foca o conflito fundamental que se trava hoje no mundo, e, portanto, aquele que mais curiosos ensinamentos contém.”

Para o grande rosto do modernismo português, esta contenda, porque não tem solução, continuará a reencenar-#-se ao longo dos tempos, representando “o conflito entre o conceito nacional de país e o conceito civilizacional de país. Um conceito é geográfico, supõe-se ser étnico, e afirma-se como linguístico. #O outro conceito é histórico, supõe-se ser imperialista e afirma-se como cultural”.

Além da revolta de 1640, também conhecida como a Guerra dos Segadores (cuja referência se mantém no actual hino da Catalunha), houve outros três momentos – em 1873, 1931 e 1934 – em que esta nação se proclamou independente de Espanha. É curioso que a primeira proclamação, feita pelo então presidente da generalitat, Pau Claris, no dia 17 de Janeiro de 1941, tenha resultado em apenas seis dias de independência, já que Claris resolveu no dia 23 rectificar a sua declaração, proclamando o rei Luís XIII de França como conde de Barcelona e colocando o principado da Catalunha sob a soberania gaulesa. O rei-sol, Luís XIV, sucedeu-lhe em 1643, e até 1652 a Catalunha esteve do lado de França e de outras potências europeias contra Espanha durante a Guerra dos Trinta Anos.

Com 7,5 milhões de pessoas, a Catalunha é a quinta região mais rica das 17 comunidades autónomas espanholas. #A Constituição de 1978 reconhece-lhes o direito de autonomia, mas existe uma ressalva: o artigo 155.o, que permite ao governo central suspendê-la se esta ameaçar romper com o quadro constitucional. Poderá ser essa a próxima arma de Rajoy.

Somos nações da Europa. Adeus, Espanha!”
Quando o futebol serve de parábola para o destino do Estado espanhol. Nos estádios, há muito que Espanha já era.
NUNO RAMOS DE ALMEIDA

14/11/2015 15:07 / Jornal i online

Trinta de Junho de 2015, final da Taça do Rei entre Barcelona e Atlético de Bilbau. O estádio de Camp Nou, em Barcelona, estava cheio. Quase 100 mil pessoas agitavam a ikuriña basca e a senyera catalã, as bandeiras das duas nações sem Estado. Começa o hino espanhol, tocado a máximo volume nas colunas do estádio. Um assobio (pitada) gigantesco da multidão sobrepõe-se à música oficial.

A guerra da Catalunha com Espanha e de Artur Mas com Antonio Baños
Os que são a favor do reconhecimento internacional das selecções desportivas catalã e basca (casos da Plataforma Pro-Seleccions Esportives Catalanes e do movimento basco Esait) pediram aos seus adeptos que enchessem o estádio e deixassem clara a sua opinião. O movimento Catalunya Acció defendia em comunicado: “Assobia com a língua, assobia pela liberdade, pelas eleições, assobia contra o roubo e assobia pelo novo Estado catalão.” Apesar de o hino só ter sido tocado durante 48 segundos, na presença do rei Filipe IV, uma monumental assobiadela deixou clara a opinião dos adeptos presentes sobre Castela e a monarquia.

Esta é uma história que se repete. Há três anos, Atlético de Bilbau e Barcelona jogaram a final da Taça na capital do “inimigo” e causaram embaraço. A presidente da Câmara de Madrid, Esperanza Aguirre, do PP, avisou que, se desrespeitassem a bandeira, o jogo seria cancelado. “Os ultrajes à bandeira ou ao hino são delito no Código Penal”, avisou a autarca madrilena. “Não devem ser consentidos”, defendeu em declarações à rádio Onda Cero. “Este é o campeonato de Espanha. Esta taça já a entregava o presidente da república quando havia república, Franco quando estava Franco, e agora é a taça de sua majestade o rei, mas é a Taça de Espanha”, justificou. “Se alguns dos adeptos, que estou segura de não serem todos e que há muitos que não são nacionalistas nem separatistas nem anti-espanhóis, quiserem assobiar, digo já que o jogo não se realizará, de certeza”, ameaçou. Mas o jogo realizou-se e o hino foi mais uma vez assobiado.

Incógnita Desde há muito que as autoridades de Madrid não sabem o que fazer nas finais com equipas bascas e catalãs. Já em 2009, na anterior final da Taça do Rei, em Valência, que opôs o Barça ao Atlético de Bilbau, na presença de Juan Carlos, o assobio foi tão poderoso que a TVE passou o hino de Espanha em diferido, montado sobre imagens neutras de espectadores, sem som, usando planos anteriores ao assobio e onde não se vissem bandeiras independentistas. Durante aqueles largos 50 segundos que durou a “Marcha Real”, tocada sob a vaia dos adeptos bascos e catalães, também se viam cartazes como “We are nations of Europe, goodbye Spain” (”Somos nações da Europa, adeus Espanha”).

A “pitada” (assobios) desse dia 13 de Maio de 2009 foi considerada, pela justiça, “liberdade de expressão”. O juiz da Audiência Nacional, Santiago Pedraz, não deu razão à queixa apresentada pela fundação Defesa da Nação Espanhola (Denaes) contra a Catalunya Acció e o movimento pró-selecção basca Esait, como alegados organizadores do protesto, acusados de “injúrias contra o rei, apologia do ódio nacional e ultraje a Espanha”. Para evitar a repetição deste tipo de liberdades, em 2013, o governo espanhol fez legislação para criminalizar os independentistas.

A Lei de Segurança e Cidadania, aprovada pelo conselho de ministros de Espanha em Novembro de 2013, dá conta de que ofensas a Espanha, às comunidades autónomas, às instituições, hinos, símbolos ou emblemas efectuadas por qualquer meio serão severamente punidas.

Durante este ano de 2015, Javier Tebas, presidente da LFP (instituição que organiza o Campeonato Espanhol) declarou que esperava não ouvir assobios durante a execução do hino na final. “Se acontecessem assobios, eu suspenderia a final do campeonato. O hino é um dos símbolos da final da competição. Ainda que não seja organizada por nós, a LFP está muito preocupada com a organização, não devemos deixar que se boicote o hino”, declarou. E a punição chegou. Não conseguindo evitar a liberdade dos espectadores, as autoridades passaram pesadas multas aos alegados organizadores do protesto.

O coro de assobios (foram então registados 110 decibéis) ouvido antes do início da final da Taça de Espanha, no Estádio Camp Nou, em 30 de Junho passado, vai render nada menos que 377 mil euros à Comissão Antiviolência de Espanha. Face ao ocorrido no jogo (assobios e cartazes independentistas), foram multados o Barcelona em 66 mil euros, o Atlético de Bilbau em 18 mil e a Federação Espanhola de Futebol em 123 mil, além de castigos de 100 mil euros à Catalunya Acció e 70 mil a outras plataformas independentistas.

Escolha de Rajoy A repressão tem sido sempre o remédio para lidar com as pretensões independentistas dos catalães, bascos e galegos. A Constituição espanhola, negociada na transição do franquismo, proíbe terminantemente qualquer possibilidade legal de discutir democrática e pacificamente, como aconteceu na Escócia, a independência de qualquer parte do Estado espanhol. Não só Espanha é constitucionalmente indivisível como a carta magna do país prevê que o exército é o garante dessa unidade. As forças armadas podem, legalmente, ser chamadas a reprimir qualquer aspiração de independência.

A situação é ainda mais perversa por calculismos eleitorais. Nas sondagens, o PP tem cerca de 25% das intenções de voto, mas há muito que deixou de ter legitimidade popular, atascado como está em escândalos de corrupção e numa política de austeridade que faz de Espanha a recordista do desemprego na Europa. A tentativa de bascos e catalães serem independentes vai permitir a Mariano Rajoy fazer um discurso nacionalista castelhano com frutos eleitorais garantidos. Durante muitos anos, o combate à ETA foi o seguro eleitoral do PP de Aznar. A violência contra catalães e bascos leva ao desastre a médio prazo, mas pode permitir ao PP ganhar as próximas eleições de 20 de Dezembro. O problema político só vai ser agravado com a repressão: mais de 50% dos deputados catalães pertencem a partidos independentistas e mais de 60% dos bascos votaram no Partido Nacionalista Basco e no Bildu (esquerda abertzale próxima da ETA).


A União Europeia podia jogar um papel de arbitragem nesta questão, mas apenas está a deitar gasolina para a fogueira. É muito compreensiva e apoia a autodeterminação de povos a leste, como as repúblicas bálticas, os povos da ex-Jugoslávia e a divisão da Checoslováquia, mas faz finca-pé na manutenção da unidade do estado espanhol. Os burocratas de Bruxelas não percebem que se 90% dos catalães querem poder ser consultados sobre a independência, provavelmente, como na Escócia, votariam “não” num referendo. Espanha tem duas hipóteses: a paz no quadro de um outro relacionamento mais confederal entre as suas nações ou o desastre da repressão. Rajoy escolheu resolver as coisas à bomba.

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