Um pequeno passo de gigante
A distribuição simultânea da vacina em todos os
Estados-membros tem um enorme significado: igualizou a capacidade de fracos e
fortes para negociar no mercado a sua compra
Teresa de Sousa
27 de Dezembro de
2020, 6:31
https://www.publico.pt/2020/12/27/opiniao/opiniao/passo-gigante-1944261
1. Talvez não
haja nada de mais simbólico do valor da União para os seus 450 milhões de
cidadãos do que este momento. Nos 27 Estados-membros, independentemente da sua
riqueza, da sua dimensão, da sua economia, da sua história, da sua cultura, vão
ser hoje aplicadas as primeiras vacinas contra a Covid-19 (A Alemanha, Hungria
e Eslovénia acabaram por antecipar o calendário acordado). Os critérios
escolhidos a nível nacional são igualmente muito semelhantes: para além dos
profissionais de saúde, primeiro estão os mais frágeis. As imagens falarão por
si. Hão-de preencher ao longo do dia os programas das televisões. Vão permitir
palavras entusiásticas dos responsáveis políticos. Ursula von der Leyen será o
rosto tranquilo deste “milagre”, simbolizando a instituição europeia que tem
como dever fundamental garantir o interesse comum. A Europa exultará de
orgulho, mesmo que sejam apenas simbólicas as doses que hoje começam a ser
inoculadas. Mesmo que o processo seja lento e haja ainda dúvidas sobre o
abastecimento necessário para atingir rapidamente em cada país os números que
garantem a imunidade de grupo. Como sempre, a realidade tem duas faces.
2. No dia 18 de
Dezembro, a Der Spiegel pintava um retrato um pouco mais realista desta grande
aventura. “São imagens de esperança: enfermeiras a serem vacinadas; paletes de
pacotes de vacinas a serem distribuídas em voos especiais; mayors exultando com
‘o principio do fim’ da pandemia. Estas imagens chegam dos Estados Unidos. Nada
de parecido aconteceu na Europa até hoje”. Prossegue a revista: “O contraste
não permite enganos. De um lado, está uma administração Trump supostamente
incompetente, que fornecerá vacinas a 20 milhões de americanos nas próximas
duas ou três semanas. No fim de Março, o plano prevê que cerca de 100 milhões
de americanos tenham já levado as duas doses.” A revista não refere, mas a
operação “Warp Speed”, da responsabilidade das Forças Armadas, é das poucas
coisas em que Trump conseguiu acertar, antecipando a sua necessidade. A Spiegel
lembra ainda que foi um laboratório alemão que produziu a primeira vacina, o
que torna o contraste ainda menos compreensível. O Reino Unido e o Canadá foram
ainda mais rápidos na sua aprovação, sem que ninguém duvide da qualidade das
respectivas agências que têm essa responsabilidade. A Europa é lenta. O que se
compreende quando é preciso conciliar a vontade de 27 países. Mas é bom manter
os pés assentes na terra. É a única forma de preservar o que se conseguiu em
2020, o ano em que os europeus viveram a sua maior crise desde a II Guerra e em
que a União Europeia soube, apesar de tudo, responder em conformidade.
2. A distribuição
simultânea da vacina em todos os Estados-membros tem um enorme significado:
igualizou a capacidade de fracos e fortes para negociar no mercado a sua
compra, independentemente das doses de que cada um necessita. Dos 80 milhões de
alemãs aos 450 mil luxemburgueses. Isto aconteceu graças, em boa medida, aos
esforços da presidente da Comissão que conseguiu pôr de pé uma estratégia comum
de aquisição, não imediatamente aceite por todos. A tentação do “cada um por
si” ainda se manifestou, embora sem muitos adeptos. As coisas teriam sido muito
diferentes caso não tivesse havido um Conselho Europeu em Julho, o segundo mais
longo da história da Comunidade europeia, em que foi possível um acordo
merecidamente qualificado de histórico. Significou um dos momentos mais altos
da solidariedade europeia, devidamente entendida: ou seja, ajudar alguns
beneficia todos. O montante dessa ajuda colectiva, que soma 1,8 mil milhões de
euros, entre o Fundo de Recuperação e o Orçamento Plurianual, parece-nos de uma
dimensão extraordinária. Sabemos que foi um passo enorme no fortalecimento da
integração europeia -, incluindo a sempre difícil partilha de riscos, que
alguns dos países mais ricos do Norte não queria sequer considerar, antes que a
pandemia transmitisse um sentimento de destino comum que acabou por prevalecer.
Mas, mais uma
vez, estes números com tantos zeros à direita que só as calculadoras
científicas conseguem registar, perdem um pouco da sua cor quando comparados
com os que traduzem as ajudas aprovadas no Congresso norte-americano. É verdade
que a União une nações e os Estados Unidos são uma nação. Mas são uma nação que,
com este ou com qualquer outro Presidente, não olha a meios quando é preciso
vencer uma crise. Foi assim na crise financeira de 2008. Foi assim na Grande
Depressão de 1929. É assim agora. As duas farmacêuticas que venceram a corrida
da vacina são americanas: a gigante Pfizer e pequena Moderna. É verdade que,
como lembrava a Spiegel, foi uma empresa europeia que fez a descoberta da
vacina. Mas é preciso lembrar a história completa da colaboração entre a
BioNTech e a Pfizer, que é, ela própria, uma lição. Um casal de imigrantes
turcos de segunda geração e um grego de Tessalónica consideraram que tinham
alguma coisa em comum: partilhavam a mesma história de imigração e de amor pela
ciência; vinham das margens da Europa; viam-se como cidadãos do mundo. Nasceu
daí a sua colaboração. Os seus nomes são mais estranhos na Europa do que nos
EUA, onde os CEO das grandes multinacionais ou das empresas de excelência
representam uma cacofonia verdadeiramente única no mundo: Albert Bourla, Ugur
Sahin e Ozlem Tureci.
Por trás desta
capacidade científica esteve também uma decisão do nosso bem conhecido dr.
Fauci. Quando, na década de 1990, tentava encontrar uma vacina ou um
medicamento que travasse o HIV resolveu criar o “Cento de Investigação de
Vacinas”, reunindo cientistas de diferentes disciplinas, permitindo uma enorme
acumulação de saber. Na mesma década, uma cientista húngara a trabalhar na
Universidade da Pensilvânia, Katalin Kariko, previu o poder das terapias
assentes no “mensageiro RNA” para combater as mais variadas doenças, declarando
obsoletos outros métodos científicos. Na altura, ninguém lhe deu muita
importância, embora a investigação tivesse continuado numa universidade do
Wisconsin. São apenas alguns dos inúmeros pequenos e grandes passos do caminho
que levou até à vacina que hoje os portugueses vão começar a receber. Não há
nesta corrida europeus contra americanos. Há apenas europeus e americanos. As
virtudes das sociedades abertas – aos imigrantes, à cooperação internacional, à
partilha de saberes à circulação de pessoas e de ideias - saíram claramente
vencedoras.
3. Von der Leyen
chamou-lhe um alívio cheio de uma “doce tristeza”. Boris Johnson, para além do
seu exuberante e exagerado “grito do Ipiranga”, teve algumas palavras de bom
senso. O Reino Unido e a União Europeia continuarão a partilhar “os mesmos
sentimentos, as mesmas emoções, a mesma cultura, a mesma história, a mesma
geografia, os mesmos interesses estratégicos.” O que é provavelmente verdade,
mas levanta imediatamente uma questão: então para quê? A “Global Britain” ainda
está por concretizar. O globo não é um lugar tranquilo. O regresso da América
ao seu tradicional papel liderante do mundo livre não premeia o caminho
escolhido por Londres.
O que foi, no
entanto, mais paradoxal em muitas das reacções europeias ao acordo foi a
necessidade constante de afirmar que a “força” esteve do lado de Bruxelas. No
dia de Natal, um dos títulos mais comuns a alguma imprensa europeia referia o
facto de a União Europeia poder adoptar represálias em 20 dias, caso o Reino
Unido não cumprisse o acordo. Porquê tanta insistência? Ou tanta desconfiança?
Ou tanto receio? Porque a Europa, forte ou fraca, também precisava de um bom
acordo que não afastasse o Reino Unido das suas costas. Porque é o maior
destino das suas exportações e, em primeiro lugar, da máquina exportadora alemã
(o país que lhe compra mais BMW). Porque tem a maior capacidade militar da
Europa, numa altura em que a Europa tenta fazer da “autonomia estratégica” a
sua nova utopia. Porque a sua capacidade de I&D é enorme.
Como disse a
presidente da Comissão, este acordo permite que todos ganhem. Foi,
indiscutivelmente, outro bom resultado do ano que marcou de forma indelével o
destino da Europa.
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