segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

“Há o jeito! O jeito do tira daqui, põe ali. É um governo-mecano”

 


ANTÓNIO BARRETO

“Há o jeito! O jeito do tira daqui, põe ali. É um governo-mecano”

 

27.12.2020 15:55 por Maria Henrique Espada

https://www.sabado.pt/portugal/detalhe/ha-o-jeito-o-jeito-do-tira-daqui-poe-ali-e-um-governo-mecano?previewMode=1&fbclid=IwAR1iyAGwkkVLny3y-Fi_4CTNEaSkT_SEYm17Zjk_otw4ublHVbGVQ_lw5po

 


Fica “arrepiado” ao ver o Governo querer “monitorizar” o discurso de ódio e vê no fim dos debates quinzenais um erro “medonho”. O plano de Costa Silva, bem feito, é só um catálogo, mas sem orientação - e menorizou um Governo inteiro.

 

 Rui Rio é "um desastre", Costa ainda não deixou uma marca no País. Mas preferia um Bloco Central que desbloqueasse reformas. E o Chega não o assusta. A SÁBADO entrevistou António Barreto, em agosto, por ocasião do seu novo livro.

 

"Publicou agora um livro que retrata Salazar, Cunhal e Soares, os nomes mais marcantes do século XX português. Depois, elenca alguns que também marcaram a democracia, mas em menor grau. Eanes, Sá Carneiro, Cavaco, Guterres, Freitas, Sócrates e Passos Coelho. Omitiu António Costa. Não marcou?

Esses rankings destinam-se aos que já são passado do ponto de vista político e António Costa está em funções. Mas, com o que fez até agora, e seguindo o seu convite, acho curto. É cedo e é curto. Ilustrou-se por um ou dois factos: durar, já lá está há seis anos. É um êxito, mas não é uma obra. Conteve as oposições - também é um êxito. Fez a espécie de reversão de rendimentos a uma parte da população que tinha sido prejudicada pela austeridade, foi um ato de generosidade, que lhe foi permitida pelas novas condições económicas, financeiras, europeias e até pelo último ano do governo anterior - mas não é uma obra. Não criou novas empresas, novas indústrias. Finalmente, há esta espécie de obra-prima de habilidade que foi libertar-se do legado de Sócrates. Ele não só é um herdeiro de Sócrates, como foi colaborador e coprotagonista, como tantos outros, e conseguiu libertar-se disso. Isso é um feito. Mas é um feito de habilidade política, não mais do que isso.

 

Em resumo, falta-lhe obra?

É. Muitos dizem que a maior obra terá sido cortar com o tabu do governo de esquerdas. Aceito, mas isso não é uma obra política importante e durante 10 anos ou 20 ele próprio era coautor dessa espécie de tabu. Reconheço a António Costa o que se diz desde o início, que tem uma grande habilidade política. Mas entre o hábil e o habilidoso há uma dualidade de sentidos nem sempre agradável. E às vezes António Costa é as duas coisas, hábil e habilidoso.

 

Com a crise próxima que se antevê precisaríamos mais de um reformista?

É vital. Já é há alguns anos. Há setores que exigem reformas de fundo, para as quais é precisa coragem, espírito empírico e pragmático, e firmeza de princípios, para recuperar confiança nacional e internacional. É minha convicção - pelo que se vê, pelo que se ouve, pelo que se lê - que em Portugal quase ninguém confia nas entidades públicas, para fazer poupanças, investimentos, para correr riscos. E internacionalmente também não. Houve um ou dois grandes investimentos, que já vêm de trás, como a Autoeuropa, por exemplo, mas isso parou. Há um défice de confiança nas instituições.

 

E daqui para a frente haverá condições políticas para alterar isso?

Se olhar para o que temos hoje, não há. É necessária uma maioria parlamentar sólida e programática. Nós hoje temos uma quase maioria que não é maioria, não é sólida e não é programática. No anterior governo ainda havia notinhas em post-its (risos), escritas às seis da tarde numa sala esconsa, agora não temos nada. Não há bases programáticas, não há consistência económica e social, não há objetivo nem programa, não há nada. Há o jeito! O jeito de tira daqui põe ali, é um governo-mecano, em que se muda o parafuso, não é suficiente para fazer reformas.

Já li o plano, é um excelente catálogo, exaustivo de tudo o que se pode fazer, mas é um catálogo

 

Há um plano, o de António Costa Silva. António Costa tem o maior Governo da democracia mas para desenhar o futuro do País recorreu a outsourcing. Isso não é um atestado de menoridade intelectual ao seu Governo?

É exatamente isso. Já li o plano, é um excelente catálogo, exaustivo de tudo o que se pode fazer, preparado por um homem excecionalmente informado e inteligente, mas é um catálogo. Eu pego no catálogo do Ikea e não é boa literatura nem um bom plano estratégico...

 

Nem um guia de ação?

Nada. Eu quero é saber quem paga, onde se vai buscar o dinheiro, quem faz, durante quanto tempo, como, para quê? Estas perguntas não estão respondidas. Apesar de se chamar plano, não é. Não quero minimizar o trabalho do Costa Silva, é um homem capaz e fez o que lhe pediram. Mas os ministros são pagos para estudar e planear a prazo. Os secretários de Estado para agir no dia seguinte. Os ministros foram despromovidos a diretores-gerais… Nenhum ministro foi capaz, pelos vistos, de assumir a responsabilidade de idealizar um plano destes.

 

E então este plano serve para quê?

António Costa sentia que estava há seis anos a governar com agendas de 24 horas ou 48. Tinha que telefonar ao BE para fazer uma coisinha, ao PCP para fazer outra, e depois fazia telefonemas escondidos ao Rui Rio. E percebeu que, ao fim de 5 ou 6 anos, estava a naufragar, não tinha nem ideias, nem equipa, nem projeto, desígnio. Na dimensão da política de imagem, do efémero, do produto, António Costa é um grande executante. Mas a política de promoção de imagem tem limites, como tudo na vida. E acho que também esteve consciente de que teve um período difícil na vida nacional, foram 10 anos terríveis. António Costa deu-se conta disso, apesar das suas debilidades e insuficiências de outra ordem. Mas deve ter percebido que lhe faltava espírito, princípios, objetivo, estratégia.

 

Vê alguma coisa dessas - espírito, estratégia - em algum dos hipotéticos sucessores de António Costa?

Não vejo em nenhum caso uma inspiração liderante importante. Falava-se muito deste Pedro Santos… Vi-o ser malcriadíssimo com os deputados, furibundo, crispado, de uma maneira insuportável. E com os episódios todos de transportes e da TAP, o futuro do Pedro Nuno Santos ficou limitado. Perceberam-se as suas grandes insuficiências doutrinárias e de tranquilidade e serenidade. Um líder não se faz só com conhecimento dos livros, e também não se faz só com o coração. Não sei quem possa ser. Imagino que nos próximos anos vão aparecer nomes.

 

Pedro Nuno Santos, a continuidade de um potencial sucessor de Costa

Em 2015, António Costa escolheu-o para secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares onde teve a missão de fazer a 'ponte' das negociações entre o Governo e os parceiros políticos da 'geringonça'. Em fevereiro de 2019, assumiu o Ministério das Infraestruturas. - Portugal , Sábado.

 

E Rui Rio, líder há dois anos, conseguiu criar uma alternativa?

É um desastre… enfim, há desastre quando as coisas começam bem e depois há um desastre. As coisas nem começaram, simplesmente. O Rui Rio, por quem tive apreço pela forma como orientou certo trabalho na câmara do Porto, onde mostrou espírito e distância do que é fácil, não soube transferir isso para o plano nacional.

 

O que é que correu mal?

Tanto quanto se percebe, já se zangou com metade do PSD, com metade dos dirigentes e barões… E, ou estou muito distraído, ou não deu nenhuma indicação, nem estratégica, nem de princípios, nem de orientação. Qual a doutrina? Não se sabe, nem eles próprios. Os textos que conheço, dele, ou do partido, os mais interessantes e consistentes são obviamente da autoria do David Justino, que tem mais experiência, sensatez e compreensão da vida política na sua extensão. Não creio que tão brevemente haja alternativa ao governo socialista, ou de esquerdas.

 

Isso não faz de Rio mais candidato a vice-primeiro-ministro do que a primeiro-ministro?

É muito possível que seja essa a vocação. O que é pena, porque um grande partido como o PSD não pode aspirar a ser vice. Pode acontecer-lhe ser vice, como já foi, como ao PS também pode acontecer. Mas a aspiração não pode ser essa.

O que é que me sobra? Por defeito, o Bloco Central

 

Já escreveu que a esquerda sozinha não consegue resolver os problemas, a direita sozinha também não e muito menos um só partido. Defende um Bloco Central (BC)?

Eu não sei qual é a receita culinária, mas sou a favor de um BC. O BC significa para mim uma aliança programática, sólida, entre a maior parte da esquerda democrática e a maior parte da direita democrática. Suponha que o PSD se quebra, que há um partido novo que aparece. Muita coisa pode acontecer que altere a simples ideia de que o Bloco Central é PS e o PSD. E não estou a sonhar: se olhar para a Europa, a exceção é Portugal, com os mesmos partidos, nos mesmos sítios.

 

Qual era a vantagem?

Para fazer reformas temos de ter elites privadas e públicas capazes de as promover. E um certo clima de confiança e de honestidade. Não temos e isso não se fabrica. Mas se nunca se abre a condições para isto, então não temos mesmo. A esquerda unida é totalmente incapaz. Metade da esquerda - o PCP, o BE e parte do PS - quer destruir a iniciativa privada, acabar com o capitalismo e fazer o socialismo. É o que dizem todos os dias, qualquer problema que surja, a resposta é a mesma, "nacionalize-se", são uma espécie de papagaios. Isto não assegura confiança internacional, dos mercados, nem do investimento privado. A direita é cada vez menor, eleitoralmente. Teve o seu apogeu com a maioria de Cavaco Silva - que do ponto de vista da realização foi sofrível, mas do ponto de vista da tarefa histórica foi muito importante, ajudou a garantir a reforma da constituição e liberalizou a economia - e acabou. Esgotou-se, não oferece liberalismo consequente, não oferece nova aproximação europeia ou atlântica sólida, não tem nada a oferecer, portanto não serve para nada. Não pode fazer reformas, não tem força política, não tem apoio social, nos sindicatos… Se não tenho maioria de direita possível ou imaginável, se não tenho maioria de esquerda adequada, o que é que me sobra? Por defeito, o Bloco Central.

 

Rui Rio e Costa têm tido aproximações recentes: no Orçamento suplementar, no fim dos debates quinzenais. É um sinal?

Fez-se e o ter-se feito já é qualquer coisa, mas ainda estamos no domínio do piscar de olho. Agora, a minha recomendação é que se comece já em 2020 e 2021 a criar uma espécie de fórum, até pode ser discreto - secreto não, nunca é bom - entre o PS e o PSD, com personalidades dos dois lados, laborais, académicos, gente das empresas, ou do partido. Um começo de conversa. Para criar lógica, programa, e que quando houvesse eleições produzisse fruto. Uma coisa sei, porque é o vício português, nada se faz antes de eleições. Mas se o caminho for desbravado, depois ver-se-á quem lidera, mas haverá alicerces.

Ainda vai demorar.

Há três ou quatro anos, estava convencido de que as coisas entre Costa e Rio iam ser rápidas. Num debate que moderei senti isso. E disse-lhes, numa pequena frase, no fim, sentia-se que pelo menos estavam disponíveis, era o piscar de olho… Tem demorado. Mas no meio desta pandemia, com fundos europeus à vista, a necessidade de encontrar outro tanto junto do investimento privado, e de reformas, teriam obrigação moral, até ao fim do ano, de dar sinais consistentes do que querem fazer. Ambos.

 

Convergiram na redução dos debates quinzenais a bimestrais. Mas aí foi crítico. Foi um erro grave?

Um erro colossal, medonho. Num País que tem pouco debate político fundamentado, com poucos hábitos de escrutínio da vida política, apesar das proclamações balofas sobre a transparência, diz-se "o debate é fraco, então vamos acabar com ele"? Denota uma fragilidade moral e política gravíssima. O primeiro-ministro e o chefe da oposição sentem-se frágeis para poder debater em público e deixar-se escrutinar.

Usou termos duros com a proposta do Governo, na linha de menos debate ou mais controlado, de monitorizar o discurso de ódio. Falou no regresso das "botifarras da censura" e disse que "são mesmo perigosos".

 

Este PS, que já foi o seu partido, é pouco democrático?

Essa espécie de supervisão do que se diz nas redes sociais, comunicação social e tudo o mais teria como objetivo preferencial o discurso de ódio, a narrativa de ódio, o racismo, a xenofobia: o machismo não entra? E o idadismo? E o antijovem? Não há limite possível. Isto mostra que há gente preocupada, na esfera do Governo e na esquerda, com algum controlo da liberdade de expressão. Deixa-me arrepiado! Desde o 25 de Abril foi dos momentos mais confrangedores desse ponto de vista. Ainda nada foi feito, está só indiciado. Mas começa por um bitaite, uma palavrinha, vão-se aferindo as reações e daqui a 3 ou 4 meses aparece um decreto-lei… da parte do Governo já se fala em cinco instituições. Até sou capaz de dizer quais são.

 

Quer dizer?

Em grande parte são as dos signatários da carta dos 67 signatários do abaixo-assinado sobre como a academia deve tratar a extrema-direita, e que eu acho absurdo. E que pertencem a quatro ou cinco instituições, todas especializadas nas mesmas coisas. Em discurso, narrativa, história, xenofobia, racismo, redes sociais. Não estamos a falar de boatos, mas de intenções de monitorizar. Para quê? Qual é o objetivo, saber quem odeia quem? Basta ir aos comentários nos sites dos jornais, e são as borras da sociedade, muitas vezes gente desqualificada. O governo vai monitorizar a sarjeta? Monitorizar significa o quê? Ler, ouvir e tomar notas. É tão irreal e abusivo que evidentemente há uma intenção política. Não há aqui inocentes.

 

Isto acontece por medo do Chega ou o Chega é um pretexto?

Isso é outro assunto, mas do ponto de vista político, não penso que o Chega seja muito importante. Acho que é uma borbulha, mais do que outra coisa: tem de se prestar atenção, porque muitas vezes as borbulhas são por causa do que nós fazemos, a má democracia, o mau escrutínio, a corrupção, que geram extrema-esquerda e direita e populismos. O facto de haver hoje no mundo, no Brasil, na Venezuela, nos EUA , na Hungria, esta emergência de nacionalistas ou de outras coisas, mostra-nos os nossos defeitos, os defeitos das instituições. O Chega em parte também é isso. A personalidade do seu principal dirigente não é particularmente inquietante, durante anos fez debates sobre futebol, o que o desqualifica: estar entre o parlamento e o estádio a fazer a nova política para a Nação é uma tolice redonda. Simplesmente, com a extrema-direita, o racismo, a xenofobia, os imigrantes, há coisas que a esquerda disse "vamos aproveitar" e fazer desta borbulha uma fera medonha. Disseram o "Hitler também começou assim", o Mussolini, o ovo da serpente, exageros inaceitáveis que acabaram por promover o Chega.

 

Ferro Rodrigues, por exemplo, repreendeu-o para não dizer "vergonha". É contraproducente?

É totalmente contraproducente. O primeiro autor do êxito do Chega chama-se Ferro Rodrigues. Agiu destemperadamente. Entristece muito nisto outro fenómeno: a democracia portuguesa ainda não tem segurança suficiente para aceitar que o regime democrático é de todos, incluindo os não democratas e os antidemocratas. A democracia portuguesa é sectária e jacobina: pertence aos democratas, nós definimos quem são os democratas, e é isto. Quem não está aqui, está fora. Isto não é aceitável. A democracia tem de ser o regime de todos, incluindo não democratas, só não digo terroristas e guerrilheiros porque aí estamos no domínio da ação violenta. Agora, que ainda haja hoje um parágrafo na Constituição que diz que são proibidos grupos políticos que professem princípios fascistas é absolutamente ridículo. E que haja uma queixa no Ministério Público a dizer que o senhor André Ventura estava a fazer a saudação nazi… A conceção jacobina da democracia é odiosa. É de peito aberto às balas que os democratas têm de se assumir, não é tentando proibir, calar, ou queixando-se de que Ventura não é democrata. Obviamente que não é! Mas está no parlamento e prefiro que esteja lá do que fora, é meio caminho andado.

 

Marcelo será o seu candidato?

Marcelo está reeleito. A curiosidade é se o segundo candidato é importante ou se são só fantasmas.

 

Como vê a eventual candidatura de Ana Gomes?

Vejo muito bem. Já lá vou. Não queria que a eleição de Marcelo fosse mais um gesto de cumplicidade com os partidos, nomeadamente o PS e o PSD. Gosto da ideia de cooperação e sempre me opus à ideia de concorrência entre o Presidente e o Governo, que foi o que tivemos no passado. Agora, da cooperação à cumplicidade vai uma distância e Costa e Marcelo já chegaram à cumplicidade. Acho errado. Mas penso que Marcelo está reeleito e gostava que fosse reeleito. Mas gostava muitíssimo que houvesse um segundo candidato forte, sabendo que lhe estou a pedir um sacrifício - se estou convencido de que ganha o outro, porque é que quero que venha? Mas é um sacrifício com futuro e vai obrigar o incumbente a lutar e a um esforço de clareza e seriedade políticas.

 

E pode ser Ana Gomes?

Tenho muito respeito pelo currículo dela, pela insistência, a pertinácia. Posso não gostar do estilo, não tem importância nenhuma. No essencial, nunca desistiu de meter o dedo na engrenagem da porta giratória e da promiscuidade. Acho que podia e devia ser candidata.

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