ANTÓNIO BARRETO
“Há o jeito! O jeito do tira daqui, põe ali. É um
governo-mecano”
27.12.2020 15:55
por Maria Henrique Espada
Fica “arrepiado” ao ver o Governo querer “monitorizar” o
discurso de ódio e vê no fim dos debates quinzenais um erro “medonho”. O plano
de Costa Silva, bem feito, é só um catálogo, mas sem orientação - e menorizou
um Governo inteiro.
Rui Rio é "um
desastre", Costa ainda não deixou uma marca no País. Mas preferia um Bloco
Central que desbloqueasse reformas. E o Chega não o assusta. A SÁBADO
entrevistou António Barreto, em agosto, por ocasião do seu novo livro.
"Publicou
agora um livro que retrata Salazar, Cunhal e Soares, os nomes mais marcantes do
século XX português. Depois, elenca alguns que também marcaram a democracia,
mas em menor grau. Eanes, Sá Carneiro, Cavaco, Guterres, Freitas, Sócrates e
Passos Coelho. Omitiu António Costa. Não marcou?
Esses rankings
destinam-se aos que já são passado do ponto de vista político e António Costa
está em funções. Mas, com o que fez até agora, e seguindo o seu convite, acho
curto. É cedo e é curto. Ilustrou-se por um ou dois factos: durar, já lá está
há seis anos. É um êxito, mas não é uma obra. Conteve as oposições - também é
um êxito. Fez a espécie de reversão de rendimentos a uma parte da população que
tinha sido prejudicada pela austeridade, foi um ato de generosidade, que lhe
foi permitida pelas novas condições económicas, financeiras, europeias e até
pelo último ano do governo anterior - mas não é uma obra. Não criou novas
empresas, novas indústrias. Finalmente, há esta espécie de obra-prima de
habilidade que foi libertar-se do legado de Sócrates. Ele não só é um herdeiro
de Sócrates, como foi colaborador e coprotagonista, como tantos outros, e
conseguiu libertar-se disso. Isso é um feito. Mas é um feito de habilidade
política, não mais do que isso.
Em resumo,
falta-lhe obra?
É. Muitos dizem
que a maior obra terá sido cortar com o tabu do governo de esquerdas. Aceito,
mas isso não é uma obra política importante e durante 10 anos ou 20 ele próprio
era coautor dessa espécie de tabu. Reconheço a António Costa o que se diz desde
o início, que tem uma grande habilidade política. Mas entre o hábil e o
habilidoso há uma dualidade de sentidos nem sempre agradável. E às vezes
António Costa é as duas coisas, hábil e habilidoso.
Com a crise
próxima que se antevê precisaríamos mais de um reformista?
É vital. Já é há
alguns anos. Há setores que exigem reformas de fundo, para as quais é precisa
coragem, espírito empírico e pragmático, e firmeza de princípios, para
recuperar confiança nacional e internacional. É minha convicção - pelo que se
vê, pelo que se ouve, pelo que se lê - que em Portugal quase ninguém confia nas
entidades públicas, para fazer poupanças, investimentos, para correr riscos. E
internacionalmente também não. Houve um ou dois grandes investimentos, que já
vêm de trás, como a Autoeuropa, por exemplo, mas isso parou. Há um défice de
confiança nas instituições.
E daqui para a
frente haverá condições políticas para alterar isso?
Se olhar para o
que temos hoje, não há. É necessária uma maioria parlamentar sólida e
programática. Nós hoje temos uma quase maioria que não é maioria, não é sólida
e não é programática. No anterior governo ainda havia notinhas em post-its
(risos), escritas às seis da tarde numa sala esconsa, agora não temos nada. Não
há bases programáticas, não há consistência económica e social, não há objetivo
nem programa, não há nada. Há o jeito! O jeito de tira daqui põe ali, é um
governo-mecano, em que se muda o parafuso, não é suficiente para fazer
reformas.
Já li o plano, é
um excelente catálogo, exaustivo de tudo o que se pode fazer, mas é um catálogo
Há um plano, o de
António Costa Silva. António Costa tem o maior Governo da democracia mas para
desenhar o futuro do País recorreu a outsourcing. Isso não é um atestado de
menoridade intelectual ao seu Governo?
É exatamente
isso. Já li o plano, é um excelente catálogo, exaustivo de tudo o que se pode
fazer, preparado por um homem excecionalmente informado e inteligente, mas é um
catálogo. Eu pego no catálogo do Ikea e não é boa literatura nem um bom plano
estratégico...
Nem um guia de
ação?
Nada. Eu quero é
saber quem paga, onde se vai buscar o dinheiro, quem faz, durante quanto tempo,
como, para quê? Estas perguntas não estão respondidas. Apesar de se chamar
plano, não é. Não quero minimizar o trabalho do Costa Silva, é um homem capaz e
fez o que lhe pediram. Mas os ministros são pagos para estudar e planear a
prazo. Os secretários de Estado para agir no dia seguinte. Os ministros foram
despromovidos a diretores-gerais… Nenhum ministro foi capaz, pelos vistos, de
assumir a responsabilidade de idealizar um plano destes.
E então este
plano serve para quê?
António Costa
sentia que estava há seis anos a governar com agendas de 24 horas ou 48. Tinha
que telefonar ao BE para fazer uma coisinha, ao PCP para fazer outra, e depois
fazia telefonemas escondidos ao Rui Rio. E percebeu que, ao fim de 5 ou 6 anos,
estava a naufragar, não tinha nem ideias, nem equipa, nem projeto, desígnio. Na
dimensão da política de imagem, do efémero, do produto, António Costa é um
grande executante. Mas a política de promoção de imagem tem limites, como tudo
na vida. E acho que também esteve consciente de que teve um período difícil na
vida nacional, foram 10 anos terríveis. António Costa deu-se conta disso,
apesar das suas debilidades e insuficiências de outra ordem. Mas deve ter percebido
que lhe faltava espírito, princípios, objetivo, estratégia.
Vê alguma coisa
dessas - espírito, estratégia - em algum dos hipotéticos sucessores de António
Costa?
Não vejo em
nenhum caso uma inspiração liderante importante. Falava-se muito deste Pedro Santos…
Vi-o ser malcriadíssimo com os deputados, furibundo, crispado, de uma maneira
insuportável. E com os episódios todos de transportes e da TAP, o futuro do
Pedro Nuno Santos ficou limitado. Perceberam-se as suas grandes insuficiências
doutrinárias e de tranquilidade e serenidade. Um líder não se faz só com
conhecimento dos livros, e também não se faz só com o coração. Não sei quem
possa ser. Imagino que nos próximos anos vão aparecer nomes.
Pedro Nuno
Santos, a continuidade de um potencial sucessor de Costa
Em 2015, António
Costa escolheu-o para secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares onde teve
a missão de fazer a 'ponte' das negociações entre o Governo e os parceiros
políticos da 'geringonça'. Em fevereiro de 2019, assumiu o Ministério das Infraestruturas.
- Portugal , Sábado.
E Rui Rio, líder
há dois anos, conseguiu criar uma alternativa?
É um desastre…
enfim, há desastre quando as coisas começam bem e depois há um desastre. As
coisas nem começaram, simplesmente. O Rui Rio, por quem tive apreço pela forma
como orientou certo trabalho na câmara do Porto, onde mostrou espírito e
distância do que é fácil, não soube transferir isso para o plano nacional.
O que é que
correu mal?
Tanto quanto se
percebe, já se zangou com metade do PSD, com metade dos dirigentes e barões… E,
ou estou muito distraído, ou não deu nenhuma indicação, nem estratégica, nem de
princípios, nem de orientação. Qual a doutrina? Não se sabe, nem eles próprios.
Os textos que conheço, dele, ou do partido, os mais interessantes e
consistentes são obviamente da autoria do David Justino, que tem mais
experiência, sensatez e compreensão da vida política na sua extensão. Não creio
que tão brevemente haja alternativa ao governo socialista, ou de esquerdas.
Isso não faz de
Rio mais candidato a vice-primeiro-ministro do que a primeiro-ministro?
É muito possível
que seja essa a vocação. O que é pena, porque um grande partido como o PSD não
pode aspirar a ser vice. Pode acontecer-lhe ser vice, como já foi, como ao PS
também pode acontecer. Mas a aspiração não pode ser essa.
O que é que me
sobra? Por defeito, o Bloco Central
Já escreveu que a
esquerda sozinha não consegue resolver os problemas, a direita sozinha também
não e muito menos um só partido. Defende um Bloco Central (BC)?
Eu não sei qual é
a receita culinária, mas sou a favor de um BC. O BC significa para mim uma aliança
programática, sólida, entre a maior parte da esquerda democrática e a maior
parte da direita democrática. Suponha que o PSD se quebra, que há um partido
novo que aparece. Muita coisa pode acontecer que altere a simples ideia de que
o Bloco Central é PS e o PSD. E não estou a sonhar: se olhar para a Europa, a
exceção é Portugal, com os mesmos partidos, nos mesmos sítios.
Qual era a
vantagem?
Para fazer
reformas temos de ter elites privadas e públicas capazes de as promover. E um
certo clima de confiança e de honestidade. Não temos e isso não se fabrica. Mas
se nunca se abre a condições para isto, então não temos mesmo. A esquerda unida
é totalmente incapaz. Metade da esquerda - o PCP, o BE e parte do PS - quer
destruir a iniciativa privada, acabar com o capitalismo e fazer o socialismo. É
o que dizem todos os dias, qualquer problema que surja, a resposta é a mesma,
"nacionalize-se", são uma espécie de papagaios. Isto não assegura
confiança internacional, dos mercados, nem do investimento privado. A direita é
cada vez menor, eleitoralmente. Teve o seu apogeu com a maioria de Cavaco Silva
- que do ponto de vista da realização foi sofrível, mas do ponto de vista da
tarefa histórica foi muito importante, ajudou a garantir a reforma da
constituição e liberalizou a economia - e acabou. Esgotou-se, não oferece
liberalismo consequente, não oferece nova aproximação europeia ou atlântica
sólida, não tem nada a oferecer, portanto não serve para nada. Não pode fazer
reformas, não tem força política, não tem apoio social, nos sindicatos… Se não
tenho maioria de direita possível ou imaginável, se não tenho maioria de
esquerda adequada, o que é que me sobra? Por defeito, o Bloco Central.
Rui Rio e Costa
têm tido aproximações recentes: no Orçamento suplementar, no fim dos debates
quinzenais. É um sinal?
Fez-se e o ter-se
feito já é qualquer coisa, mas ainda estamos no domínio do piscar de olho.
Agora, a minha recomendação é que se comece já em 2020 e 2021 a criar uma
espécie de fórum, até pode ser discreto - secreto não, nunca é bom - entre o PS
e o PSD, com personalidades dos dois lados, laborais, académicos, gente das
empresas, ou do partido. Um começo de conversa. Para criar lógica, programa, e
que quando houvesse eleições produzisse fruto. Uma coisa sei, porque é o vício
português, nada se faz antes de eleições. Mas se o caminho for desbravado,
depois ver-se-á quem lidera, mas haverá alicerces.
Ainda vai
demorar.
Há três ou quatro
anos, estava convencido de que as coisas entre Costa e Rio iam ser rápidas. Num
debate que moderei senti isso. E disse-lhes, numa pequena frase, no fim,
sentia-se que pelo menos estavam disponíveis, era o piscar de olho… Tem
demorado. Mas no meio desta pandemia, com fundos europeus à vista, a
necessidade de encontrar outro tanto junto do investimento privado, e de
reformas, teriam obrigação moral, até ao fim do ano, de dar sinais consistentes
do que querem fazer. Ambos.
Convergiram na
redução dos debates quinzenais a bimestrais. Mas aí foi crítico. Foi um erro
grave?
Um erro colossal,
medonho. Num País que tem pouco debate político fundamentado, com poucos
hábitos de escrutínio da vida política, apesar das proclamações balofas sobre a
transparência, diz-se "o debate é fraco, então vamos acabar com ele"?
Denota uma fragilidade moral e política gravíssima. O primeiro-ministro e o
chefe da oposição sentem-se frágeis para poder debater em público e deixar-se
escrutinar.
Usou termos duros
com a proposta do Governo, na linha de menos debate ou mais controlado, de
monitorizar o discurso de ódio. Falou no regresso das "botifarras da
censura" e disse que "são mesmo perigosos".
Este PS, que já
foi o seu partido, é pouco democrático?
Essa espécie de
supervisão do que se diz nas redes sociais, comunicação social e tudo o mais
teria como objetivo preferencial o discurso de ódio, a narrativa de ódio, o
racismo, a xenofobia: o machismo não entra? E o idadismo? E o antijovem? Não há
limite possível. Isto mostra que há gente preocupada, na esfera do Governo e na
esquerda, com algum controlo da liberdade de expressão. Deixa-me arrepiado!
Desde o 25 de Abril foi dos momentos mais confrangedores desse ponto de vista.
Ainda nada foi feito, está só indiciado. Mas começa por um bitaite, uma
palavrinha, vão-se aferindo as reações e daqui a 3 ou 4 meses aparece um
decreto-lei… da parte do Governo já se fala em cinco instituições. Até sou
capaz de dizer quais são.
Quer dizer?
Em grande parte
são as dos signatários da carta dos 67 signatários do abaixo-assinado sobre
como a academia deve tratar a extrema-direita, e que eu acho absurdo. E que
pertencem a quatro ou cinco instituições, todas especializadas nas mesmas
coisas. Em discurso, narrativa, história, xenofobia, racismo, redes sociais.
Não estamos a falar de boatos, mas de intenções de monitorizar. Para quê? Qual
é o objetivo, saber quem odeia quem? Basta ir aos comentários nos sites dos
jornais, e são as borras da sociedade, muitas vezes gente desqualificada. O
governo vai monitorizar a sarjeta? Monitorizar significa o quê? Ler, ouvir e
tomar notas. É tão irreal e abusivo que evidentemente há uma intenção política.
Não há aqui inocentes.
Isto acontece por
medo do Chega ou o Chega é um pretexto?
Isso é outro
assunto, mas do ponto de vista político, não penso que o Chega seja muito
importante. Acho que é uma borbulha, mais do que outra coisa: tem de se prestar
atenção, porque muitas vezes as borbulhas são por causa do que nós fazemos, a
má democracia, o mau escrutínio, a corrupção, que geram extrema-esquerda e
direita e populismos. O facto de haver hoje no mundo, no Brasil, na Venezuela,
nos EUA , na Hungria, esta emergência de nacionalistas ou de outras coisas,
mostra-nos os nossos defeitos, os defeitos das instituições. O Chega em parte
também é isso. A personalidade do seu principal dirigente não é particularmente
inquietante, durante anos fez debates sobre futebol, o que o desqualifica:
estar entre o parlamento e o estádio a fazer a nova política para a Nação é uma
tolice redonda. Simplesmente, com a extrema-direita, o racismo, a xenofobia, os
imigrantes, há coisas que a esquerda disse "vamos aproveitar" e fazer
desta borbulha uma fera medonha. Disseram o "Hitler também começou
assim", o Mussolini, o ovo da serpente, exageros inaceitáveis que acabaram
por promover o Chega.
Ferro Rodrigues,
por exemplo, repreendeu-o para não dizer "vergonha". É
contraproducente?
É totalmente
contraproducente. O primeiro autor do êxito do Chega chama-se Ferro Rodrigues.
Agiu destemperadamente. Entristece muito nisto outro fenómeno: a democracia
portuguesa ainda não tem segurança suficiente para aceitar que o regime
democrático é de todos, incluindo os não democratas e os antidemocratas. A
democracia portuguesa é sectária e jacobina: pertence aos democratas, nós
definimos quem são os democratas, e é isto. Quem não está aqui, está fora. Isto
não é aceitável. A democracia tem de ser o regime de todos, incluindo não
democratas, só não digo terroristas e guerrilheiros porque aí estamos no
domínio da ação violenta. Agora, que ainda haja hoje um parágrafo na
Constituição que diz que são proibidos grupos políticos que professem
princípios fascistas é absolutamente ridículo. E que haja uma queixa no
Ministério Público a dizer que o senhor André Ventura estava a fazer a saudação
nazi… A conceção jacobina da democracia é odiosa. É de peito aberto às balas que
os democratas têm de se assumir, não é tentando proibir, calar, ou queixando-se
de que Ventura não é democrata. Obviamente que não é! Mas está no parlamento e
prefiro que esteja lá do que fora, é meio caminho andado.
Marcelo será o
seu candidato?
Marcelo está
reeleito. A curiosidade é se o segundo candidato é importante ou se são só
fantasmas.
Como vê a
eventual candidatura de Ana Gomes?
Vejo muito bem.
Já lá vou. Não queria que a eleição de Marcelo fosse mais um gesto de
cumplicidade com os partidos, nomeadamente o PS e o PSD. Gosto da ideia de
cooperação e sempre me opus à ideia de concorrência entre o Presidente e o
Governo, que foi o que tivemos no passado. Agora, da cooperação à cumplicidade
vai uma distância e Costa e Marcelo já chegaram à cumplicidade. Acho errado.
Mas penso que Marcelo está reeleito e gostava que fosse reeleito. Mas gostava
muitíssimo que houvesse um segundo candidato forte, sabendo que lhe estou a
pedir um sacrifício - se estou convencido de que ganha o outro, porque é que
quero que venha? Mas é um sacrifício com futuro e vai obrigar o incumbente a
lutar e a um esforço de clareza e seriedade políticas.
E pode ser Ana
Gomes?
Tenho muito
respeito pelo currículo dela, pela insistência, a pertinácia. Posso não gostar
do estilo, não tem importância nenhuma. No essencial, nunca desistiu de meter o
dedo na engrenagem da porta giratória e da promiscuidade. Acho que podia
e devia ser candidata.
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