O Bar Americano fechou no ano do seu centenário
Um dos bares mais antigos do Cais do Sodré, em Lisboa,
pelo Americano passaram várias gerações de marinheiros e noctívagos, mas também
Pessoa ou Cardoso Pires. Quarteirão vai ser hotel de quatro ou cinco estrelas.
João Pedro Pincha
29 de Dezembro de
2020, 7:10
https://www.publico.pt/2020/12/29/local/noticia/bar-americano-fechou-ano-centenario-1944407
O Bar Americano,
que em 2020 completou um século de existência, já não vai festejar o 101º
aniversário. Fechou definitivamente as portas há cerca de dois meses e o prédio
em que funcionava vai brevemente entrar em obras que o transformarão num hotel.
O Americano era
um dos símbolos da Lisboa boémia que despontou no Cais do Sodré em princípios
do século XX alimentada pela constante acostagem de navios estrangeiros.
Fundado em 1920, partilhava a Rua Bernardino Costa com o seu congénere um ano
mais velho, o British Bar, e, como este, adoptou um nome facilmente
reconhecível para os marinheiros, que constituíram durante muito tempo uma
parte fundamental da sua clientela.
Seguindo essas
pegadas iniciais, vários outros estabelecimentos da zona foram inspirar-se a
cidades e nomes estrangeiros para abrir portas: Copenhaga, Liverpool, Roterdão,
Texas, Viking, Oslo, Tokyo, Jamaica.
Tanto o Americano
como o British têm há alguns anos o mesmo gerente, embora o dono do Americano
fosse um bisneto do fundador. O PÚBLICO não conseguiu chegar à fala com eles,
mas confirmou o encerramento definitivo do bar junto de duas fontes. Também a
empresa proprietária do edifício, a gestora de investimentos imobiliários
Patrizia, confirma o fecho.
“O imóvel a que
se refere é propriedade da Patrizia, que tem a intenção de o transformar num
hotel consonante com o passado glamoroso e a ambiência histórica do bairro,
criando uma nova fonte de emprego para a economia local”, disse um porta-voz da
empresa. “O pequeno espaço comercial vazio a que se refere vai ser ocupado
novamente no futuro por um pequeno negócio local, plenamente alinhado com a
história deste edifício emblemático.”
O edifício ocupa
um quarteirão inteiro entre a Praça Duque da Terceira, a Rua Bernardino Costa,
a Travessa do Corpo Santo e a Ribeira das Naus. Todos os inquilinos estão a
mudar-se por estes dias. Além do Americano, fecharam aqui estabelecimentos como
um bar irlandês, um bar de cerveja artesanal, uma pizzaria, uma escola de
condução e uma agência de viagens, além de vários escritórios de empresas nos
pisos superiores.
De acordo com uma
nota de imprensa publicada no site da Patrizia em Julho de 2019, momento em que
a empresa adquiriu o imóvel em nome de um fundo de pensões alemão, o futuro
hotel terá uma categoria de quatro ou cinco estrelas e mais de 100 quartos nos
seus 6200 metros quadrados.
O Bar Americano
foi frequentado por alguns notáveis como Fernando Pessoa, Alexandre O’Neill e
José Cardoso Pires, que sobre ele escreveu em crónicas de jornais e no Lisboa,
Livro de Bordo. “Não há dúvida, os bares são realmente navegações
pessoalíssimas”, lê-se na obra de 1997. “Em tempos foi um balcão de suevos, daneses
e britânicos, funcionários, todos eles, das agências de navegação do Cais do
Sodré, e aqui, hoje que o dia está de feição, torno a tropeçar noutro poeta: o
Pessoa. (…) Também ele, nos gloriosos anos trinta, frequentava o Americano às
horas litúrgicas dos morning drinkers. (…) Nos bares do Cais do Sodré ninguém
está livre de apanhar com um poeta à deriva pela proa.”
Na última década,
o Cais do Sodré conheceu uma profunda transformação muito à boleia de se ter
fechado ao trânsito a Rua Nova do Carvalho (a rua cor-de-rosa), onde a cidade
redescobriu uma zona de vida nocturna. Os marinheiros e prostitutas deram lugar
à juventude cosmopolita, aos turistas e aos empreendedores da Web Summit,
levando ao aparecimento de novos negócios, à reabilitação de muito edificado e
à sua transformação em hotéis e hostels. Mas todas as mudanças vieram
acompanhadas de queixas dos residentes, um grupo cada vez mais rarefeito, sobre
o aumento da insalubridade, do ruído e da insegurança. Em ano de pandemia, o
bairro teve dias fantasmagóricos.
Fora do epicentro
da movida, o Americano podia passar despercebido por causa da sua porta
discreta, mas o grande painel de azulejos à entrada, publicitando uma marca de
vinho do Porto, servia de chamariz. O bar estava classificado como Loja com
História pela Câmara de Lisboa desde 2017.
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