OPINIÃO
Dois mil e vinte: anticlimático com sinais de esperança
Dois mil e vinte confirma-nos que, dadas todas as
oportunidades para travar o colapso climático, os governos escolherão sempre o
caminho errado, que é exactamente aquilo que está a acontecer nos percursos
traçados para a chamada “recuperação”, que aspira a nada menos que retomar o
rumo à catástrofe.
João Camargo
29 de Dezembro de
2020, 0:25
O ano começou em
chamas. Em Janeiro, ardiam todos os Estados da Austrália, com as grandes
cidades rodeadas pelas chamas, enquanto víamos pela primeira vez um país rico e
uma população branca e afluente ter de ser evacuada em massa por causa da crise
climática. A pandemia chegaria pouco depois, produzindo por acidente a maior
queda de sempre de emissões de gases com efeito de estufa. No meio deste caos,
as mobilizações climáticas baixaram de intensidade, enquanto o movimento Black
Lives Matter tornou-se provavelmente o maior movimento social da história dos
Estados Unidos e, na Índia, uma greve geral contra o governo autoritário de
Modi, que juntaria 250 milhões de trabalhadores.
Este será
provavelmente o ano mais quente desde que há registo, empatando com ou
suplantando 2016. Continua assim a sequência imparável de recordes sucessivos
de temperaturas para os anos mais quentes de sempre. A manifestação destas
aberrações climáticas não se ficou pelos incêndios na Austrália, mas também pelos
recordes absolutos de furacões no Atlântico (13), com seis de grandes
dimensões. A temporada dos furacões durou tanto tempo que entrou em Novembro e
acabou-se o alfabeto árabe, tendo as tempestades passado a ser designadas por
letras gregas. Das 30 tempestades tropicais registadas em 2020, 12 chegaram a
terra, outro recorde alarmante. A tempestade subtropical Alpha foi a tempestade
atlântica mais oriental alguma vez registada e a primeira a atingir terra em
Portugal, no dia 18 de Setembro. Apesar de uma temporada de tufões no Pacífico
abaixo do normal, as Filipinas foram devastadas por quatro tufões de seguida,
incluindo o tufão Goni, o mais forte deste ano e o mais forte a chegar a terra
alguma vez registado.
Na tundra
siberiana, atingiram-se em Maio os 25ºC, batendo por mais de 13ºC (!) o recorde
anterior. No início de Junho estiveram 30ºC acima do Círculo Polar Ártico e o
cada vez mais justificado receio de uma aceleração do derretimento do gelo
permanente (permafrost) revela uma vez mais como os modelos climáticos têm
pecado por excessiva moderação nos cenários. Na Amazónia, os incêndios
florestais continuam a devastar o pulmão do mundo, incentivados pela expansão
agro-pecuária, destruindo também as vidas das comunidades indígenas,
particularmente afectadas pela pandemia.
Em 2020 aconteceu
a maior queda de emissões de gases com efeito de estufa desde que há registos.
O que poderia ser uma boa notícia, caso tivesse sido intencional, ensina-nos
apenas que é preciso um plano social de grande amplitude para conseguir os
cortes necessários para travar o colapso climático
Com a crise
económica associada à covid-19 vimos uma vez mais os Estados e os bancos
centrais a funcionarem como garante único do funcionamento da sociedade e da
economia, destruindo-se as fantasias liberais acerca da potência dos mecanismos
de resolução pelos mercados. Apesar disso, os governos desejam o regresso do
predomínio dos mercados e do business as usual, mesmo que com ligeiras
alterações. Este ano uma vez mais demonstrou como a Humanidade se mantém longe
da resolução das crises criadas por si mesma, enquanto a alienação do sistema
produtivo capitalista continua a dominar a imaginação colectiva. Assistimos ao
resgate da indústria fóssil e da aviação por todo o mundo, em que os governantes
só perguntam onde é que se entregam os cheques e, claro, garantem que não há
limites para o que for preciso pagar. Apesar da conversa da acção verde, de que
o European Green Deal é mais um exemplo acabado, até ao momento as medidas de
recuperação para estimular a economia não são coerentes com qualquer transição
(nem em termos de emissões, nem em termos de justiça social). Surgiu com mais
potência que nunca a ideia de “neutralidade de carbono”, a expressão que
esconde o que verdadeiramente temos de cortar em emissões: os governos inventam
as contas da capacidade actual e futura de absorção de gases com efeito de
estufa por parte dos solos, florestas e zonas húmidas, acrescentam uns pozinhos
mágicos como a tecnologia de captura e armazenamento de carbono e puff... já
não temos de cortar tantas emissões porque, imagine-se, há “emissões
negativas”. Para compor a manipulação, anunciam-se cortes no tempo errado: o
Reino Unido diz que vai cortar 68% das emissões, a União Europeia diz que vai
cortar 55% das emissões (ambos em relação a 1990). Os cortes que temos de fazer
são em relação em 2010.
Em 2020 aconteceu
a maior queda de emissões de gases com efeito de estufa desde que há registos,
7% de redução (a única outra redução nas últimas três décadas foi na crise
financeira de 2008, uma queda de 1,2%). O que poderia ser uma boa notícia caso
tivesse sido intencional, ensina-nos apenas que é preciso um plano social de
grande amplitude para conseguir os cortes necessários para travar o colapso
climático.
Esse corte,
claro, não deve ser igual, como as responsabilidades pelas emissões passadas e
actuais não são iguais. Os 1% mais ricos do mundo são responsáveis pelo dobro
das emissões dos 50% mais pobres – por isso, não há qualquer dúvida que a
resolução desta crise passa obrigatoriamente por retirar aos mais ricos o poder
de destruir as nossas vidas. Segundo o mesmo relatório das Nações Unidas, a
elite mundial tem de reduzir as suas emissões para 1/30 do que emite hoje, isto
é, têm mesmo de deixar de ser essa elite. É seguro assumir que não o farão por
livre e espontânea vontade, o que significa que só farão quando a isso forem
obrigados.
Em Portugal, o
ano ficou marcado pelo facto caricato de António Costa ter entregue o “plano
para a década” ao barão petrolífero da Partex, António Costa e Silva, pela
insistência na construção de um novo aeroporto (catastrófico no Montijo, como o
seria em qualquer outra localização), pelo fim de todas as concessões
petrolíferas em Portugal através da desistência dos contratos da Australis Oil
& Gas, na Batalha e Pombal, e pela febre do hidrogénio verde, que tem como
principal intérprete João Galamba. Entretanto, está consolidado o modelo de
Transição Matos Fernandes: as empresas grandes emissoras anunciam encerramentos
e despedem trabalhadores e, no fim, o ministo diz que vai arranjar umas
formações e, claro, para umas eventuais novas empresas que hão-de surgir,
formadas com dinheiros europeus. Este é o modus operandi que já vimos no
encerramento da Central da EDP de Sines e da Refinaria da Galp em Matosinhos, e
não só não garante a transição à velocidade que necessitamos como transforma os
trabalhadores em inimigos da descarbonização, vista como estratagema para nova
etapa de acumulação de capital, entre outras, pelas empresas que têm
responsabilidade criminal na crise climática.
É também nos
piores momentos que podem surgir os melhores sinais: foi em Novembro de 2020
que foi assinado o Acordo de Glasgow, um plano popular para garantir que o
aumento de temperatura fica abaixo dos 1,5ºC até 2100. É decididamente um passo
em frente, descolando da impotência institucional para tentar travar a
insanidade que engoliu o sistema em que vivemos
A
extrema-direita, depois de alguma hesitação no início do ano, reforçou-se
perante o atrapalhado combate à covid-19 por parte dos governos. Este reforço é
principalmente mediático, nas redes sociais e no comentário, com a maior
manifestação cultural situando-se algures entre a psicose do vírus ter sido
criado na China, a ideia de que o vírus não mata ou que a vacina muda o DNA das
pessoas e as transforma em pessoas-répteis. O discurso de ódio encavalita-se
neste espaço e ganha lugar também no centrão, desesperado por poder e
autoridade num tempo de tanta incerteza.
A quarentena
intermitente global significou uma redução dramática nas mobilizações sociais
por todo o mundo, exceptuando o gigantesco movimento Black Lives Matter que,
dos Estados Unidos, alastrou por todo o mundo (em Portugal, gerou a maior
manifestação anti-racista de sempre), e a Greve Geral na Índia, em Novembro. O
próprio movimento pela justiça climática, que em 2020 se mobilizou como nunca,
sofreu uma quebra. Nesse sentido, 2020 foi claramente anticlimático, embora em
Portugal tenham existido importantes momentos, desde a vitória do fim dos
contratos de petróleo, às greves climáticas e aos Anti-corpos. A COP26, que
teria lugar em Glasgow, foi adiada, como se a (in)acção institucional se
pudesse dar ao luxo de mais um ano de recuo. Dois mil e vinte confirma-nos que,
dadas todas as oportunidades para travar o colapso climático, os governos
escolherão sempre o caminho errado, que é exactamente aquilo que está a
acontecer nos percursos traçados para a chamada “recuperação”, que aspira a
nada menos que retomar o rumo à catástrofe.
É também nos
piores momentos que podem surgir os melhores sinais: foi em Novembro de 2020
que foi assinado o Acordo de Glasgow. Mais de 120 organizações de todo o mundo
já assinaram este compromisso climático popular de assumir a criação de um
plano próprio para travar o colapso climático, um plano popular para garantir
que o aumento de temperatura fica abaixo dos 1,5ºC até 2100. É decididamente um
passo em frente, descolando da impotência institucional para tentar travar a
insanidade que engoliu o sistema em que vivemos.
ALTERAÇÕES
CLIMÁTICAS
Os movimentos pelo clima cansaram-se de negociações e
assinaram o Acordo de Glasgow
Depois de protestos para pressionar governos e Nações
Unidas, os movimentos pelo clima decidiram avançar com um plano de acção
próprio para evitar que o aquecimento global ultrapasse os 1,5 graus Celsius
até 2100. Mais de 80 organizações assinaram o Acordo de Glasgow, cuja principal
ferramenta é a desobediência civil.
Renata Monteiro
17 de Novembro de
2020, 15:03
No mesmo ano que
um movimento global pelo clima levou milhões às ruas, as emissões de gases com
efeito estufa, como o dióxido de carbono (CO2), atingiram máximos históricos.
Para as associações que lideram a luta pela justiça climática, a mensagem ficou
clara: “Não vamos depositar mais esperanças em governos e organizações
internacionais”, resume João Camargo, activista pela Climáximo e investigador
em alterações climáticas. “Nós próprios vamos criar planos que vão visar, no
mínimo, o corte de 50% das emissões até 2030.”
O Acordo de
Glasgow, que mais de 80 organizações não-governamentais, comunidades e movimentos
assinaram esta segunda-feira, 16 de Novembro, via Zoom, é o primeiro passo do
plano alternativo de quem está farto de anúncios de esforços “que não
funcionam” e que, “ainda para mais, não são cumpridos”. “Este poderoso
movimento pela justiça climática precisa de ferramentas novas e fortalecidas
para lidar com estas contradições fundamentais e para reverter a narrativa
global da impotência institucional, transformando-a em poder social que possa
trazer consigo uma mudança duradoura”, lê-se, no texto do acordo.
O primeiro
rascunho do Acordo de Glasgow foi apresentado durante um encontro da plataforma
By2020WeRiseUp, constituída maioritariamente por grupos pela justiça climática
na Europa, no início de Março, em Bruxelas. A “não-cooperação política e
económica” e “a desobediência civil não violenta e justificada, dirigida a
governos, empresas públicas e privadas e infra-estruturas” são as “principais
ferramentas” do novo acordo que deixa de fora negociações com os governos e as
Nações Unidas. “Não quer dizer que ignoremos que existem instituições e
obviamente que sabemos que se os nossos planos e as nossas acções forem fortes,
terão um eco nas instituições”, explica João Camargo, um dos activistas e
investigadores portugueses envolvidos no acordo à escala global.
Nos próximos três
meses, em colaboração com universidades, os activistas vão apresentar um
inventário dos principais emissores em cada região. “O objectivo é termos um
quadro bastante claro do que significa cortar 50% das emissões à escala global.
Uma percentagem não significa nada: se dissermos que é preciso fechar estas
fábricas ou mudar estas fábricas, tudo isto é muito mais palpável. Queremos
deixar de falar de abstracções.”
A partir desta
lista negra, que será pública, as organizações vão começar a construir “agendas
climáticas nacionais” alternativas para que o aquecimento global não ultrapasse
os 1,5 graus Celsius até 2100 — a mesma meta que o Acordo de Paris definiu, em
2015, mas que os países não estão a cumprir.
Ainda há
colectivos a juntarem-se ao acordo, que barra a entrada a partidos políticos,
empresas e igrejas. No acordo, explicam que “o processo de transformação
radical da sociedade necessário para travar o colapso climático” não poderá
apenas olhar para a ciência e para o corte de emissões, mas terá “em conta
muitos outros temas como justiça social, emprego, discriminações”. “Para
Portugal implica um corte acima dos 70% até 2030 (em relação a 2018). Não são
planos nada fáceis. Não temos nenhuma ilusão sobre isso”, conclui o activista.
tp.ocilbup@orietnom.ataner
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