domingo, 6 de setembro de 2020

Como lidar com ditadores // How to deal with dictators

 


OPINIÃO

Como lidar com ditadores

 

Como enfrentar os ditadores quando o líder da maior e mais poderosa democracia do mundo olha para o lado?

 

TERESA DE SOUSA

6 de Setembro de 2020, 7:45

https://www.publico.pt/2020/09/06/mundo/opiniao/lidar-ditadores-1930525

 

1. O que fazer quando o regime russo recorre sistematicamente ao envenenamento dos seus opositores – dentro e fora das fronteiras da Rússia? A resposta não é fácil. Nos últimos dias foi possível observar como as democracias têm dificuldade em encontrar uma resposta comum, simultaneamente eficaz e credível. Alexei Navalny, uma das caras mais emblemáticas da oposição a Vladimir Putin, encontra-se internado e a recuperar num hospital de Berlim, graças à pressão internacional que levou a Rússia a aceitar a sua transferência. Navalny, como outros antes dele, foi envenenado com um agente químico de fabrico exclusivamente militar – o novichok, fabricado pela União Soviética nos anos 70 e 80 – no aeroporto de Tomsky, na Sibéria Ocidental, quando se preparava para embarcar com destino a Moscovo, depois de uma acção de campanha contra a corrupção, o seu tema de eleição. O Kremlin nega qualquer responsabilidade. A Europa pede um inquérito rigoroso. A NATO também.

 

O desplante com que Putin desafia o Ocidente já fez do novichok um velho conhecido. O caso mais recente foi a tentativa de envenenamento com o mesmo agente químico de um antigo espião russo a viver no Reino Unido, Sergei Skipral, e da sua filha Yulia, em 2018. É longa a lista de opositores ao regime de Putin eliminados por envenenamento ou, pura e simplesmente, abatidos a tiro. Ana Politovskaya, jornalista da Novaya Gazeta que denunciou os crimes cometidos na Tchetchénia, sobreviveu a uma tentativa de envenenamento em 2004 e foi abatida a tiro à porta da sua casa de Moscovo, em 2006. No mesmo ano, Alexander Litvinenko, ex-agente do FSB (sucessor do KGB), que trabalhava para o MI6, foi envenenado em Londres por polónio. A sua agonia fez manchetes no mundo inteiro. Boris Nemtsov, antigo vice-primeiro-ministro de Boris Ieltsin e uma das figuras mais proeminentes da oposição a Putin, foi abatido a tiro numa ponte de Moscovo a 500 metros do Kremlin. Um dos seus consultores sobreviveu a duas tentativas de envenenamento em 2015 e dois anos depois. São os casos mais mediáticos. Haverá muitos mais. O Kremlin enjeitou sempre qualquer responsabilidade.

 

Em Tomsky, numa sessão pública, alguém perguntou a Navalny como explica ao facto de continuar vivo. Corria o boato de que seria uma “toupeira” do Kremlin. Segundo a descrição da Der Spiegel, o opositor sorriu: “Agora tenho de passar a justificar o facto de não ter sido assassinado?” Apontou para o pin que alguém na audiência usava ao peito e onde se lia “A Ponte Nemtsov”. “Se eles me matarem, criar-lhes-ei mais problemas, tal como aconteceu com Nemtsov – pins, T-shirts, manifestações em seu nome.” Ninguém na sala poderia imaginar que seriam as suas últimas horas antes de ficar em risco de vida.

 

2. Foi a própria Angela Merkel quem pressionou directamente Putin para autorizar a transferência do dissidente russo para Berlim. Foi ela quem anunciou, na quinta-feira, que Navalny tinha sido “inequivocamente” envenenado, classificando o acto de “tentativa de homicídio”. A chanceler intimou o Kremlin a apurar responsabilidades, exigindo um inquérito transparente. A NATO já fez a mesma exigência. Os líderes europeus excederam-se em palavras de condenação. A Comissão falou de mais sanções, embora acrescentando que primeiro é preciso apurar os factos. Josep Borrel, o chefe da diplomacia europeia, pediu a Putin que colaborasse numa investigação internacional.

 

O passado recente ensina-nos que, de um modo geral, as palavras de condenação e as decisões tomadas pelas instituições europeias não têm capacidade de dissuasão junto de Putin, que prossegue o seu comportamento criminoso e cínico. Foi o que fez novamente, ainda que as suas palavras tenham perdido toda a credibilidade. E teve, mais uma vez, a prestimosa ajuda de Donald Trump.

 

 

O Presidente americano voltou a comprovar a sua estranha amizade – ou cumplicidade – com o candidato a ditador russo, ao declarar que Washington vai abrir uma investigação, mas que não lhe parece que o perigo venha do seu amigo do Kremlin. Preferiu apontar o dedo a Pequim, como se fosse verosímil que o regime chinês decidisse envenenar um opositor de Putin na própria Rússia. “É interessante que toda a gente mencione sempre a Rússia, mas eu penso que, nesta altura, a China é provavelmente a nação sobre a qual devíamos estar a falar, muito mais do que a Rússia.” Foram estas as suas palavras. Está longe de ser a primeira vez que defende Putin publicamente, incluindo contra as suspeitas largamente confirmadas de intervenção russa na campanha presencial de 2016 (através de meio electrónicos), comprovada pelos serviços secretos americanos. A imprensa dos Estados Unidos lembrava ontem que o Presidente ainda não se pronunciou publicamente sobre informações dos serviços secretos segundo as quais a Rússia oferecia um prémio monetário aos talibãs por cada soldado americano abatido no Afeganistão. Para um país que tem por hábito venerar os seus militares, é ir talvez longe demais.

 

Está aqui o maior problema das democracias: como enfrentar os ditadores quando o líder da maior e mais poderosa democracia do mundo olha para o lado e age de acordo com uma lógica que não tem nada a ver com os valores e os interesses das democracias ocidentais? Quando o secretário-geral da NATO ou os governos europeus avisam o regime de Moscovo de que sofrerá consequências, o mais provável é que Putin se limite a sorrir. Enquanto se mantiver a distância política entre os dos lados do Atlântico, que não parou de aumentar desde que Trump foi eleito, a NATO vale de pouco aos seus olhos. A força da Aliança está na comunidade de valores entre as duas margens do Atlântico e na força militar dos EUA.

 

3. Depois, há as dificuldades da própria Europa para encontrar uma estratégia comum suficientemente credível para fazer a Rússia pensar duas vezes. A Alemanha teria sempre um papel decisivo. Em 2014, quando Obama estava na Casa Branca, a chanceler foi determinante para a aplicação de duras sanções económicas contra Moscovo na sequência da agressão à Ucrânia e da anexação da Crimeia. Até agora, a União Europeia sempre renovou essas sanções. Mas a ambiguidade alemã face à Rússia não desapareceu. Tem raízes históricas e traduz um interesse económico imediato. Foi um escândalo quando o chanceler social-democrata Gerhard Schroeder (1998-2005) alinhou com Putin na construção de um gasoduto ligando directamente o território russo à Alemanha para abastecê-la de gás natural produzido russo. Não houve consequências. Na altura, a Alemanha justificou o empreendimento alegando não querer ficar dependente do gasoduto que atravessava a Ucrânia e cuja torneira Putin mandava fechar de cada vez que havia em Kiev manifestações pró-europeias. Os Bálticos e a Polónia protestaram veementemente, sem qualquer resultado.

 

Nos últimos dias, aumentou significativamente a pressão, fora e dentro da Alemanha, para que o novo gasoduto seja suspenso. O politólogo alemão Klaus Segbers argumentava num artigo publicado no semanário alemão Die Zeit que já houve conversa suficiente com Putin. Deixou de fazer sentido. Escreve o jornal que, com a ocupação de partes da Geórgia e da Ucrânia, o caso do voo MH17 da Malasya Airlines, abatido sobre a Ucrânia, e os sucessivos assassínios de políticos da oposição, Moscovo provou não estar interessado em dialogar com o Ocidente. O próprio presidente da Comissão dos Negócios Estrangeiros do Bundestag e membro da CDU da chanceler, Norbert Rottgen, pediu o fim do Nord Stream II. Outros políticos sugeriram, pelo menos, uma moratória. A chanceler afastou essa hipótese. Mas, no geral, os analistas sublinham que a Europa tem poucos meios para fazer pressão sobre Putin, a não ser a solução “impossível” de deixar de comprar o seu gás.

 

O problema é que as democracias têm cada vez mais dificuldade em lidar com os ditadores, de resto em número crescente. A China pode ser o maior desafio estratégico que enfrentam. Não é o único. Deixar o campo aberto aos regimes autoritários não será o melhor caminho para conter o expansionismo de Pequim. O que fazer? A esperança só pode estar numa mudança de inquilino na Casa Branca.

 

tp.ocilbup@asuos.ed.aseret




Opinion

How to deal with dictators

 

How to confront dictators when the leader of the world's largest and most powerful democracy looks to the side?

 

TERESA DE SOUSA

September 6, 2020, 7:45

https://www.publico.pt/2020/09/06/mundo/opiniao/lidar-ditadores-1930525

 

1. What to do when the Russian regime systematically resorts to poisoning its opponents – inside and outside Russia's borders? The answer is not easy. In recent days it has been possible to see how difficult it is for democracies to find a common, both effective and credible response. Alexei Navalny, one of the most iconic faces of the opposition to Vladimir Putin, is hospitalized and recovering in a Berlin hospital, thanks to international pressure that has led Russia to accept his transfer. Navalny, like others before him, was poisoned with an exclusively military-made chemical agent – the Soviet-made novichok in the 1970s and 1980s – at Tomsky airport in Western Siberia as he prepared to embark for Moscow after campaigning against corruption, his theme of choice. The Kremlin denies any responsibility. Europe is asking for a rigorous inquiry. So is NATO.

 

The desplante with which Putin defies the West has already made novichok an old acquaintance. The most recent case was the attempted poisoning with the same chemical agent of a former Russian spy living in the UK, Sergei Skipral, and his daughter Yulia in 2018. There is a long list of opponents of putin's regime eliminated by poisoning or, quite simply, shot to death. Ana Politovskaya, a journalist for novaya gazeta who denounced the crimes committed in Chechnya, survived an attempted poisoning in 2004 and was shot dead outside her Moscow home in 2006. In the same year, Alexander Litvinenko, a former FSB agent (successor to the KGB), who worked for MI6, was poisoned in London by polonium. His agony made headlines all over the world. Boris Nemtsov, Boris Yeltsin's former deputy prime minister and one of putin's most prominent opposition figures, was shot to death on a Moscow bridge 500 metres from the Kremlin. One of his consultants survived two attempts at poisoning in 2015 and two years later. They're the most mediacases. There will be many more. The Kremlin has always claimed any responsibility.

 

In Tomsky, in a public session, someone asked Navalny how he explains why he's still alive. There was a rumor that i'd be a Kremlin mole. According to Der Spiegel's description, the opponent smiled: "Now I have to justify the fact that I was not murdered?" He pointed to the pin that someone in the audience wore to his chest and read "The Nemtsov Bridge." "If they kill me, I will create more problems for them, as happened with Nemtsov – pins, T-shirts, demonstrations on his behalf." No one in the room could have imagined that it would be their last hours before they were life-threatening.

 

2. It was Angela Merkel herself who directly pressed Putin to authorize the transfer of the Russian dissident to Berlin. It was she who announced on Thursday that Navalny had been "unequivocally" poisoned, calling the act an "attempted murder." The chancellor has called on the Kremlin to establish responsibility, demanding a transparent inquiry. NATO has already made the same demand. European leaders have exceeded themselves in words of condemnation. The Commission has talked about more sanctions, while adding that the facts must first be ascertained. Josep Borrel, the head of European diplomacy, called on Putin to cooperate in an international investigation.

 

The recent past teaches us that, in general, the words of condemnation and decisions taken by the European institutions do not have the capacity to desuade with Putin, who continues his criminal and cynical behaviour. That's what he did again, even though his words lost all credibility. And he had, once again, the prestigious help of Donald Trump.

 

 

The American President has again confirmed his strange friendship – or complicity – with the Russian dictator candidate, declaring that Washington will open an investigation, but that he does not think the danger comes from his kremlin friend. He preferred to point the finger at Beijing, as if it were beising that the Chinese regime decided to poison a Putin opponent in Russia itself. "It's interesting that everyone always mentions Russia, but I think that at this point, China is probably the nation we should be talking about, much more than Russia." These were his words. It is far from the first time he has publicly defended Putin, including against widely held suspicions of Russian intervention in the 2016 (electronic) face-to-face campaign, proven by Us intelligence. The United States press reported yesterday that the President has not yet spoken publicly about intelligence information that Russia was offering a prize money to the Taliban for every American soldier shot down in Afghanistan. For a country that has a habit of worshipping its military, it is perhaps too far.

 

Here is the biggest problem for democracies: how to confront dictators when the leader of the world's largest and most powerful democracy looks to the side and acts according to a logic that has nothing to do with the values and interests of Western democracies? When the SECRETARY-GENERAL of NATO or European governments warns the Moscow regime that it will suffer consequences, it is more likely that Putin will just smile. As long as the political distance between the sides of the Atlantic, which has not stopped increasing since Trump was elected, NATO is worth little to his eyes. The Alliance's strength lies in the community of values between the two shores of the Atlantic and in the U.S. military force.

 

3. Then there are Europe's own difficulties in finding a common strategy credible enough to make Russia think twice. Germany would always play a decisive role. In 2014, when Obama was in the White House, the chancellor was instrumental in imposing tough economic sanctions against Moscow following the aggression against Ukraine and the annexation of Crimea. So far, the European Union has always renewed these sanctions. But Germany's ambiguity about Russia has not disappeared. It has historical roots and translates an immediate economic interest. It was a scandal when Social Democratic Chancellor Gerhard Schroeder (1998-2005) aligned with Putin in building a pipeline directly linking Russian territory to Germany to supply it with Russian-produced natural gas. There were no consequences. At the time, Germany justified the venture by claiming not to want to be dependent on the pipeline that was crossing Ukraine and whose tap Putin had closed every time there were pro-European demonstrations in Kiev. The Baltics and Poland protested vehemently, with no results.

 

In recent days, pressure has increased significantly, both outside and within Germany, for the new pipeline to be suspended. German politico Klaus Segbers argued in an article published in the German weekly Die Zeit that there has been enough conversation with Putin. It didn't make sense anymore. The newspaper reports that, with parts of Georgia and Ukraine occupying parts of Georgia and Ukraine, the case of Malasya Airlines flight MH17, which was shot down over Ukraine, and the successive killings of opposition politicians, Moscow has proved not interested in dialogue with the West. The chairman of the Bundestag's Foreign Affairs Committee himself and member of the Chancellor's CDU, Norbert Rottgen, called for the end of Nord Stream II. Other politicians have suggested at least one moratorium. The chancellor pushed that hypothesis away. But overall, analysts stress that Europe has little means of pushing Putin, other than the "impossible" solution of failing to buy its gas.

 

The problem is that democracies are increasingly struggling to deal with dictators, and moreover in increasing numbers. China may be the biggest strategic challenge they face. You're not the only one. Leaving the countryside open to authoritarian regimes will not be the best way to contain Beijing's expansionism. What's to be done? Hope can only be in a change of tenant in the White House.

 

tp.ocilbup@asuos.ed.aseret


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