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António Costa na comissão que “honra” o quê?
Se António Costa avaliou e ponderou as críticas e o
mal-estar que a colagem da sua pessoa e, inevitavelmente, do seu cargo a Luís
Filipe Vieira causaria nos cidadãos, se reflectiu no custo ético desse apoio, e
se, ainda assim, decidiu avançar, só pode ser por insensibilidade ou arrogância
MANUEL CARVALHO
13 de Setembro de
2020, 21:47
https://www.publico.pt/2020/09/13/politica/editorial/antonio-costa-comissao-honra-1931457
Já muito se disse
e se escreveu sobre a participação de António Costa (e de outras figuras, como
o presidente da Câmara de Lisboa) na Comissão de Honra da candidatura de Luís
Filipe Vieira à liderança do Benfica. Já se disse que era uma imprevidência ou
uma irresponsabilidade. Já se disse que não faz sentido argumentar que essa
presença na lista tem de ser vista na estrita esfera individual, sem conexão
alguma com as altas funções políticas que representa como primeiro-ministro. Já
se disse que um chefe de Governo que pede recato aos seus ministros nas
declarações sobre candidatos presidenciais não pode ele próprio eximir-se ao
mesmo recato quando se associa a pessoas ou instituições contaminadas por
suspeitas judiciais ou outras. Já se disse que quem afirma que os membros do
seu gabinete têm de ter cuidado com o que dizem até na mesa do café não pode
agir sem esse cuidado quando honra personalidades com a biografia de Luís
Filipe Vieira.
Depois de tudo o
que se disse em jeito de protesto contra a associação entre António Costa e um
dirigente desportivo apontado como alegado beneficiário da fraude do BES ou de
estar envolvido em vários processos judiciais como arguido ou suspeito,
impõe-se a pergunta: o que leva António Costa a inscrever o seu nome numa
comissão que, pelo seu propósito, se destina a enaltecer alguém que é percebido
por muitos cidadãos como uma das faces do país minado pelo favor e pela
corrupção? Duas respostas são possíveis e nenhuma tranquilizadora. Ou António
Costa se deixou mover pela paixão clubística e não avaliou as consequências,
como tantas vezes tem acontecido com outros políticos e com outros clubes de
futebol; ou pensou em tudo racionalmente e ainda assim decidiu avançar em
confronto com o sentimento público e o clamor contra a corrupção que tem o
dever de interpretar e respeitar.
Quer numa, quer
noutra condição, há razões para preocupação e crítica. A primeira situação
seria entendível – todos erramos. A segunda, não. Porque se António Costa
avaliou e ponderou as críticas e o mal-estar que a colagem da sua pessoa e,
inevitavelmente, do seu cargo a Luís Filipe Vieira causaria nos cidadãos, se
reflectiu no custo ético desse apoio, e se, ainda assim, decidiu avançar, só
pode ser por insensibilidade ou arrogância. Para um líder que nos habituou à
racionalidade e a um apurado sentido estratégico, que recusou zonas cinzentas
no caso Sócrates, a honraria a Luís Filipe Vieira é um erro que só se mitiga
com uma decisão: a de sair desse pântano imediatamente. O país, ansioso com a
crise, não merece esta insensatez.
OPINIÃO
“Pois Luís Filipe Vieira é homem honrado”
O nosso primeiro-ministro António Costa, como eu adepto
do Benfica, ao aceitar integrar a Comissão de Honra de Luís Filipe Vieira à sua
recandidatura a presidente do Benfica, está a dizer-nos isso mesmo: que Luís
Filipe Vieira é, em seu entender, homem honrado.
RUI TAVARES
14 de Setembro de
2020, 0:01 actualizada às 10:07
https://www.publico.pt/2020/09/14/opiniao/opiniao/luis-filipe-vieira-homem-honrado-1931464
Calma,
concidadãos. Não venho aqui dizer se Luís Filipe Vieira é homem honrado — ou se
não o é. Nada direi do que não sei. Sei apenas que sobre ele impendem suspeitas
de ter tentado interferir com o curso da justiça; que dele se diz ter sido um
daqueles enormes devedores ao Banco Espírito Santo cujos incumprimentos estamos
todos a pagar agora. São casos de que a justiça dirá, não eu.
Sei outra coisa:
que quando escrevo, em título, que “Luís Filipe Vieira é homem honrado”, todos
aqueles de entre os leitores que não se riram esbugalharam os olhos de espanto.
E entre esses incluem-se muitos benfiquistas (como eu, aliás). O mesmo sucederia
se eu escrevesse “pois Jorge Nuno Pinto da Costa é homem honrado” ou “pois o
mundo do futebol é mundo de homens honrados” porque, a bem ou a mal, ninguém
consegue esticar a sua credulidade a tal ponto. E no entanto, o nosso
primeiro-ministro António Costa, como eu adepto do Benfica, ao aceitar integrar
a Comissão de Honra de Luís Filipe Vieira à sua recandidatura a presidente do
Benfica, está a dizer-nos isso mesmo: que Luís Filipe Vieira é, em seu
entender, homem honrado. E está a dizê-lo quando a pergunta sobre a honradez de
Luís Filipe Vieira está ainda — para ser generoso — em aberto e, se respondida
na negativa, arrisca-se a arrastar consigo quem tenha atravessado a sua honra
em nome da honradez de Luís Filipe Vieira. Ainda para mais quando se é primeiro-ministro,
chefe do poder executivo, numa altura em que é ao poder judicial que compete
saber o que se possa saber sobre este tema.
Há uma peça de
Shakespeare, Júlio César, que tenho estado a pilhar desavergonhadamente desde o
início desta crónica, na qual um discurso famoso — por ironia commumente
conhecido como o “Monólogo de António” — nos diz tudo o que há para saber sobre
estas coisas. A Marco António — o António do monólogo — é dada a possibilidade
de discursar no funeral de Júlio César, desde que não diga mal daqueles que o
mataram. António decide então fazer o contrário: dizer bem deles. “Brutus”, diz
ele, “é homem honrado”. Se Brutus justifica que foi preciso matar César, assim
deve ser, diz António (o deles), “pois Brutus é homem honrado”. E se Cássio, e
Casca, e todos os outros, estiveram com Brutus, António não tem nada a dizer,
“pois Brutus é homem honrado, e assim são eles todos, todos eles homens
honrados”. Tantas vezes repete António que eles são homens honrados que o seu
discurso tem o efeito contrário, acabando por virar a multidão contra aqueles
de quem ele veio falar bem.
Assim levam
descaminho estas coisas. António (o nosso, o Costa, o da República Portuguesa)
não monologou. Pelo contrário; foi mais lacónico que retórico, limitando-se a
dizer que a opção de fazer parte da Comissão de Honra de Luís Filipe Vieira não
tinha “rigorosamente nada que ver” com o cargo que ele ocupa, pressupondo-se
que tenha apenas que ver com o facto de ele ser adepto do Benfica (como eu,
como eu). O problema é que o nosso António se esqueceu daquilo que o António
(da Roma republicana) veio salientar no seu monólogo.
Emprestai-me a
vossa atenção. Uma das questões principais do Júlio César de Shakespeare está
na tensão entre República e amizade, lealdade e liberdade, ética e política,
racionalidade e sentimentos. A lição de Shakespeare em Júlio César não se
aplica tal qual ao caso atual. Como tantas vezes quando comparamos Antigo com o
Moderno há elementos que parecem inverter a sua polaridade. Mas, grosso modo,
podemos dizer que de um lado deste debate estão aqueles que fazem uso do chavão
“a ética republicana é a lei” — e nada mais. Se Luís Filipe Vieira é inocente
até prova em contrário, se toda a gente tem direito a ser adepto de um clube,
então sim, como diz António Costa, este assunto não tem nada a ver com
política.
Do outro lado
estão aqueles que não conseguem mais tapar o sol com uma peneira. Que estão
fartos das ligações entre política e futebol. Que não conseguem acreditar na
honradez dos “homens de futebol” a não ser quando se lembram que uomini d’onore
— homens honrados — era precisamente o que os mafiosos chamavam uns aos outros.
Que estão cansados de pagar as dívidas do Bando Espírito Santo e do Novo Bando
— ups, escapou-me a tecla, queria escrever Banco —, aquelas mesmas que Luís
Filipe Vieira não pagou. E que esperavam que o primeiro-ministro em particular,
pelo mal que todos esses assuntos têm feito à vida nacional, mantivesse uma
saudável reserva e não se esquecesse que nem à mesa de café deixa de ser
primeiro-ministro, como aliás aconselhou aos seus ministros.
Diz António, o
dos romanos, falando de homens públicos: “o mal que fazem sobrevive-lhes; o bem
é enterrado com eles”. A displicência de um Primeiro-ministro com temas destes
pode deitar a perder todo o bem que tenha feito durante anos, ainda para mais
quando uma das poucas qualidades que todos reconhecem no líder do maior partido
da oposição é, enquanto político, nunca se ter metido em futebóis.
Por coincidência,
os romanos trocavam de governantes nos Idos de Setembro. Que, por acaso,
calhavam a 13 desse mês, exatamente o dia em que escrevo esta crónica. Cuidado,
António Costa. Cuidado com os Idos de Setembro.
Historiador;
fundador do Livre
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