OPINIÃO
A regulação das rendas no setor de arrendamento privado
Deverá proceder-se à introdução de tetos máximos no caso
das novas rendas, em função de critérios como a localização, tamanho e idade
dos edifícios.
Sónia Alves
10 de Setembro de
2020, 0:30
No atual período
de crise epidemiológica, em que a covid-19 veio criar um estado de exceção que
deu ao governo novos poderes para intervir em diversas áreas da economia, ganha
relevância relançar o debate sobre o papel da regulação do mercado das rendas
no setor de arrendamento privado.
Num contexto de
aumento continuado dos preços da habitação e dos valores das rendas, este é, de
resto, um debate que precede a pandemia, e que, previsivelmente, será retomado
quando os sinais de recuperação do turismo se fizerem sentir ou, num epílogo
negativo, caso se agudizem os sinais da crise económica.
Porque a crise de
habitação acessível às classes média e baixa não é um fenómeno exclusivo das
cidades portuguesas (Lisboa, Porto, e também várias cidades médias e algumas
cidades algarvias de menor dimensão), mas é comparável com a que se tem
observado noutras cidades europeias, vale a pena olhar para esses contextos e
analisar qual tem sido a posição dos governos desses países ou cidades em
relação à regulação das rendas habitacionais e quais os efeitos dessas
políticas no mercado de habitação, e, em particular, no do arrendamento
privado.
Comece-se, pois,
por fazer uma distinção básica entre a chamada primeira geração do controlo das
rendas e as gerações que se lhe seguiram, sendo que o período temporal
associado às últimas variou substancialmente de país para país. A primeira
significou uma regulação rígida (congelamento nominal das rendas) adotada num
período de guerra e pós-guerra caraterizado por uma gritante crise habitacional
e económica. As segunda e terceira gerações de controlo das rendas foram mais
brandas e revelaram uma crescente sofisticação no modo da regulação do seu
aumento, procurando diminuir a pressão no mercado de arrendamento privado e
garantir uma maior estabilidade dos contratos para os inquilinos,
salvaguardando também um retorno aceitável para os senhorios.
De um modo geral,
verificou-se que os países que mantiveram uma regulação mais estável exibem
hoje um mercado de arrendamento privado de dimensão relativa superior e com um
espectro mais diversificado de inquilinos, como é o caso da Alemanha ou da
Áustria. Contudo, as decisões políticas de alienação de habitação social no
passado têm-se repercutido numa crescente desregulação e aumento dos valores
das rendas.
Num dos países
europeus com uma maior presença relativa do mercado de arrendamento,
equivalente a 40% do stock total de habitação – a Alemanha –, o Governo Federal
propôs a limitação dos aumentos de renda nos chamados “mercados de habitação
sobrecarregados”.
O Parlamento
Federal aprovou a medida em 2015 e os governos dos 16 estados federais ficaram
responsáveis por definir e aprovar uma tabela de referência para regular o
valor das rendas para os novos contratos de arrendamento, que deverá ser
implementada até ao final de 2020. Os critérios para o cálculo das rendas são definidos
por cada estado, tendo em conta fatores como o ano de construção do edifício, a
sua localização e características.
O governo da
cidade de Berlim, cidade onde 85% dos residentes vivem num alojamento
arrendado, decidiu avançar com o congelamento do valor das rendas por cinco
anos, impondo limites máximos às novas rendas baseados na idade e qualidade dos
edifícios/imóveis, e na sua localização e tamanho. No caso das rendas acima do
valor de referência (para a mesma localização, tipo e tamanho da habitação), os
inquilinos podem solicitar uma redução. O governo estima que existam, pelo
menos, 340 mil inquilinos com condições para se candidatarem a uma redução do
valor da renda, e que esta poderá ser num número significativo de casos
superior a 40%. Enquanto os economistas liberais descrevem esta proposta como
uma ideia radical, que se aventura a ter efeitos contraproducentes na qualidade
e quantidade do setor, o governo argumenta que esta é uma reação apropriada
para uma situação habitacional traumática.
Nos países ou
regiões onde o setor de arrendamento privado foi regulado de uma forma rígida
nos anos 1980, como a Inglaterra ou Portugal, tem-se observado uma tendência
para a desregulação e liberalização dos regimes de arrendamento.
A implementação
do Housing Act de 1988, que desregulou as rendas e reduziu a segurança de todos
os novos contratos a partir de 1989, na Inglaterra repercutiu-se numa expansão
do setor de arrendamento privado naquela região do Reino Unido, que aumentou de
9% do total do stock habitacional em 1991, para 16% em 2010 e 20% em 2017.
A significativa
expansão do setor de arrendamento privado na Inglaterra foi particularmente
evidente entre 2000 e 2006 quando os proprietários com imóveis sem encargos ou
outros ónus passaram a ter acesso a créditos hipotecários, com condições
favoráveis, para a compra de habitação para arrendamento (right to rent).
Contudo, esta possibilidade de financiamento, associada à expansão do mercado
internacional de capitais, levou a um aumento desmesurado dos valores de
habitação, dificultando o acesso ao mercado de compra de habitação, sobretudo
por parte dos jovens e famílias com menores rendimentos. Em áreas de grande
procura (por exemplo, Londres ou Cambridge), porque a renda é livremente fixada
pelas partes, os contratos são de curta de duração (de 6 meses a 1 ano) e
existe uma fácil cessação dos contratos (para conveniência do senhorio), tem-se
observado uma tendência inflacionista no valor das rendas, o que origina uma
sobrecarga nos encargos tanto das famílias como do estado central e local, que
suporta os subsídios à renda.
Gostaria de
terminar regressando ao caso português, para comentar a resposta do
primeiro-ministro António Costa, dada numa entrevista em que descreveu como
“muito sensível” a situação das rendas em Lisboa, relativamente à solução de
congelamento das rendas por cinco anos adotada por Berlim: “Já passámos por
esta experiência de congelar as rendas durante 40 anos, e é uma solução muito
má para a preservação e renovação da cidade.”
Em relação a esta
afirmação é importante distinguir o congelamento de rendas com valores muito
reduzidos (que, de resto, se mantêm ainda hoje em Portugal no caso dos
contratos vinculísticos celebrados antes de 1990, com inquilinos com idade
igual ou superior a 65 anos, deficiência com grau de incapacidade superior a
60% e/ou carência económica) da definição de tetos ao valor máximo no caso das
novas rendas em função da localização, idade e qualidade dos edifícios/imóveis.
O congelamento
das rendas baixas penaliza, efetivamente, senhorios e inquilinos, porque
desincentiva o investimento na requalificação dos imóveis e desencoraja a
mobilidade no mercado de habitação. Deve, por isso, implementar-se, quanto
antes, a atribuição de subsídios de apoio à renda no caso dos inquilinos com
provada carência económica, como, de resto, está previsto na lei. Mas,
simultaneamente, deverá proceder-se à introdução de tetos máximos no caso das
novas rendas, em função de critérios como a localização, tamanho e idade dos
edifícios/imóveis, com o objetivo de promover a convergência de valores entre
as rendas antigas e as recentes e um melhor equilíbrio entre os interesses dos
senhorios e dos inquilinos.
A autora escreve
segundo o novo acordo ortográfico
Investigadora do
Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa
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