segunda-feira, 11 de maio de 2020

Von der Leyen admite processo de infracção contra a Alemanha / Von der Leyen considers infringement proceedings after German court ruling


OPINIÃO
E se os juízes europeus ultrapassaram os tratados para construir a Europa?

Construir a Europa pela via da “integração furtiva” através de um activismo judicial ou tecnocrático não é hoje alternativa à decisão política democrática. Essa forma de construção europeia vai alimentar a contestação populista (e não populista).

JOSÉ PEDRO TEIXEIRA FERNANDES
11 de Maio de 2020, 15:10

1. A questão é provocatória e pode parecer absurda. Mas é a consequência lógica do acórdão de 5 de Maio de 2020 do Tribunal Constitucional Federal alemão. Aí foi directamente posta em causa a actuação do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), o qual foi duramente criticado por ter efectuado um julgamento considerado ultra vires — expressão latina que significa actuar para “além dos poderes”.

A ser assim, na prática, o referido julgamento do TJUE ultrapassou a lei, neste caso os Tratados da União Europeia. É necessário lembrar que no seu acórdão, os juízes do Tribunal Constitucional Federal alemão repudiaram as conclusões do TJUE de 11 de Dezembro de 2018. Este último tribunal, num processo de reenvio prejudicial, tinha considerado que a actuação do BCE estava dentro das competências que o Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TJUE) conferiam à autoridade monetária europeia. Por isso, a decisão do Tribunal Constitucional Federal alemão caiu como uma “bomba” no TJUE.

Num invulgar comunicado de imprensa (nº 58/20) publicado a 8 de Maio de 2020, pode ler-se o seguinte: “Os serviços da Instituição nunca comentam uma decisão de um órgão jurisdicional nacional. De uma maneira geral, cabe recordar que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, um acórdão proferido a título prejudicial por este Tribunal vincula o juiz nacional relativamente à solução do litígio no processo principal.”

2. Este conflito, que coloca tribunal contra tribunal, ao mais alto nível jurisdicional, é provavelmente uma surpresa para a generalidade dos cidadãos europeus. Todavia, a questão mais profunda e que está subjacente a essa conflitualidade é quase tão antiga quanto a própria União Europeia.

A diferença fundamental é que a discussão, até agora, se fazia em circuito fechado, quase só nos meios jurídicos, sendo um assunto que não era objecto de debate e escrutínio da opinião pública. Era também encerrada na opacidade de uma conveniente terminologia jurídico-tecnocrática, para afastar o cidadão de tentações de se imiscuir na discussão desse assunto.

Mas qual é, na sua essência, o problema? O princípio da primazia, ou do primado do direito da União Europeia sobre o direito dos Estados-membros, é uma boa forma de explicar o problema.

Se estivesse inscrito num artigo dos Tratados de uma forma clara e precisa não levantaria qualquer problema de maior. Essa era a solução do Tratado Constitucional Europeu (a chamada Constituição Europeia). Continha a seguinte disposição no artigo I-6º: “A Constituição e o direito adoptado pelas instituições da União, no exercício das competências que lhe são atribuídas, têm primazia sobre o direito dos Estados-membros.” Qualquer cidadão mediamente culto entenderia, assim, o seu significado.

3. Mas o Tratado Constitucional Europeu não entrou em vigor, pois foi rejeitado em 2005 em referendo, pela França e pela Holanda, sendo posteriormente abandonado. E essa disposição jurídica não foi colocada no Tratado de Lisboa que lhe sucedeu e hoje está em vigor.

Para além disso — e esse é o aspecto mais importante aqui — nunca existiu esta formulação, ou outra parecida, num artigo(s) de tratados anteriores. Aqui começa o grande hiato de percepção sobre este assunto entre os meios jurídicos e a opinião pública. Aquilo que o não-jurista, ou seja mais 99% da população europeia, provavelmente pensa é que, como não está escrito nos Tratados, não existe um fundamento legal para a primazia do direito da União Europeia sobre o direito dos Estados-membros. Esse é o cerne do problema.

Na realidade o que os juízes do TJUE têm feito desde os anos 1960 são interpretações dos Tratados (dos antigos e dos actuais), que levam, na prática, a um resultado idêntico. Quer dizer: apesar de nem os Tratados das Comunidades Europeias, nem os os atuais Tratados da União Europeia, nunca terem tido esse princípio inscrito, os juízes europeus criaram uma tese jurisprudencial  — o caso clássico fundador dessa tese é o acórdão Flaminio Costa versus Enel de 15 de Julho de 1964 — onde afirmam a supremacia, ou primado na linguagem jurídica mais usual, das normas jurídicas europeias sobre as normas nacionais. É a isto que se refere o citado comunicado de imprensa nº 58/20 do TJUE, em reacção ao acórdão do Tribunal Constitucional alemão de 5 de Maio.

4. Para além de uma discussão estritamente legal sobre a tese jurisprudencial referida, qualquer cidadão europeu pode colocar esta questão: independentemente dos seus méritos jurídicos, a “solução dos juízes” europeus de considerar que dos Tratados se pode extrair o princípio do primado — mesmo sem estar lá expressamente inscrito — tem o apoio o democrático da população e da generalidade dos Estados-membros da União Europeia?

Se tem, por que razão com tantos tratados já feitos após os iniciais (Tratados de Maastricht, de Amesterdão, de Nice, e agora de Lisboa) nunca foi lá inscrito, de forma clara e inequívoca, num artigo dos tratados? E em particular, por que razão o actual Tratado de Lisboa — que aproveitou mais de 90% do texto da falhada Constituição Europeia — deixou cair esse artigo sobre a primazia do direito da União?

Percebe-se bem como a questão é extraordinariamente incómoda e tem sido evitada. Mas esse é um mérito que o acórdão do Tribunal Constitucional Federal alemão de 5 de Maio tem. Projecta a discussão também para a opinião pública europeia, num assunto que, pela sua grande importância, sempre deveria ter existido um grande debate público que permitisse aos cidadãos europeus perceberem — e se identificarem, ou então criticarem — a forma como a Europa tem sido construída.

5. Tal como o Tribunal Constitucional alemão, também o TJUE é um tribunal político no sentido em que muitos dos casos sobre os quais se pronuncia não são puramente jurídicos. Além do mais, o timing das decisões judiciais também nem sempre é um acaso. No caso do TJUE, o histórico das decisões mostra como os seus juízes não quiseram ser apenas “a boca que pronuncia as sentenças da lei”. Esse era o papel que lhes estava atribuído por Montesquieu no “Espírito das Leis” (1748) e na teoria clássica da separação dos poderes, na génese do constitucionalismo modernos. Ambicionaram mais e foram agentes activos da construção europeia, não meros intérpretes passivos desta.

Podemos ver aí muitas virtudes. Certamente os juízes do TJUE tiveram, ao longo do tempo, um papel importante na construção das bases jurídicas da integração europeia. Esse papel, se tem uma faceta inquestionavelmente meritória, tem outra problemática, que até agora não era discutida, nem era escrutinada pela opinião pública europeia. Não levará esse activismo judicial do TJUE, tipicamente impregnado de ideais europeístas-federalistas, a um quebrar fronteiras da separação dos poderes, entre o jurídico e o político?

Por outras palavras, das suas interpretações (muito) extensivas não resultam, na prática, alargamentos das competências da União Europeia e das suas instituições, que, por princípio só poderiam (e deveriam) ser feitas por alterações dos Tratados? Levando mais longe a dúvida surge a interrogação provocatória inicial: não terão os juízes europeus ultrapassado os Tratados para construir a Europa? O problema não é apenas teórico, como mostra o caso do acórdão do Tribunal Constitucional Federal alemão.

Está no cerne do actual conflito que colocou tribunal contra tribunal, ao mais alto nível jurisdicional. Neste conflito, e numa linguagem que lembra o cisma da Cristandade, há duas jurisprudências que se “excomungam” entre si, cada uma invocando valores máximos e irrenunciáveis sobre a outra. 

6. Vale a pena aqui lembrar o que nas discussões teóricas sobre a União Europeia se chama a “integração às escondidas” (integration by stealth). Se aceitarmos a tese do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha terá sido assim que o BCE ganhou competência para comprar dívida publica ultrapassando nomeadamente, o teor do artigo 123º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia. Há muitos outros casos onde essa crítica é feita à União Europeia, como por exemplo, em matéria de investimento directo estrangeiro. (Ver Sophie Meunier, “Integration by Stealth: How the European Union Gained Competence over Foreign Direct Investment”,  European University Institute, Working Paper RSCAS 2014/66). 

Embora a opinião pública europeia talvez só agora tenha descoberto o problema — e com grande surpresa —, já há muito tempo que esta forma de integração decorre. (Ver, por exemplo, Eric Stein “Lawyers, Judges, and the Making of a Transnational Constitution” in The American Journal of International Law, v. 75, n.º 1, 1981, pp. 1-27.). Mas, em termos mais políticos democráticos, é legítima esta forma de construir a Europa na qual o TJUE tem tido um papel importante ao validá-la e impulsioná-la com a sua jurisprudência? 

Muitos serão tentados a pensar que sim, como os fins são bons — mais Europa, mais ajuda do BCE aos Estados-membros em dificuldades —, os meios estão justificados. Todavia, de forma consciente ou inconsciente, estão a pensar à Maquiavel, , que já no século XVI aconselhava assim quem governa: “faça, pois um príncipe por vencer e por manter o seu Estado e os meios serão sempre julgados honrosos e de todos louvados” (ver “O Príncipe”, cap. XVIII). Mas esse é o princípio do cinismo político e seria também a máxima ironia se este prevalecesse numa União Europeia que se quer afirmar pelos valores contra a realpolitik.

7. É curioso notar como eurocépticos e certos federalistas partilham um gosto em comum recorrendo a hipérboles catastróficas sobre a União Europeia. Os primeiros celebram nesta altura a decisão do Tribunal Constitucional alemão como um sinal da desagregação da União Europeia e o fim da “opressão sobre os Estados-Nação”, esperando que outros tribunais nacionais sigam o exemplo.

Quanto aos segundos, agitam o fantasma da ameaça existencial à União Europeia para alarmar os cidadãos e políticos europeístas. (Na realidade, pretendem mais preservar o seu programa de “integração às escondidas” durante demasiado tempo não escrutinado nem contestado.) Urge serenidade e uma discussão séria. Como dizia Robert Schuman a 9 de Maio de 1950: “A Europa não se fará de uma só vez, nem de acordo com um plano único”. O activismo jurídico federalizante do TJU fez sentido no contexto histórico-político inicial das Comunidades, onde tudo era novo. Mas a criação de uma Europa tecnocrática e despolitizada foi também uma anormalidade histórica em democracias liberais, só compreensível e aceitável pelas circunstâncias do imediato pós-guerra.

Em 2020, já não estamos nos primórdios da integração europeia, nem no contexto político do pós-guerra. Estamos numa fase de integração muito mais avançada — uma união económica e monetária — a qual implica um modelo de integração necessariamente mais politizado (e mais contestado). Se as instituições da União não têm competências em certa área e necessitam delas — como parece ser o caso do BCE quanto aos programas de compra de dívida pública —, a via deverá ser a alteração dos tratados feita pelos políticos mandatados para o efeito.

O acórdão de 5 de Maio de 2020 do Tribunal Constitucional Federal alemão torna inevitável essa discussão pública. Construir a Europa pela via da “integração furtiva”, através de um activismo judicial ou tecnocrático, não é hoje mais alternativa à decisão política democrática. Para além de outros problemas jurídico-políticos sérios que levanta, essa forma de construção europeia vai alimentar a contestação populista (e não populista). É isso que hoje estamos a sentir no meio de uma crise de transformação e politização da União. 

Investigador do IPRI-NOVA - Universidade NOVA de Lisboa

EUROPA
Von der Leyen admite processo de infracção contra a Alemanha

Presidente da Comissão Europeia garante a eurodeputado alemão que está a “levar muito a sério” a resposta à decisão do Tribunal Constitucional alemão que contesta o programa de compra de dívida do BCE.

Ana Brito 10 de Maio de 2020, 17:06

Presidente da comissão diz que Tribunal de Justiça Europeu "tem a última palavra" sobre a lei europeia POOL NEW

Depois de ter assinalado no Dia da Europa que a solidariedade entre Estados é a única resposta possível aos efeitos do novo coronavírus, mas que esta “não é um dado adquirido e exige esforço e compromisso de todos”, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, parece querer demonstrar que não aceita excepções nem desvios neste caminho.

Numa resposta enviada ao eurodeputado alemão do grupo “Os Verdes”, Sven Giegold, a líder do executivo comunitário assegurou que está a “levar muito a sério” o incidente criado pelo Tribunal Constitucional alemão, que contestou o programa de compra de activos do Banco Central Europeu (BCE), onde se inclui um pacote de 750 mil milhões de euros de combate à crise provocada pela pandemia.


“É uma decisão que levanta questões que tocam no âmago da soberania europeia”, sublinhou a presidente da Comissão, numa resposta que, segundo Sven Giegold, lhe chegou “num tempo recorde de apenas duas horas, no Dia da Europa”.

A Comissão está neste momento “a analisar em detalhe a decisão de mais de 100 páginas do Tribunal Constitucional alemão” e a considerar, com base nas conclusões que retirar, “os próximos passos” a seguir, “incluindo procedimentos por infracção”, afirmou Von der Leyen, em resposta ao eurodeputado alemão, que pedia precisamente a abertura de um expediente por infracção contra a Alemanha.

A decisão dos juízes alemães “suscita questões que são importantes não apenas para a política monetária da União, mas também para o Estado de direito na Europa”, salientou Ursula von der Leyen. “Posso garantir-lhe: a política monetária da União é uma questão de competência exclusiva [do BCE]”, respondeu a presidente da comissão a Giegold.

Lembrando que “a lei comunitária tem precedência sobre a lei nacional e as decisões do Tribunal de Justiça Europeu são vinculativas para os tribunais nacionais”, Ursula von der Leyen frisou que é à entidade sediada no Luxemburgo que cabe sempre “a última palavra” no que toca à lei europeia.

Na sexta-feira, o Tribunal de Justiça Europeu já tinha vindo a público manifestar o seu descontentamento com a sentença adoptada pelo Tribunal Constitucional alemão, lembrando que é ele o único órgão que pode avaliar se as decisões do BCE estão ou não conformes com as leis europeias e que as suas decisões se sobrepõem às dos tribunais nacionais.

“Em geral, para garantir que a lei da União Europeia é aplicada de forma uniforme, apenas o Tribunal de Justiça Europeu tem a jurisdição para julgar se um acto de uma instituição da UE é contrário à legislação da UE”, escreveu o tribunal em comunicado.

BCE “irredutível”
Von der Leyen reforçou esta ideia e sublinhou ainda que “a União Europeia é uma comunidade de valores e de direito”. Essa comunidade deve ser “apoiada e defendida” em quaisquer circunstâncias, “é isso que nos mantém unidos”.


No início da semana passada, os juízes do Tribunal Constitucional alemão emitiram uma decisão sobre os programas de recompra de activos iniciados pelo anterior presidente do BCE, Mario Draghi, em que defendem que a autoridade monetária excedeu as suas competências e desrespeitou o princípio da proporcionalidade.

O Tribunal alemão dá um prazo de três meses ao BCE para demonstrar que as suas decisões não foram além do previsto nos tratados europeus, caso contrário o banco central alemão (Bundesbank) deixará de participar no programa de recompra de activos que foi aprovado para combater os efeitos da pandemia.

Questionada sobre a decisão do Constitucional alemão, a actual líder do BCE, Christine Lagarde, garantiu num seminário online organizado pela Bloomberg que a instituição está mais determinada do que nunca em cumprir o seu mandato.

“Somos uma instituição independente, que responde ao Parlamento Europeu e que age de acordo com o seu mandato. Vamos continuar a fazer tudo o que for preciso para cumprir esse mandato. Irredutíveis, vamos continuar a fazer isso”, afirmou Lagarde.

Von der Leyen considers infringement proceedings after German court ruling

Germany’s Constitutional Court last week challenged the authority of the EU’s top court.

By SAIM SAEED 5/10/20, 3:19 PM CET Updated 5/10/20, 9:50 PM CET
The European Commission is considering possible infringement proceedings against Germany after a ruling from the country's Constitutional Court challenged the authority of the EU's top court, Ursula von der Leyen said Sunday.

“We are now analysing the ruling of the German Constitutional Court in detail. And we will look into possible next steps, which may include the option of infringement proceedings,” Commission President von der Leyen, a former German minister, said in a statement.

On Tuesday, a ruling from Germany's Constitutional Court challenged the authority of the Court of Justice of the EU, whose upper court is informally known as the European Court of Justice (ECJ), and the EU in general.

The German court ruled that the European Central Bank's 2015 policy — approved by the Luxembourg court in 2018 — to buy bonds as part of its quantitative easing stimulus package “was obviously not covered” by the ECB’s mandate.

Von der Leyen said that “the Union’s monetary policy is a matter of exclusive competence; that EU law has primacy over national law and that rulings of the European Court of Justice are binding on all national courts.”

“The final word on EU law is always spoken in Luxembourg. Nowhere else,” she added.

Commission Vice President Věra Jourová also said Sunday in an interview published in the Frankfurter Allgemeine Sonntagszeitung that Brussels is deciding on "possible steps" it can take to respond to the German ruling.

She added that "our lawyers are also looking at it very closely at the moment before we decide on possible steps to take. But it should be clear to everyone: there is the primacy of EU law legally in our union. Judgements of the ECJ are binding on all national courts."

Jourová also criticized Hungarian Prime Minister Viktor Orbán's emergency measures to counter the coronavirus crisis, saying the leader is readying himself for "unlimited power." In March, Hungary's parliament voted to allow Orbán to rule by decree indefinitely.

Responding to Jourová's comments on Hungary, government spokesperson Zoltan Kovacs said they were "unbecoming of a commissioner," and said she should settle any complaint via infringement proceedings.

This article has been updated with a statement from Ursula von der Leyen.

Authors:
Saim Saeed

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