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A grande crise da globalização
José Pedro Teixeira Fernandes
Praticamente tudo que se antecipava para o ano 2020 foi
posto em causa. O impacto negativo na economia será profundo, afectando, em
graus variáveis, o rendimento e o emprego e terá inevitáveis repercussões
políticas.
2 de Maio de
2020, 13:54
1. Antecipar o
mundo após a pandemia da covid-19 é um exercício tão estimulante quanto
falível. A capacidade de antecipação das tendências e dos acontecimentos
relevantes é das mais importantes na vida pessoal, empresarial e política. Em
qualquer uma dessas esferas da vida humana muito do que se faz, ou do que
eventualmente se deixa de efectuar, está ligado às expectativas, ou seja, à
maneira como concebemos o futuro em termos das necessidades que vamos ter, ou
das oportunidades que irão surgir. Numa pequena economia aberta como a
portuguesa, fortemente interligada com a Europa e o mundo, grande parte do que
vier a acontecer serão repercussões de tendências e de acontecimentos europeus,
e, sobretudo, globais.
Assim, uma das
facetas mais importantes de qualquer análise prospectiva passa por uma
(tentativa) da antecipação de tendências e acontecimentos ao nível planetário.
As incógnitas nesta altura são imensas. Iremos ter uma nova ordem mundial, seja
o que for que isso signifique? Iremos assistir a uma expansão da governação
global, ou esta ficará ainda mais fragilizada? Irão predominar a competição e o
conflito, ou irá abrir-se uma nova era de colaboração e de partilha a nível
global?
2. Antes de
olharmos para o futuro, vejamos primeiro o passado recente. Em duas décadas do
século XXI é já a terceira vez que sentimos estar perante um ponto de viragem
crítico do rumo dos acontecimentos a nível global. O primeiro, foram os
atentados terroristas de 11 de Setembro de 2001 nos EUA. O segundo, a falência
do banco norte-americano de investimento Lehman Brothers em 2008. Ambos foram
indubitavelmente acontecimentos marcantes. Alteram, de uma forma ou de outra,
as tendências anteriores levando o mundo para um rumo diferente daquele que
teria seguido se não tivessem ocorrido.
Antes de
tentarmos discernir como será o mundo dos anos 2020, é útil e necessário
olharmos para as tendências que se desenhavam antes dapandemia da covid-19. Uma
tendência maior da economia política global anterior era a crescente rivalidade
entre os EUA e China
Quanto ao
primeiro, o 11 de Setembro, levou a maior potência global, os EUA, a
envolver-se numa “guerra contra o terror”, com múltiplos episódios e uma grande
canalização de recursos humanos, financeiros e materiais para esse efeito. Por
sua vez o segundo, a falência do Lehman Brothers em 2008, desencadeou uma grave
crise financeira e económica internacional ligada originalmente à especulação
nos mercados imobiliário e financeiro dos EUA, a qual perdurou sob várias
formas e graus de intensidade até 2015. Afectou seriamente a economia
norte-americana num primeiro momento e, mais tarde, as economias europeias, em
particular as da Zona Euro. Expôs cruamente as fragilidades europeias, em
particular nos países do Sul da Europa.
3. Em 2020
estamos no início de um terceiro ponto de viragem. A causa directa é o
extraordinário impacto da pandemia da covid-19 nas actuais formas de vida
humana e, sobretudo, numa economia globalizada e fortemente interligada. Um
vírus desconhecido em seres humanos foi detectado em finais de 2019 na cidade
chinesa de Wuhan, na China. Rapidamente se propagou para o resto do mundo nos
primeiros meses de 2020, provocando uma desarticulação das sociedades pelo medo
do contágio — o vírus pode ser letal para o ser humano —, e a semiparalisação
da actividade económica.
Praticamente tudo
que se antecipava para o ano 2020 foi posto em causa. Se compararmos as
previsões económicas das organizações internacionais efectuadas nos meses
finais de 2019 com as efectuadas no mês Abril de 2020 — reflectindo já o
impacto previsível da pandemia da covid-19 —, a alteração é radical sem
qualquer exagero de linguagem.
A Organização
Mundial do Comércio (OMC) antecipa agora uma quebra do comércio mundial situada
entre os 13% e os 32%. Por sua vez, o Fundo Monetário (FMI) projecta nesta
altura para 2020 uma quebra do produto mundial de -3%. Resulta daqui que, mesmo
nos cenários mais optimistas, existirá um profundo impacto negativo na
economia, afectando, em graus variáveis, o rendimento e o emprego. Claro que um
impacto económico e social desta magnitude terá inevitáveis repercussões
políticas profundas.
Qualquer
tentativa de antecipação do mundo em devir assente numa separação da esfera da
economia da esfera da política é uma divisão analítica artificial. A realidade
irá rapidamente mostrar os seus equívocos e limites. No mundo real, em
particular em circunstâncias tão extraordinárias como estas, a economia é
sempre economia política.
4. O facto de
estamos num ponto de viragem não significa que irá ocorrer um corte
generalizado com as tendências anteriores. Pelo contrário, é muito provável que
algumas das tendências que já se desenhavam nos últimos anos antes da pandemia,
sejam elas tecnológicas, económicas ou políticas, surjam, agora, com ainda
maior intensidade.
Assim, antes de
tentarmos discernir, por antecipação, como será o mundo dos anos 2020, é útil e
necessário olharmos para as tendências que se desenhavam anteriormente à
pandemia da covid-19. Uma tendência maior da economia política global anterior
era a crescente rivalidade entre os EUA e China.
À primeira vista, a chamada “guerra comercial”
desencadeada em 2018 tinha abrandado em inícios de 2020 devido a um acordo
comercial (limitado) sino-americano. Mas foi, tudo indica, uma trégua por
conveniência de ambas as partes. Esse conflito, ainda que centrado no comércio,
mostrava uma nítida e crescente rivalidade americano-chinesa pela hegemonia
global. Mostrava também como o comércio internacional não é apenas a fonte de
riqueza e de bem-estar que uma visão puramente económica sugere. Na realidade,
é também instrumental para os objectivos mais vastos de poder global. Em termos
prospectivos, nada indica por isso que a rivalidade
comercial-económico-política entre os EUA e a China vá dar um lugar a uma nova
era de globalização cooperativa entre ambos.
As situações mais
críticas poderão ocorrer com as economias e as empresas que se habituaram a
depender em sectores estratégicos de mercados abertos e das cadeias de
abastecimento globais que levam até à China
5. Extrapolando o
pensamento do grande estratega prussiano do século XIX, Carl von Clausewitz,
para os anos 2020, é bem provável que a economia, o comércio e a tecnologia, se
transformem, cada vez mais, em formas de «continuação da guerra por outros
meios». Há sinais claros dessa possibilidade ocorrer.
A disputa pela
supremacia na tecnologia 5G — na qual a China, através da Huawei, se tenta
posicionar como dominante —, não foi interrompida pela covid-19. Pelo
contrário, também aqui estamos a assistir a uma aceleração das tendências
anteriores, as quais estão a colocar numa situação difícil muitos países e
empresas que imaginavam um mundo onde poderiam dar-se bem com ambos (China e
EUA), separando os negócios e o económico, do político-militar e da segurança.
Mas o duplo uso
da tecnologia de comunicações móveis, empresarial e militar, mostra a ubiquidade
da competição tecnológico-empresarial. O comércio e a tecnologia são
componentes cruciais de uma estratégia de poder de uma grande potência em
ascensão (a China), alicerçada na inovação tecnológica e na abertura dos
mercados externos, mantendo um controlo estatal autoritário sobre a sua
economia e sociedade.
Face à oposição
dos EUA à crescente influência da China em muitos dos seus aliados
tradicionais, o mundo após a covid-19 será difícil e obrigará a escolhas
delicadas. As situações mais críticas poderão ocorrer com as economias e as
empresas que se habituaram a depender em sectores estratégicos de mercados
abertos e das cadeias de abastecimento globais que levam até à China. Ao mesmo
tempo, as organizações internacionais e a governação global enfrentarão,
também, um mundo mais complexo e pontuado de obstáculos embora não
necessariamente intransponíveis.
6. Nos finais do
século XX emergiu uma governação global ligada à necessidade de soluções para
problemas que ultrapassam as capacidades de resposta dos Estados soberanos. Não
se trata de um Governo mundial feito à semelhança de um Governo estatal,
organizado na lógica de um poder soberano sobre um território e população.
Trata-se, antes, de um conjunto complexo, heterogéneo e difuso de instituições
e de mecanismos.
Envolve
organizações internacionais como as Nações Unidas e as suas diversas agências e
programas; inclui o FMI, o Banco Mundial e a OMC, especialmente na governação
económico-financeira-comercial. Envolve ainda organizações não-governamentais
(ONG) como a Greenpeace, o World Wide Fund For Nature, a Amnistia
Internacional, entre muitas outras, as quais são especialmente activas em
matéria de ambiente e direitos humanos. As maiores empresas multinacionais
associam-se também a esses mecanismos ou fóruns, tendo o seu espaço mais
visível no Fórum Económico Mundial de Davos. E há ainda o G20, um fórum
intergovernamental como origem em finais dos anos 1990 e nas crises financeiras
dessa época. Aí juntam-se anualmente as 19 maiores economias mundiais e a União
Europeia.
Mas será o mundo
pós-covid 19 o grande momento cooperativo de afirmação da governação global,
como muitos têm antecipado?
7. “As notícias
da minha morte são exageradas”, disse Mark Twain em finais do século XIX,
quando um jornalista o questionou sobre os rumores que corriam de que estaria
gravemente doente e a morrer. A frase, tenha ou não sido proferida exactamente
assim, mostra como anúncios prematuros — e ideias não sustentadas pela
realidade — se podem facilmente propagar, parecendo até ser sólidas.
A pandemia da
covid-19 mostrou, mais uma vez, como as “notícias da morte do Estado soberano”,
anunciadas, desde os anos 1990, por liberais radicais e outros entusiastas da
governação global, foram prematuras. Na realidade, com o Estado soberano “bem
vivo”, a governação global vai enfrentar duas tendências contraditórias que não
lhe abrem perspectivas de fácil afirmação.
A primeira está
ligada aos problemas planetários que naturalmente a impulsionam: a grave a
crise ambiental que teve um crescendo de atenção nos últimos anos e agora a
pandemia da covid-19, também ela global. Ambas as crises afectam toda a
humanidade, embora em graus e sob formas variáveis, beneficiando de uma
resposta global e coordenada.
Mas a segunda
tendência é desfavorável à governação global. Resulta precisamente do regresso
do Estado como interventor na economia e sociedade, usando o seu poder de
soberania. É que a par do regresso do Estado é provável ocorrer um reemergir do
nacionalismo económico (e político), tendência, aliás, já verificável nos anos
anteriores. Não são boas notícias para nem para a governação global, nem para
os mercados abertos. O cosmopolitismo globalista e o nacionalismo soberanista
sempre conflituaram entre si. Vão voltar a uma acérrima competição, sendo
incerto qual das duas tendências acabará por se impor nos anos 2020.
8. É muito
provável que os próximos anos sejam marcados por uma grande crise da
globalização. O impacto extraordinariamente negativo que a pandemia da covid-19
está a ter na economia e no comércio sugerem isso. Fundamentalmente, podemos
ter aqui dois caminhos de saída.
Um primeiro onde
é ultrapassada recriando um mundo aberto, no qual os desequilíbrios económicos,
sociais e ambientais que a globalização anteriormente gerou serão corrigidos ou
atenuados. Prevalecerão lógicas cooperativas entre Estados que irão reforçar o
papel das organizações internacionais e de uma governação global. A confiança
nas virtudes da globalização será então restaurada.
Mas poderá ser
seguido um outro caminho — seja por opção deliberada, ou por uma conjugação
negativa de circunstâncias —, que é o do acentuar das tendências de
desglobalização anteriores. Aí as organizações internacionais e a governação
global serão contornadas pelas grandes potências mundiais.
Não se pode
excluir a possibilidade de o ambiente ser um dano colateral da queda abrupta
dos preços do petróleo nos mercados mundiais — outro acontecimento com
consequências geoeconómicas e geopolíticas difíceis de antecipar na sua
plenitude —, que torne economicamente injustificáveis os investimentos em
energia mais ecológica
Esse será um
caminho que levará também, de uma forma ou de outra, a uma desglobalização
entendida como diminuição da interdependência e da integração planetária. Irá
seguramente afectar o comércio internacional e serão encurtadas as cadeias de
produção, distribuição e abastecimento. Como deixou claro o economista holandês
Peter A. G. van Bergeijk, em particular em On the brink of deglobalisation...
again (2018), a experiência do passado mostra-nos que não há desglobalização
económica sem desglobalização política. Ao contrário do que ocorreu nos anos
1930, as maiores pressões para uma desglobalização têm agora origem nas
democracias ocidentais e são oriundas das chamadas contestações populistas, à
direita ou à esquerda.
9. A União
Europeia terá um papel relevante a desempenhar no mundo pós covid-19, mas a
capacidade de influenciar decisivamente o rumo dos acontecimentos globais vai
estar nas mãos dos governos dos EUA e da China (e na forma como interagirem
entre si).
A questão
ambiental, na qual a União Europeia investiu muito, mostra inequivocamente essa
dura realidade. Nos últimos anos, o ambiente estava a ocupar, cada vez mais, a
agenda política global. Em termos optimistas, poderá agora ter um novo impulso
ligado às políticas públicas de recuperação da economia e do emprego.
Mas não se pode
excluir a possibilidade de o ambiente ser um dano colateral da queda abrupta
dos preços do petróleo nos mercados mundiais — outro acontecimento com
consequências geoeconómicas e geopolíticas difíceis de antecipar na sua
plenitude —, que torne economicamente injustificáveis os investimentos em
energia mais ecológica. E poderá ser novamente vítima da competição e
rivalidade sino-americana, pois estas duas potências são os dois maiores
poluidores a nível planetário.
Mesmo admitindo
que um novo presidente nos EUA possa voltar, a partir de 2021, a uma política
pró-globalização e multilateralista — e que os norte-americanos adoptem as
metas ambientais do Acordo de Paris —, a margem para eficazes soluções
cooperativas globais é limitada.
As sequelas
económicas e políticas da rivalidade EUA-China e da pandemia da covid-19 são já
uma componente estrutural do sistema internacional. Não afectam só o ambiente e
o comércio. Na governação global da saúde humana as controvérsias que têm
envolvido a Organização Mundial de Saúde são outra ponta visível do mal-estar e
da desconfiança instalados. Após a covid-19, o espaço para um mundo globalizado
mais cooperativo e equilibrado existirá, mas será um caminho estreito e com
imensas dificuldades.
Post
scriptum: versão com algumas
modificações do ensaio publicado originalmente na revista Norte.ar da Porto
Business School na dimensão Planet [Planeta]
Investigador do
IPRI-NOVA - Universidade NOVA de Lisboa
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