Há três anos que há um projecto para a recuperação do
Convento do Buçaco à espera de verbas
LUCINDA CANELAS 06/01/2014 – in Público
O incêndio da véspera de Natal que destruiu uma importante
pintura de Josefa de Óbidos ter-se-á devido a um curto-circuito provocado por
infiltrações. Fundação tentava há três anos obter dinheiro do Estado para fazer
obras.
A 24 de Dezembro as portas da igreja do Convento de Santa
Cruz do Buçaco fecharam às 16h, um pouco mais cedo do que é hábito, por causa
do temporal. Reabriram no dia seguinte às 10h, deixando à vista o resultado do
incêndio que, durante a noite, danificou uma das capelas laterais e destruiu
uma Sagrada Família de 1664, assinada pela pintora portuguesa Josefa de Óbidos.
Em noite de Natal ninguém deu por nada.
“A pintura desapareceu por completo e o resto da capela foi
muito afectado”, diz ao PÚBLICO o antigo presidente da Fundação Mata do Buçaco
(FMB), a entidade que tem à sua guarda desde 2009 este imóvel que é património
do Estado, classificado desde 1943. “É uma tristeza enorme que se junta ao
embaraço que foi, desde que comecei a trabalhar na fundação, ver os turistas
que entravam no convento a terem de se proteger da água sempre que chovia.”
António Jorge Franco, que chegou à FMB em 2009 e viu o seu
substituto tomar posse há apenas cinco dias, esteve na igreja no dia 25 e
lamenta que nos últimos três anos nada se tenha conseguido fazer para impedir
que a obra do século XVII, que o historiador de arte Vítor Serrão diz ser “a
jóia do recheio” desta casa religiosa que pertenceu aos monges carmelitas
descalços, fosse destruída. E isto apesar de as obras no convento estarem
previstas há mais de três anos, não tendo avançado por falta de verbas.
Foi no final de 2010/início de 2011, que a fundação criada
há cinco anos deu por terminado o projecto de intervenção no convento, que
previa a recuperação dos telhados e o restauro do património integrado, uma
obra orçada em 1,4 milhões de euros que Franco e a sua equipa pretendiam
candidatar ao Fundo de Salvaguarda do Património Cultural, por sugestão do
próprio Ministério da Cultura e do Igespar, o organismo que à data tutelava o
património.
“A intervenção no convento era uma prioridade absoluta da
fundação e assim se manteve até hoje”, acrescenta o antigo presidente. “Depois
de termos feito o projecto, reunimos com a Direcção Regional de Cultura do
Centro e com a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro,
mais do que uma vez, mas tudo ficou suspenso por falta de verbas. Diziam-nos
que o dinheiro do fundo de salvaguarda estava já todo destinado e que havia
outro património em maior estado de degradação no centro do que o nosso
convento.”
O projecto, garante António Jorge Franco, passou por vários
directores regionais e por técnicos do património, sem qualquer resultado. “Não
me compete discutir prioridades nas intervenções do Estado, mas também não vou
dizer que ficámos a assistir a tudo de braços cruzados porque não ficámos.”
De quem é a responsabilidade?
O desaparecimento desta Sagrada Família, uma das primeiras
encomendas de Josefa de Óbidos (1630-1684) como pintora profissional, é,
segundo Vítor Serrão, uma “perda significativa”, já que se trata de uma obra
“cuja valia é incalculável”. Para este historiador o incêndio reabre o debate
sobre as condições em que se encontra boa parte do património
histórico-artístico português e exige o apuramento de responsabilidades.
As causas do incêndio – ao que tudo indica um curto-circuito
provocado por infiltrações, uma vez que os telhados do convento deixam entrar
água – estão a ser apuradas pela GNR local, aguardando-se a qualquer momento um
relatório, explica o actual presidente da fundação, o biólogo Fernando Correia.
Só depois se decidirá o que fazer no que respeita às obras no imóvel,
recorrendo ao projecto de 2010 e, “eventualmente”, a novos pareceres externos.
“Tudo isto é muito triste, não só pela perda patrimonial
desta importante pintura [103X158 cm], mas também pela perda emocional. Há
sempre uma boa dose de devoção ligada a uma cena religiosa como esta”, diz.
Tanto Fernando Correia como o seu antecessor reconhecem que
competia à fundação a salvaguarda deste património, mas defendem que, apesar de
o edifício e do seu recheio estarem à guarda de terceiros, o Estado não se pode
demitir das suas responsabilidades.
Segundo os estatutos da FMB, de Maio de 2009, a missão desta
entidade de interesse público passa pela “recuperação, requalificação e
revitalização, gestão, exploração e conservação de todo o património natural e
edificado da Mata Nacional do Buçaco”, permanecendo a sua propriedade no
Estado. Foi através da Autoridade Florestal Nacional, serviço do Ministério da
Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas, que a administração central
transferiu competências de gestão e salvaguarda do Buçaco para a fundação, mas,
tratando-se o convento de um imóvel de interesse público há 70 anos, não terá a
Secretaria de Estado da Cultura (SEC) responsabilidades na preservação deste
património?
O PÚBLICO entrou em contacto com a SEC mas, até à hora do
fecho desta edição, não foi possível obter quaisquer esclarecimentos.
“É verdade, por um lado podemos dizer que há um
incumprimento da missão da fundação, porque uma pintura foi destruída, mas por
outro o Estado não pode ignorar o seu papel porque não basta entregar um bem
falho [o imóvel degradado] e virar costas”, argumenta o presidente da FMB,
reconhecendo que em tempos de crise é “extremamente difícil” reunir apoios
públicos e privados e que esta é uma matéria delicada a exigir “cuidadosa
ponderação”. “Talvez a destruição desta importante pintura sensibilize as
pessoas e as faça olhar para o convento e para tudo o que ele guarda.”
António Jorge Franco diz que é importante “apurar
responsabilidades”, mas sem deixar de levar em conta que o Estado nunca
transferiu para a fundação verbas destinadas à recuperação do seu património:
“Nós procurámos financiamento de outras formas e fomos fazendo ‘remendos’
sempre que era inevitável, sem nunca ter dinheiro para as obras estruturais que
eram necessárias.”
A obra de Josefa de Óbidos, artista que tem vindo a gerar
cada vez maior interesse no mercado de leilões nacional, valeria “no mínimo”,
40 mil euros, a avaliar pelo montante atingido por uma Natividade da pintora
vendida no ano passado pela leiloeira Cabral Moncada.
OPINIÃO
Morte de uma obra de arte: a tela de Josefa de Óbidos
no Buçaco
VÍTOR SERRÃO 06/01/2014 – in Público
Tal como as pessoas, as obras de arte também morrem. Muitas
vezes esquecemos que são seres viventes e, por isso, sujeitas à lei inapelável
da ruína física, que decorre da fragilização das condições ambientais e de
circunstâncias fortuitas que contribuem para as degradar, arruinar ou, pura e
simplesmente, destruir.
Vem isto a propósito do incêndio, alegadamente provocado por
um curto-circuito, que reduziu a cinzas, na passada véspera de Natal, a Sagrada
Família, tela da famosa pintora Josefa de Óbidos. O quadro, que enriquecia o
acervo artístico da igreja do Mosteiro de Santa Cruz do Buçaco, era considerada
a jóia do recheio dessa casa religiosa, mítico “deserto” dos monges carmelitas
descalços destinado à vida eremítica, classificado depois como monumento
nacional.
Em termos de património artístico, a perda é irreparável
(como todas as perdas…), mas esta é especialmente importante por se tratar de
um quadro barroco de assinalável mérito, que marca um momento de viragem na
produção da famosa pintora seiscentista. Aliás, pereceram neste incêndio várias
outras obras de valia, tanto de talha como de imaginária e de pintura, num
lastro cripto-artístico que não foi ainda exactamente avaliado, aguardando-se
urgente relatório por parte dos organismos de tutela. Mas é a Sagrada Família,
sem a mínima dúvida, a perda patrimonial mais significativa que decorreu deste
incêndio.
Aos 34 anos de idade, Josefa de Ayala e Cabrera, conhecida
como Josefa de Óbidos (Sevilha,1630-Óbidos,1684) pintou esta tela devocional
para os frades do Buçaco, aí representando um tema de piedade tridentina bem
adequado ao sentido de pobreza sacrificial vivenciado no deserto carmelitano: o
voto do Menino Jesus ao recusar o leite que escorre do seio descoberto da
Virgem Maria e preferir abraçar a Cruz, que São José, à esquerda, segura numa
espécie de acto premonitório da Paixão, e com relevância especial numa casa
dedicada ao culto da Santa Cruz. Temas como este tinham grande impacto no
século XVII, no quadro da doutrina contra-reformista tão atreita a desenvolver
uma propaganda credível através do bom uso das “imagens sagradas”, e o quadro
de Josefa não fugiu à regra, com cuidados de execução que atestam o desvelo com
que a encomenda foi cumprida – tratando-se ademais de uma época conturbada de
guerra com Castela em que se consumia o reino português recém-independente.
Este tema será, aliás, retomado por Josefa, oito anos volvidos, numa das telas
para a igreja dos carmelitas de Cascais (1672), conservadas na igreja matriz
dessa vila.
O interesse histórico-artístico do painel radica no facto de
se tratar de uma das primeiras encomendas de Josefa como pintora profissional,
depois de uma fase onde a primazia da sua actividade criativa fora (para além
da colaboração com o pai) a miniatura sobre cobre, a gravura a buril, a
caligrafia e, ao que se crê, a imaginária em terracota. O retorno de Baltazar
Gomes Figueira (1604-1674), seu pai e mestre, à vila de Óbidos, coincide com a
fase em que paulatinamente ele deixa de pintar, depois de uma carreira de
sucesso (primeiro em Sevilha, depois na corte “restauracionista” de Lisboa), e
as previsíveis dificuldades financeiras da família levaram Josefa a ter de
responder a encomendas sacras para assegurar sustento. A primeira foi a pintura
de cinco telas para o retábulo do altar de Santa Catarina (1661) na Igreja de
Santa Maria de Óbidos, com resultados de tal modo sedutores que lhe abriram as
portas desse mercado beato de casas religiosas, confrarias, irmandades e
oratórios privados de província, que se manterá atraído pela pintora até à sua
morte em 1684.
A tela do Buçaco, de médio formato (1030x1580 mm), estava
assinada e datada de 1664, e em precárias condições conservativas, o que levou
a que fosse restaurada no Instituto José de Figueiredo, a fim de poder ser
“mostrada” em 1991, na grande exposição Josefa de Óbidos e o Tempo Barroco,
realizada no Palácio Nacional da Ajuda, onde figurou com o n.º 23 (entre 113
pinturas). O quadro foi encomendado pelos “frades do deserto” (cujo cenóbio
fora fundado em 1628 a
instâncias dos duques de Aveiro e do bispo-conde de Coimbra D. João Manuel) e
mostra, dentro das suas naturais convenções de discurso e limitações
inventivas, o talento da artista, a maturação do seu estilo e a crescente
afirmação dos seus pessoalíssimos modelos e receitas. São essas quaIidades que
justificaram a fama de Josefa no contexto da arte portuguesa do século XVII (e
no contexto do Naturalismo barroco peninsular, em que a sua arte se insere). É
por tudo isto que a destruição da Sagrada Família, de 1664, não pode deixar de
ser considerada uma tragédia para o património artístico nacional.
Não deixa de ser considerado como triste metáfora que uma
Sagrada Família com estas características de unicidade artística desapareça, e
logo na noite de Natal!
Por último, uma referência não despicienda: as obras de
Josefa de Óbidos e de Baltazar Gomes Figueira mostram um crescente (e de certa
maneira inesperado) peso em termos de mercado de obras de arte, atingindo em
recentes leilões estimativas de transacção que devem ser considerados como
verdadeiramente excepcionais. Após a última exposição de obras destes pintores
seiscentistas (realizada no Museu de Óbidos, em 2005), foram identificadas mais
seis peças suas, que aguardam revelação. Tudo isto põe a nu a perda
significativa que o património artístico nacional acaba de sofrer com a
destruição da tela de Josefa no Buçaco, cuja valia é incalculável. E vem
reabrir o velho debate em torno das precárias condições de conservação e
segurança do nosso património histórico-artístico, carecido de maiores desvelos
e a exigir reforçadas responsabilidades.
Vitor Serrão
Historiador de Arte/professor universitário
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