OPINIÃO
Pangloss em Lisboa 2014
JOSÉ PACHECO PEREIRA 04/01/2014 – in Público
Para que é que serve este tempo até Maio? Para nos dizer que
até lá temos que aceitar tudo.
Todas as vezes que começo estes artigos, a minha certeza é:
“Lá vou outra vez escrever o mesmo”. Olho à volta e vejo mil e uma coisas mais
interessantes para escrever. Por exemplo, sobre o Candide, de Voltaire, que
estou a ler agora com outros olhos.
Mas a coisa está tão mal, que mesmo com o aviso do meu Grilo
Falante para deixar o presente e falar de passarinhos e nuvenzinhas e de como é
belo o nosso Portugal, eu volto ao mesmo. O país está a “dar a volta”, e eu
“perturbado” “zangado”, “ressabiado”, “ignorado”, “velho”, ou “infantil”
conforme a idade do autor da classificação, não vejo os excelsos “sinais da
retoma” e o êxito à vista do “fim do resgate”.
E, por isso mesmo, Cândido e o seu jardim e Pangloss e a sua
métaphysico-théologo-cosmolonigologie acabam a desembocar nestes miseráveis
dias de hoje, onde as pessoas de bem não podem deixar de ficar zangadas com o
exercício impante de hipocrisia que por aí passa nos discursos oficiais, nos
comentários oficiais, no mundo político-mediático cheio de “responsabilidade” e
“inevitabilidade” e vazio. Nuns casos, só vazio, noutros, vazio interessado e
interesseiro. . É, Pangloss estaria bem nos dias de hoje, contando-nos a
“narrativa” “positiva”, “optimista”, “aberta para o futuro”, “cheia de esperança
nas virtudes excepcionais do povo português”, da actual situação nacional.
Ouvindo Pangloss, ouço-os a eles: de como vivemos no melhor
dos mundos possíveis, com os “sinais positivos da economia” em cada esquina,
com o fim do resgate a prazo, e a reconquista “plena” da “nossa soberania”, com
o estrangeiro, até há pouco tempo perverso e desconfiado com os PIGS, agora
cheio de admiração pelas virtudes do “ajustamento” português, com o “admirável
esforço dos portugueses” e a capacidade excepcional das suas empresas “para dar
a volta”. Ou seja, estamos mesmo no “fim do caminho”, a “dar a volta”. Mas a
“dar a volta” a quê? “Dar a volta para onde? “Dar a volta” para quem?
É por isso que não vejo muita diferença entre o que diz
Portas, Passos Coelho, e Cavaco Silva e é repetido pela voz do poder. Acresce
que o PS de Seguro não conta como oposição. Mesmo a esquerda, ao comportar-se
reactivamente como um reverso do espelho do poder, não faz outra coisa senão
reforçar o discurso dominante, aceitando falar a partir dele, a partir do seu
quadro interpretativo, a partir da sua forma mental. O enorme deserto do
pensamento dos nossos dias vive dessa dualidade em que os temas, os modos e os
tempos são definidos pelo poder e “recusados” pela oposição, dentro da mesma
linguagem e aceitando muitas vezes os mesmos limites.
O discurso do poder hoje assenta num rito de passagem.
Estamos em 2014, o nosso ano da “libertação do resgate”, o nosso 1640, o ano em
que a troika se vai embora. Este é o tempo, que culmina com um rito de passagem,
porque o momento lustral de recuperação da “soberania” tem data. Por isso,
acentua-se o momento da “passagem”, para festejar um resultado e anunciar uma
nova aurora. É tudo ficção, porque não há nenhuma mudança substancial a ocorrer
em Maio de 2014, vamos continuar presos àquilo a que já estamos presos, seja
pela troika, seja pelo direito de veto de Bruxelas aos Orçamentos, seja pelo
Pacto Orçamental, mas é uma ficção útil, instrumental. Festejemos.
Para que é que serve este tempo até Maio? Para nos dizer que
até lá temos que aceitar tudo, em particular esse Orçamento e as suas
sucessivas revisões, cujo conteúdo miraculosamente não entra no discurso
oficial, a não ser como o “instrumento necessário” para o fim do resgate, ou
seja, uma coisa neutra e menor. Discute-se e fala-se muito de uma coisa etérea,
os “sinais da retoma”, e quase nada sobre uma coisa dura e sólida, o Orçamento
que aumenta e muito a austeridade para 2014. Quando vejo alguém centrar o seu
discurso nos “sinais da retoma” já sei ao que vem, e já sei aquilo de que não
vai falar.
A natureza do Orçamento e o que ele nos diz sobre o que se
passou nestes últimos dois anos e o que se vai passar neste ano de 2014 e no
futuro são deixados em silêncio. E silêncio porque não encaixa no tom
congratulatório que tão útil vai ser para as eleições europeias e as
legislativas. Aliás, o silêncio sobre as motivações eleitorais que já estão
presentes na política do Governo é uma das grandes debilidades da análise presa
ao discurso do poder. Passos e Portas e, de modo diferente, Cavaco pensam e
muito nas eleições de 2014 e 2015, primeiro para as desvalorizar e assegurar
que vão ser inócuas quanto ao “ajustamento”, ou seja, não servem para mudar
políticas, depois para favorecer os partidos mais fiáveis para esse objectivo,
o PSD e o CDS, e o PS de arreata. O discurso sobre o “compromisso” tem
igualmente o objectivo de levar o PS a coonestar a interpretação governamental
e presidencial do “ajustamento” e torná-lo inócuo como factor de mudança em
eleições.
Depois de Maio, o discurso vai mudar. Vai-nos ser explicado,
a todo o momento, “que a austeridade” não pode acabar”. Findos os festejos,
ver-se-á se há ou não plano cautelar. A inexistência de uma discussão séria
sobre um possível plano cautelar, cujo conteúdo se ignora, é um bom exemplo de
como não há verdadeiro debate democrático no nosso espaço público. Se o plano
cautelar for para um ano, como disse Passos Coelho, ele terá a natureza de uma
continuidade da presença da troika por outra forma, e atirará para quem
governar em 2015 decisões que este Governo pretende cuidadosamente evitar em
ano eleitoral. Se for a mais longo prazo, disfarçado ou às claras, há que
exigir que vá a votos, coisa de que ninguém fala ou quer e percebe-se porquê.
Depois, tudo o que não encaixa neste tempo e nesta
“narrativa” ou é meramente enunciado por obrigação, ou não tem papel na
interpretação. Aqui Portas, Coelho e Cavaco falam do mesmo modo. Diz-se umas
coisas sobre o sofrimento social, mas apresenta-se como um dano colateral
inevitável. Acima de tudo, não pode servir como elemento de uma política,
apenas como constatação de um efeito. O verdadeiro sujeito do discurso são
sempre “as empresas”.
Os “mais pobres” são protegidos pela assistência do Estado e
pela caridade, como argumento para atacar os rendimentos dos que não são tão
pobres, aqueles que “ainda têm alguma coisa”, que, esses sim, são os alvos da
política governamental, no assalto àquilo a que se chamava “classe média”. Claro
que não se diz aos mais pobres dos pobres, cujo papel retórico é importante na
legitimação da política governamental, que assim fica garantido que nunca mais
sairão dessa pobreza. E fica também garantido que muito outros se lhes
juntarão.
O reverso deste discurso é a propaganda, em que muitos
órgãos de comunicação participam, por folclore da “novidade” e ignorância, dos
“sucessos empresariais” dos que “dão a volta”, e fazem compotas em casa ou
móveis com lixo, ou vão fazer agricultura biológica. Para além de nunca se
voltar mais tarde, nem que seja um ano depois, para ver o “sucesso” dessas
microempresas, não se diz que pura e simplesmente, mesmo que algumas tenham
sucesso, são uma gota de água na desgraça geral e acima de tudo que não são o
caminho alternativo às fábricas que fecham ou aos milhares de funcionários
públicos que vão para a rua, nem ao desemprego eufemisticamente designado como
“de longa duração”.
Em “colóquios” e “congressos”, em mensagens televisivas, e
nos repetidores habituais, este é o discurso do poder para 2014. Nada de
importante é enunciado, muito menos discutido, ou vai a votos, tudo está
pactuado dentro do círculo do poder estabelecido. E nós somos apenas paisagem.
Na verdade, diria Pangloss, “está demonstrado que as coisas não podiam ser de
outra maneira”. “Tudo foi feito para um objectivo”: “os narizes foram feitos
para segurar os óculos, e por isso temos óculos”, “as pedras foram formadas
para serem talhadas e para fazer castelos, e por isso Monsenhor tem um belo
castelo”, e os “porcos foram feitos para serem comidos”, por consequência,
“aqueles que dizem que tudo está bem dizem uma asneira, é preciso dizer que
tudo está ainda melhor do que eles imaginam”.
Vou ver se consigo para a semana falar de outra coisa. “Cela
est bien dit, mais il faut cultiver notre jardin.” Pangloss não me ajuda.
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