EDITORIAL
O amor à camisola como razão de Estado
Quando uma estilista abusadora consegue ocupar umas horas
da agenda de uma ministra que tutela um sector na agonia, não é o amor à
camisola que se receia. É o risco de o país se tornar uma caricatura.
Manuel Carvalho
26 de Março de
2021, 20:58
https://www.publico.pt/2021/03/26/politica/editorial/amor-camisola-razao-estado-1956152
Os jornalistas do
serviço em português da Teledifusão de Macau foram avisados para cercearem a
sua liberdade de expressão e se absterem de criticar o governo da China e de
Macau. Seis desses jornalistas demitiram-se na sequência dessa clara violação
da declaração conjunta assinada em 1987 entre Portugal e a China que consagra,
entre outros princípios, os “direitos e liberdades”, entre os quais se inclui o
da liberdade de imprensa. O que num país cioso dos seus direitos e defensor dos
acordos que celebrou deveria motivar um coro de indignação ficou resumido numa
declaração lacónica, embora importante, do ministro Augusto Santos Silva:
“Portugal espera e conta que a China cumpra a lei básica de Macau.” Ponto.
Por estes dias,
uma notícia do PÚBLICO dava conta de que uma estilista dos Estados Unidos tinha
à venda uma camisola poveira sem designar a sua origem. De imediato a
portugalidade profunda tratou de manifestar a sua indignação, como se em causa
estivesse um saque patrimonial de consequências dramáticas e irreversíveis para
o futuro da nação. Num gesto algures entre a bravura da padeira de Aljubarrota
e a determinação de Maria da Fonte, a ministra da Cultura “tomou a iniciativa
de solicitar a identificação das vias judiciais e extrajudiciais ao dispor do Estado
português para defender a camisola poveira enquanto património cultural
português”. Uma camisola pirateada por uma estilista que já pediu desculpa
agrediu mais o orgulho e o interesse nacional do que a violação de um tratado.
O confronto entre
a brandura cautelosa de Santos Silva e a determinação enérgica da sua colega da
Cultura diz muito sobre o peso que as emoções das redes têm nas opções da
política. Num caso grave e violador de um acordo depositado na ONU, vê-se uma
prudência receosa; num caso menor instigado pela apropriação indevida de uma
estilista, lança-se uma ofensiva patriótica. Nada contra a importância da
camisola. Nada contra a indignação, o protesto ou a litigância judicial da
autarquia poveira. Mas, quando um governo transforma uma camisola num assunto
de Estado, o episódio sai do foro dos diplomatas e entra na esfera dos
cartoonistas.
O amor à camisola
é, bem se sabe, algo que convoca as raízes mais fundas do patriotismo. Vale
mais um golo do Ronaldo do que a Feedzai ser unicórnio. Hasteia-se mais a
bandeira num campeonato da Europa do que no 10 de Junho. Mas há limites. Quando
uma estilista abusadora consegue ocupar umas horas da agenda de uma ministra
que tutela um sector na agonia, não é o amor à camisola que se receia. É o
risco de o país se tornar uma caricatura com traços de provincianismo e de
ridículo.
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