PATRIMÓNIO
Apesar da discórdia, obras na Tapada das Necessidades
devem avançar em Setembro
Obras para construir na Tapada das Necessidades, em
Lisboa, um quiosque, restaurante e centro interpretativo deverão arrancar em
Setembro. No entanto, tem crescido a oposição a este projecto por se considerar
ser excessivo para aquele lugar “especial”.
Cristiana Faria
Moreira
29 de Março de
2021, 20:46
Nasceu da devoção
a uma santa e cresceu pela vontade de monarcas que, ao longo dos séculos,
espelharam no desenho da Tapada das Necessidades também os contextos das épocas:
do Absolutismo ao Liberalismo, do barroco ao romantismo, aos tempos de maior ou
menor prosperidade do reino. Até que, já sem reis, foi a degradação que se
apoderou desta tapada. Para o próximo ano, este espaço com dez hectares passará
por uma nova fase, com um novo projecto de exploração que prevê a recuperação
de algumas estruturas já existentes e a construção de novas para acolherem um
quiosque com esplanada, parque infantil, restaurante e um espaço para
actividades culturais. No entanto, esta proposta está a ser contestada por quem
considera que estas construções vão desvirtuar o “espírito do local” com mais
barulho e trânsito.
A cerca de meio
ano do arranque das obras, um grupo de munícipes — dos quais alguns fazem parte
do Grupo dos Amigos da Tapada das Necessidades —, que se diz “informal”, lançou
uma petição há duas semanas, dirigida à câmara e à assembleia municipal de
Lisboa, a pedir que o projecto seja revisto.
“É entendimento
dos abaixo assinados que este projecto acentuará ainda mais a degradação da
tapada, ao transformar um local de contemplação, fruição da Natureza e silêncio
num espaço de eventos, com música, álcool, ruído, abertura de acessos, trânsito
e provável estacionamento automóvel, construção de esgotos, movimentação de
terras, etc., tudo o que consideramos ser contrário ao espírito da própria
tapada”, refere o documento, que já reuniu mais de oito mil assinaturas.
“O que nos choca
mais é a grandeza do projecto. É um projecto muito megalómano para o jardim
especial que a tapada é”, diz ao PÚBLICO Maria Afonso, signatária da petição e
ali vizinha há 30 anos. No entanto, este grupo admite a ideia de ali poder ser
colocada uma cafetaria ou um quiosque, mas de menor dimensão do que as
propostas.
Os críticos
admitem que o novo projecto acabará por “alterar de forma irremediável” o
encanto deste jardim romântico e perturbar “o espírito do local”, que conjuga a
vegetação autóctone e espécies exóticas. “Para mim a tapada é um bálsamo”,
descreve a peticionária.
Depois de a sua
gestão andar a passar de mão em mão e de, em 1983, o conjunto do Palácio das
Necessidades e do parque ter sido classificado como Imóvel de Interesse
Público, grande parte da área da tapada passou para a Câmara Municipal de
Lisboa em 2008, depois de assinado um protocolo com o então Ministério da
Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas. Desde então, foram sendo
feitos alguns restauros, mas a degradação acabou por tomar conta do espaço.
Restaurante e quiosque
Foi então em 2015
que a câmara decidiu passar a gestão da tapada para mãos privadas — pelo menos
a parte edificada. Abriu um concurso para concessionar o espaço, tendo sido o
vencedor o grupo Banana Café Emporium, que explora vários quiosques em Lisboa.
A empresa desenvolveu um projecto de reformulação do espaço, cuja primeira
versão foi aprovada no final de 2017. No entanto, a introdução de algumas
alterações justificou nova votação em câmara. Assim, em Novembro de 2019, com
os votos contra de PCP e BE e a abstenção do CDS, a proposta foi aprovada.
Assinado pelo
arquitecto Pedro Reis, o projecto prevê para a zona sul da tapada, junto ao
grande relvado, dois quiosques, uma esplanada e um parque infantil. Para a zona
central, propõe-se a demolição de um dos edifícios do antigo jardim zoológico
para dar lugar a uma estrutura metálica envidraçada onde funcionará um
restaurante. Os seis torreões que ladeiam este espaço irão ser reconvertidos em
postos de venda de produtos artesanais.
Já na zona norte,
está prevista a demolição de todos os edifícios da antiga Estação Florestal
Nacional para dar lugar a um outro onde funcionará um espaço partilhado de
trabalho, um auditório com capacidade para 200 pessoas, uma cafetaria e um
centro interpretativo da tapada, segundo os documentos do processo a que o
PÚBLICO teve acesso por ocasião da votação do projecto pelo executivo
municipal.
Desde a sua
aprovação, em 2019, o projecto não sofreu qualquer alteração. “O detalhe, rigor
e a forma exemplar como decorreu todo o planeamento e interacção com a Câmara
de Lisboa, Direcção-geral do Património Cultural (DGPC), Instituto de
Conservação da Natureza e Florestas (ICNF), entre outras entidades, ao longo de
cerca de seis anos do processo reflectem claramente o cuidado que foi tido e o
evitar qualquer precipitação que prejudicasse o resultado final”, diz ao
PÚBLICO o administrador do Banana Café Emporium, Bernardo Delgado.
O responsável
atira o início das obras para Setembro e um tempo de execução entre os nove
meses e um ano, “dependendo das infra-estruturas em questão”. “Os parques
infantis e o quiosque estarão concluídos mais rapidamente que o edificado do
Topo Norte onde estará patente a programação cultural prevista”, detalha.
Falta, contudo, lançar ainda o concurso para a empreitada, o que deverá
acontecer nas “próximas semanas”.
O projecto
implicará um investimento de cerca de cinco milhões de euros, “a quase
totalidade” assegurada pelo grupo Banana Café — o restante caberá ao município.
Quanto às
críticas que têm recentemente vindo em crescendo, Bernardo Delgado diz apenas
subscrever “integralmente o constante do esclarecimento prestado pela Câmara de
Lisboa”. A 18 de Março, o vereador do Ambiente e Estrutura Verde, José Sá
Fernandes, emitiu um longo comunicado onde procura desmontar os argumentos
usados pelos opositores ao projecto.
“Nada foi feito às escondidas”
Sá Fernandes
começa por contrariar o argumento de que o projecto de concessão permitirá
“acesso a carros”. “O trânsito e o estacionamento vão continuar a ser proibidos,
a não ser para as equipas de manutenção e para eventuais cargas e descargas de
material, sempre de forma esporádica e periódica”, nota o vereador.
Nega ainda que se
farão “construções de edifícios enormes e desenquadrados”. “Não só vão ser recuperados
e preservados, na íntegra, os elementos patrimoniais edificados relevantes,
como é o caso dos seis torreões do denominado Jardim Zoológico, como o edifício
que entre eles se vai colocar, em substituição da antiga Casa dos Serviços
Florestais, sem valor arquitectónico, que ali existe e que apresenta risco de
ruína, está devidamente enquadrado, conforme parecer da DGPC”.
Também ao
contrário do que os peticionários afirmam quanto à “cedência a privados da
maioria dos edifícios e espaços da Tapada para exploração comercial”, o
vereador afirma não haver “mais nenhum edifício e espaço relevante, com
excepção de um quiosque a colocar junto ao grande relvado”. E fora da
concessão, nota o vereador, ficaram o Moinho e a Casa Amarela dos antigos
Serviços Técnicos Florestais, situados no topo norte, “cujo uso será
futuramente analisado”.
O assunto foi
também levantado na última sessão da Assembleia Municipal de Lisboa, há uma
semana, tendo o vereador do Ambiente garantido que “a concessão não tem um
palmo da tapada, a não ser os próprios edifícios que foram concessionados”.
“Nenhum pedaço da tapada, mas absolutamente nenhum, vai ser concessionado. O
que vai ser concessionado vão ser os edifícios que têm um objecto preciso”,
insistiu.
Os outros
edifícios que o concessionário terá de reabilitar serão adaptados a casas de
banho. A outra casa a recuperar servirá para sede, precisamente, do grupo de
“Amigos da Tapada” – uma associação que, segundo apurou o PÚBLICO, tem
actualmente pouca actividade. “Nada foi feito às escondidas, pois esta
concessão foi alvo de concurso público e o processo de licenciamento dos
edifícios também mereceu a respectiva deliberação da Câmara de Lisboa” e os
pareceres da DGPC e do ICNF.
O vereador
acrescentou ainda que “está quase concluído o levantamento arbóreo, o relatório
de inventário e diagnóstico da vegetação, assim como a avaliação do estado dos
elementos artísticos do jardim, trabalho que nunca tinha sido feito em
profundidade e que irá ter enorme importância para a discussão do plano de
recuperação e gestão que também está a desenvolver-se”.
Sá Fernandes
aponta para o final de Maio a conclusão de um plano de gestão e uso da Tapada
das Necessidades. “Esse plano vai permitir aquilo que nunca houve em qualquer
discussão sobre a tapada: sabermos exactamente o que existe, o que devemos
preservar e apontar alguns caminhos para obras que têm de ser feitas”. Até lá,
não se mexerá em nada, garante.
O jardim que nasceu como "prova de fé"
Para se alimentar
a ideia de que este é um lugar mágico, como muitos o designam, contemos também
aqui a lenda que estará na origem da Tapada das Necessidades. Tudo terá começado
quando um casal procurou resguardar-se do surto de peste bubónica que assolava
Lisboa por volta de 1580. Como destino escolheram a vila antiga da Ericeira e
aí se entregaram à devoção de Nossa Senhora da Saúde.
Quando o perigo
passou, regressaram a Lisboa e consigo trouxeram a imagem da santa, que
procuraram abrigar dignamente numa ermida no alto de Alcântara. “Com o tempo as
graças concedidas por esta imagem foram sendo divulgadas, levando ao
aparecimento de grande número de devotos que a ela recorriam, devido às suas
aflições e necessidades”, lê-se no artigo Tapada das Necessidades em Lisboa. A
história de um jardim esquecido, da autoria do arquitecto paisagista João
Albuquerque Carreiras. Terá surgido assim a designação de Nossa Senhora das
Necessidades, que cairia nas graças da família real.
Em 1705, D. Pedro
II a ela se devotou para recuperar de uma grave doença. O filho, D. João V,
herdaria do pai essa devoção, tendo também a ela recorrido quando sofreu uma
paralisia por volta de em 1742.
Depois de anos de
luta contra a doença, com Nossa Senhora das Necessidades à cabeceira, sonhou
então com um projecto que a engrandecesse. A despretensiosa ermida
transformar-se-ia numa igreja sumptuosa e a ela se juntaria um ambicioso
projecto de se construir ali um convento, entregue depois aos frades da
Congregação do Oratório. Nascia então a obra das Necessidades, mais uma “prova
de fé” de D. João V, como refere João Albuquerque Carreiras.
Da igreja partiu
todo o projecto. “A obra constitui um conjunto que, como tal, não pode ser
analisado por partes. Ao jeito dos palácios barrocos, a Igreja, o Convento, a
Cerca, o Palácio e a Praça do Obelisco constituem um todo, uma obra que foi
pensada e projectada como uma unidade”, escreve o arquitecto paisagista.
D. João V não
chegaria a assistir à sua conclusão, uma vez que morreu em 1750, e foi apenas
durante o reinado de D. Maria II, que a monarca decidiu estabelecer-se no
Palácio das Necessidades. O rei consorte, Fernando II, chamaria então o mestre
jardineiro Bonnard para intervir nos jardins do palácio. A tapada, que assumia
uma configuração barroca desde D. João V, onde “se impunha ao terreno uma rede
de longos caminhos traçados a régua e esquadro”, acabaria por se transformar
num romântico jardim inglês, com formas curvas e suaves, mais orgânico.
Era Agosto de
1841 e nascia então na tapada um jardim ao estilo paisagista, implantado no
seguimento, para poente, do Jardim de Buxo – “o embrião para a revolução
operada na tapada”. Bonnard foi então introduzindo novas espécies de árvores,
arbustos e flores, algumas delas raras e exóticas. Mas as obras foram sendo
feitas de forma faseada, devido a “contingências financeiras”, o que levou a
que o primeiro projecto para a estufa circular não avançasse.
Nasceram dois novos
lagos artificiais de forma irregular, envolvidos por vegetação ripícola. Numa
segunda época (1848-1856) foram erguidos outros edifícios, como o Picadeiro, a
Estufa e o Jardim Zoológico. Neste jardim inglês passa a incluir-se um largo
relvado abaixo da Estufa e da Casa Fresca, “uma das poucas clareiras existentes
na tapada, criando uma zona de excelente exposição solar, o que o torna um dos
melhores locais de estadia.” Mas um dos espaços que mais interesse geraria na
tapada seria mesmo o jardim zoológico, onde se viam macacos e aves raras vindos
de várias zonas do globo.
“O simbolismo
deste espaço é de grande importância histórica. A sua construção deve-se ao
monarca mais absoluto, D. João V. Aqui se reuniram pela primeira vez as Cortes
após as guerras liberais, e para aqui veio viver D. Maria II. O significado
desta ruptura no jardim encontra-se na demonstração clara de liberdade formal
decorrente da nova liberdade social e política. Pela primeira vez em Portugal a
família real cria um jardim liberto de restrições e espartilhos, rompendo sem
transição com um estilo que vinha resistindo aos ventos de mudança”, nota o
investigador.
Nos reinados que
se seguiram a tapada foi mantendo o seu esplendor. Com o regicídio de 1908, D.
Manuel II e sua mãe continuariam a viver nas Necessidades e dali partiriam para
o exílio após a revolução republicana de 1910. “Com este episódio final da história
da monarquia em Portugal, a Tapada entra num progressivo processo de degradação
que continua até hoje”, descreve o paisagista.
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