terça-feira, 30 de março de 2021

Apesar da discórdia, obras na Tapada das Necessidades devem avançar em Setembro

 



PATRIMÓNIO

Apesar da discórdia, obras na Tapada das Necessidades devem avançar em Setembro

 

Obras para construir na Tapada das Necessidades, em Lisboa, um quiosque, restaurante e centro interpretativo deverão arrancar em Setembro. No entanto, tem crescido a oposição a este projecto por se considerar ser excessivo para aquele lugar “especial”.

 

Cristiana Faria Moreira

29 de Março de 2021, 20:46

https://www.publico.pt/2021/03/29/local/noticia/apesar-discordia-obras-tapada-necessidades-avancar-setembro-1955808?fbclid=IwAR2XoRGjJ30X0K1HVWRCF9XWBh5SNoSBe8xBlBGSdyAZ5DmyUS6Q4UNoTSs

 

Nasceu da devoção a uma santa e cresceu pela vontade de monarcas que, ao longo dos séculos, espelharam no desenho da Tapada das Necessidades também os contextos das épocas: do Absolutismo ao Liberalismo, do barroco ao romantismo, aos tempos de maior ou menor prosperidade do reino. Até que, já sem reis, foi a degradação que se apoderou desta tapada. Para o próximo ano, este espaço com dez hectares passará por uma nova fase, com um novo projecto de exploração que prevê a recuperação de algumas estruturas já existentes e a construção de novas para acolherem um quiosque com esplanada, parque infantil, restaurante e um espaço para actividades culturais. No entanto, esta proposta está a ser contestada por quem considera que estas construções vão desvirtuar o “espírito do local” com mais barulho e trânsito.

 

A cerca de meio ano do arranque das obras, um grupo de munícipes — dos quais alguns fazem parte do Grupo dos Amigos da Tapada das Necessidades —, que se diz “informal”, lançou uma petição há duas semanas, dirigida à câmara e à assembleia municipal de Lisboa, a pedir que o projecto seja revisto.

 

 

“É entendimento dos abaixo assinados que este projecto acentuará ainda mais a degradação da tapada, ao transformar um local de contemplação, fruição da Natureza e silêncio num espaço de eventos, com música, álcool, ruído, abertura de acessos, trânsito e provável estacionamento automóvel, construção de esgotos, movimentação de terras, etc., tudo o que consideramos ser contrário ao espírito da própria tapada”, refere o documento, que já reuniu mais de oito mil assinaturas.

 

“O que nos choca mais é a grandeza do projecto. É um projecto muito megalómano para o jardim especial que a tapada é”, diz ao PÚBLICO Maria Afonso, signatária da petição e ali vizinha há 30 anos. No entanto, este grupo admite a ideia de ali poder ser colocada uma cafetaria ou um quiosque, mas de menor dimensão do que as propostas.

 

Os críticos admitem que o novo projecto acabará por “alterar de forma irremediável” o encanto deste jardim romântico e perturbar “o espírito do local”, que conjuga a vegetação autóctone e espécies exóticas. “Para mim a tapada é um bálsamo”, descreve a peticionária.

 

Depois de a sua gestão andar a passar de mão em mão e de, em 1983, o conjunto do Palácio das Necessidades e do parque ter sido classificado como Imóvel de Interesse Público, grande parte da área da tapada passou para a Câmara Municipal de Lisboa em 2008, depois de assinado um protocolo com o então Ministério da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas. Desde então, foram sendo feitos alguns restauros, mas a degradação acabou por tomar conta do espaço.

 

Restaurante e quiosque

Foi então em 2015 que a câmara decidiu passar a gestão da tapada para mãos privadas — pelo menos a parte edificada. Abriu um concurso para concessionar o espaço, tendo sido o vencedor o grupo Banana Café Emporium, que explora vários quiosques em Lisboa. A empresa desenvolveu um projecto de reformulação do espaço, cuja primeira versão foi aprovada no final de 2017. No entanto, a introdução de algumas alterações justificou nova votação em câmara. Assim, em Novembro de 2019, com os votos contra de PCP e BE e a abstenção do CDS, a proposta foi aprovada.

 

Assinado pelo arquitecto Pedro Reis, o projecto prevê para a zona sul da tapada, junto ao grande relvado, dois quiosques, uma esplanada e um parque infantil. Para a zona central, propõe-se a demolição de um dos edifícios do antigo jardim zoológico para dar lugar a uma estrutura metálica envidraçada onde funcionará um restaurante. Os seis torreões que ladeiam este espaço irão ser reconvertidos em postos de venda de produtos artesanais.

 

Já na zona norte, está prevista a demolição de todos os edifícios da antiga Estação Florestal Nacional para dar lugar a um outro onde funcionará um espaço partilhado de trabalho, um auditório com capacidade para 200 pessoas, uma cafetaria e um centro interpretativo da tapada, segundo os documentos do processo a que o PÚBLICO teve acesso por ocasião da votação do projecto pelo executivo municipal.

 

Desde a sua aprovação, em 2019, o projecto não sofreu qualquer alteração. “O detalhe, rigor e a forma exemplar como decorreu todo o planeamento e interacção com a Câmara de Lisboa, Direcção-geral do Património Cultural (DGPC), Instituto de Conservação da Natureza e Florestas (ICNF), entre outras entidades, ao longo de cerca de seis anos do processo reflectem claramente o cuidado que foi tido e o evitar qualquer precipitação que prejudicasse o resultado final”, diz ao PÚBLICO o administrador do Banana Café Emporium, Bernardo Delgado.

 

O responsável atira o início das obras para Setembro e um tempo de execução entre os nove meses e um ano, “dependendo das infra-estruturas em questão”. “Os parques infantis e o quiosque estarão concluídos mais rapidamente que o edificado do Topo Norte onde estará patente a programação cultural prevista”, detalha. Falta, contudo, lançar ainda o concurso para a empreitada, o que deverá acontecer nas “próximas semanas”.

 

O projecto implicará um investimento de cerca de cinco milhões de euros, “a quase totalidade” assegurada pelo grupo Banana Café — o restante caberá ao município.

Quanto às críticas que têm recentemente vindo em crescendo, Bernardo Delgado diz apenas subscrever “integralmente o constante do esclarecimento prestado pela Câmara de Lisboa”. A 18 de Março, o vereador do Ambiente e Estrutura Verde, José Sá Fernandes, emitiu um longo comunicado onde procura desmontar os argumentos usados pelos opositores ao projecto.

 

“Nada foi feito às escondidas”

Sá Fernandes começa por contrariar o argumento de que o projecto de concessão permitirá “acesso a carros”. “O trânsito e o estacionamento vão continuar a ser proibidos, a não ser para as equipas de manutenção e para eventuais cargas e descargas de material, sempre de forma esporádica e periódica”, nota o vereador.

 

Nega ainda que se farão “construções de edifícios enormes e desenquadrados”. “Não só vão ser recuperados e preservados, na íntegra, os elementos patrimoniais edificados relevantes, como é o caso dos seis torreões do denominado Jardim Zoológico, como o edifício que entre eles se vai colocar, em substituição da antiga Casa dos Serviços Florestais, sem valor arquitectónico, que ali existe e que apresenta risco de ruína, está devidamente enquadrado, conforme parecer da DGPC”.

 

Também ao contrário do que os peticionários afirmam quanto à “cedência a privados da maioria dos edifícios e espaços da Tapada para exploração comercial”, o vereador afirma não haver “mais nenhum edifício e espaço relevante, com excepção de um quiosque a colocar junto ao grande relvado”. E fora da concessão, nota o vereador, ficaram o Moinho e a Casa Amarela dos antigos Serviços Técnicos Florestais, situados no topo norte, “cujo uso será futuramente analisado”.

 

O assunto foi também levantado na última sessão da Assembleia Municipal de Lisboa, há uma semana, tendo o vereador do Ambiente garantido que “a concessão não tem um palmo da tapada, a não ser os próprios edifícios que foram concessionados”. “Nenhum pedaço da tapada, mas absolutamente nenhum, vai ser concessionado. O que vai ser concessionado vão ser os edifícios que têm um objecto preciso”, insistiu.

 

Os outros edifícios que o concessionário terá de reabilitar serão adaptados a casas de banho. A outra casa a recuperar servirá para sede, precisamente, do grupo de “Amigos da Tapada” – uma associação que, segundo apurou o PÚBLICO, tem actualmente pouca actividade. “Nada foi feito às escondidas, pois esta concessão foi alvo de concurso público e o processo de licenciamento dos edifícios também mereceu a respectiva deliberação da Câmara de Lisboa” e os pareceres da DGPC e do ICNF.

 

O vereador acrescentou ainda que “está quase concluído o levantamento arbóreo, o relatório de inventário e diagnóstico da vegetação, assim como a avaliação do estado dos elementos artísticos do jardim, trabalho que nunca tinha sido feito em profundidade e que irá ter enorme importância para a discussão do plano de recuperação e gestão que também está a desenvolver-se”.

 

Sá Fernandes aponta para o final de Maio a conclusão de um plano de gestão e uso da Tapada das Necessidades. “Esse plano vai permitir aquilo que nunca houve em qualquer discussão sobre a tapada: sabermos exactamente o que existe, o que devemos preservar e apontar alguns caminhos para obras que têm de ser feitas”. Até lá, não se mexerá em nada, garante.

 

O jardim que nasceu como "prova de fé"

Para se alimentar a ideia de que este é um lugar mágico, como muitos o designam, contemos também aqui a lenda que estará na origem da Tapada das Necessidades. Tudo terá começado quando um casal procurou resguardar-se do surto de peste bubónica que assolava Lisboa por volta de 1580. Como destino escolheram a vila antiga da Ericeira e aí se entregaram à devoção de Nossa Senhora da Saúde.

 

Quando o perigo passou, regressaram a Lisboa e consigo trouxeram a imagem da santa, que procuraram abrigar dignamente numa ermida no alto de Alcântara. “Com o tempo as graças concedidas por esta imagem foram sendo divulgadas, levando ao aparecimento de grande número de devotos que a ela recorriam, devido às suas aflições e necessidades”, lê-se no artigo Tapada das Necessidades em Lisboa. A história de um jardim esquecido, da autoria do arquitecto paisagista João Albuquerque Carreiras. Terá surgido assim a designação de Nossa Senhora das Necessidades, que cairia nas graças da família real.

 

Em 1705, D. Pedro II a ela se devotou para recuperar de uma grave doença. O filho, D. João V, herdaria do pai essa devoção, tendo também a ela recorrido quando sofreu uma paralisia por volta de em 1742.

 

Depois de anos de luta contra a doença, com Nossa Senhora das Necessidades à cabeceira, sonhou então com um projecto que a engrandecesse. A despretensiosa ermida transformar-se-ia numa igreja sumptuosa e a ela se juntaria um ambicioso projecto de se construir ali um convento, entregue depois aos frades da Congregação do Oratório. Nascia então a obra das Necessidades, mais uma “prova de fé” de D. João V, como refere João Albuquerque Carreiras.

 

Da igreja partiu todo o projecto. “A obra constitui um conjunto que, como tal, não pode ser analisado por partes. Ao jeito dos palácios barrocos, a Igreja, o Convento, a Cerca, o Palácio e a Praça do Obelisco constituem um todo, uma obra que foi pensada e projectada como uma unidade”, escreve o arquitecto paisagista.

 

D. João V não chegaria a assistir à sua conclusão, uma vez que morreu em 1750, e foi apenas durante o reinado de D. Maria II, que a monarca decidiu estabelecer-se no Palácio das Necessidades. O rei consorte, Fernando II, chamaria então o mestre jardineiro Bonnard para intervir nos jardins do palácio. A tapada, que assumia uma configuração barroca desde D. João V, onde “se impunha ao terreno uma rede de longos caminhos traçados a régua e esquadro”, acabaria por se transformar num romântico jardim inglês, com formas curvas e suaves, mais orgânico.

 

Era Agosto de 1841 e nascia então na tapada um jardim ao estilo paisagista, implantado no seguimento, para poente, do Jardim de Buxo – “o embrião para a revolução operada na tapada”. Bonnard foi então introduzindo novas espécies de árvores, arbustos e flores, algumas delas raras e exóticas. Mas as obras foram sendo feitas de forma faseada, devido a “contingências financeiras”, o que levou a que o primeiro projecto para a estufa circular não avançasse.

 

Nasceram dois novos lagos artificiais de forma irregular, envolvidos por vegetação ripícola. Numa segunda época (1848-1856) foram erguidos outros edifícios, como o Picadeiro, a Estufa e o Jardim Zoológico. Neste jardim inglês passa a incluir-se um largo relvado abaixo da Estufa e da Casa Fresca, “uma das poucas clareiras existentes na tapada, criando uma zona de excelente exposição solar, o que o torna um dos melhores locais de estadia.” Mas um dos espaços que mais interesse geraria na tapada seria mesmo o jardim zoológico, onde se viam macacos e aves raras vindos de várias zonas do globo.

 

“O simbolismo deste espaço é de grande importância histórica. A sua construção deve-se ao monarca mais absoluto, D. João V. Aqui se reuniram pela primeira vez as Cortes após as guerras liberais, e para aqui veio viver D. Maria II. O significado desta ruptura no jardim encontra-se na demonstração clara de liberdade formal decorrente da nova liberdade social e política. Pela primeira vez em Portugal a família real cria um jardim liberto de restrições e espartilhos, rompendo sem transição com um estilo que vinha resistindo aos ventos de mudança”, nota o investigador.

 

Nos reinados que se seguiram a tapada foi mantendo o seu esplendor. Com o regicídio de 1908, D. Manuel II e sua mãe continuariam a viver nas Necessidades e dali partiriam para o exílio após a revolução republicana de 1910. “Com este episódio final da história da monarquia em Portugal, a Tapada entra num progressivo processo de degradação que continua até hoje”, descreve o paisagista.

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