ANÁLISE
A triste história de um Conselho Europeu deprimente
O último Conselho Europeu terminou como começou. Sem
qualquer solução à vista.
Teresa de Sousa
28 de Março de
2021, 0:00
1. Acabou mais
cedo, revelando o cansaço e a falta de soluções dos líderes europeus, depois de
um ano tremendo. Teve como convidado especial o Presidente Joe Biden, que foi,
por um breve período de tempo, um líder europeu honorário. Remeteu as questões
mais intragáveis para os representantes permanentes. Fez um arremedo de ameaça
aos países onde o processo de vacinação é mais rápido – leia-se Reino Unido –,
que não será mais do que uma forma de pressão. Seria muito pouco avisado
proibir a exportação de vacinas para países que exportam para a União Europeia
matéria-prima essencial para o seu fabrico, incluindo o funcionamento dos
biorreactores necessários para as produzir. A proposta da Comissão para travar
a exportação de vacinas teve desde o início a oposição de vários países, entre
os quais os nórdicos ou a Bélgica (e também de Portugal, embora mais
discretamente, porque tem de manter a isenção própria de quem exercesse a
presidência).
Tudo estaria
melhor se a Europa não enfrentasse uma terceira vaga da pandemia, que volta a
obrigar ao confinamento mais ou menos generalizado e a aumentar a pressão sobre
os sistemas de saúde. Na sexta-feira passada, durante toda a tarde, o título
que fez manchete no site do Financial Times foi este: “A Europa avisa que os
hospitais se aproximam da ruptura com a terceira vaga a crescer”. “Se não
houver forma de a conter, corremos o risco de o nosso sistema de saúde atingir
o seu ponto de ruptura em Abril”, disse em Berlim o ministro da Saúde alemão. O
Bild, o tablóide mais vendido na Alemanha e um indefectível apoiante da
chanceler, questionava-se sobre se “Merkel não estaria cansada demais para a
tarefa”.
2. Talvez o
sintoma mais deprimente da reunião tenha sido o facto de ter passado horas e
horas a discutir as queixas do chanceler austríaco, Sebastian Kurz, que diz que
o seu país foi prejudicado na distribuição de vacinas, arrastando com ele a
Bulgária, Croácia e Letónia. Quer agora que a próxima remessa da Pfizer
compense a Áustria dessas alegadas perdas. Não convenceu ninguém. Há uma chave
de distribuição das vacinas pelos Estados-membros em função da população que
tem sido cumprida. Houve países que apostaram mais na AstraZeneca por causa do
preço, e que agora pagam pelas falhas na sua distribuição. Mas isso não parece
desencorajar Sebastian Kurz, que aponta o dedo à incompetência da Comissão,
irritando profundamente a chanceler.
Depois de horas
de discussão, o assunto foi, pura e simplesmente, remetido para o Coreper, que
reúne os embaixadores permanentes dos Estados-membros em Bruxelas. A imprensa
europeia fala nas dificuldades internas do chanceler austríaco para explicar o
seu comportamento. O Governo de coligação entre os conservadores de Kurz e os
Verdes está envolvido em vários escândalos e o jovem chanceler vê a sua
popularidade baixar. Vale a pena recordar que a Áustria ameaça vetar a
ratificação do tratado de comércio livre entre a União Europeia e o Mercosul,
que se arrasta há anos, porque os ecologistas não aceitam as práticas agrícolas
do Brasil. A França ainda levanta algumas objecções, mas por razões mais
concretas: sendo o maior produtor agrícola da Europa teme a concorrência
brasileira. A questão não é apenas económica. É uma questão de influência
política num subcontinente com fortes afinidades com o velho continente, hoje
disputado abertamente pela China.
A ironia desta história é que a União chegou ao Verão do
ano passado cheia de orgulho e de confiança pela forma como estava a enfrentar
a pandemia. Hoje, esse espírito parece ter-se esfumado
3. As
expectativas de recuperação económica ficam para cada vez mais tarde. O esforço
dos governos para compensar empresas e pessoas é cada vez maior. As
perspectivas de crescimento económico para este ano vão sendo reduzidas. Nos
Estados Unidos, com a vacinação a cobrir já mais de 100 milhões de americanos e
com Biden a garantir 200 milhões até ao 100.º dia da sua presidência, no início
de Maio, as previsões da Reserva Federal são de um crescimento de 6,5% – um
valor quase “chinês”.
A ironia desta
história é que a União chegou ao Verão do ano passado cheia de orgulho e de
confiança pela forma como estava a enfrentar a pandemia – quer do ponto de
vista da saúde pública, quer do ponto de vista económico. Houve quem falasse,
ainda que com algum exagero, em “Momento Hamiltoniano”, quando os líderes
europeus aprovaram em Julho um impressionante fundo de recuperação de 750 mil
milhões de euros para fazer face aos efeitos económicos devastadores da pandemia,
sobretudo nos países mais frágeis, financiado pela emissão de dívida conjunta.
“Esta decisão marcou uma mudança em relação à ultima década, durante a qual a
União avançou de crise em crise recorrendo a soluções conservadoras e de curto
prazo, que não enfrentaram os problemas da zona euro, da segurança, das
migrações ou de um ambiente internacional hostil”, escreve Rosa Balfour,
directora do Carnegie Europe.
Hoje, esse
espírito parece ter-se esfumado. O Fundo de Recuperação e Resiliência continua
à espera de ratificação pelos parlamentos nacionais para poder chegar ao
terreno. Talvez lá para o Verão. Na sexta-feira, a sua ratificação enfrentou
mais um obstáculo, quando o Tribunal Constitucional alemão decidiu suspender o
processo de ratificação, depois de um grupo de cidadãos ter interposto recurso
contra a emissão de dívida conjunta. O fundo já tinha sido aprovado pelo
Bundestag por uma ampla maioria, ainda que pondo a ênfase na sua natureza
provisória. Entretanto, Joe Biden tomou posse a 20 de Janeiro, apresentou
algumas semanas depois um pacote de recuperação da economia de quase dois
biliões de dólares (o terceiro desde o início da pandemia), o Congresso aprovou
no dia 10 de Março e o dinheiro já chegou às empresas, às pessoas e aos
governos estaduais. É verdade que os Estados Unidos são um país e a União reúne
27 países, tornando os processos de decisão mais demorados. Mas isso não
explica tudo.
4. A presença de
Joe Biden foi o único momento agradável e descontraído do encontro dos líderes.
As palavras de boas-vindas de Charles Michel foram simpáticas, mas não mais do
que isso. Aliás, partiu dele o convite ao Presidente. As de Biden e as do
primeiro-ministro português, a quem coube falar em nome dos 27, foram mais do
que circunstanciais. Para além das referências ao combate às alterações
climáticas, que os EUA querem liderar, Biden falou da importância vital de
reforçar a competitividade das duas economias e voltou à mensagem mais forte da
sua política externa, desafiando a Europa a juntar-se aos EUA no “desafio mais
galvanizador do nosso tempo” – enfrentar a ascensão do autoritarismo no mundo.
A sua esperança é que os EUA e a União, se agirem em conjunto, possam levar a
uma mudança de comportamento da China e a resolver alguns problemas com a Rússia.
O
primeiro-ministro português disse duas ou três coisas politicamente relevantes.
Referiu o interesse dos dois lados numa recuperação que permita reconstruir
“melhor”, assente em três vectores essenciais: uma transição verde e digital
que seja justa; um comércio mundial aberto e justo, mesmo em tempo de crises;
uma aposta em energias mais sustentáveis e mais seguras. A nota mais importante
da sua intervenção foi sobre as mudanças a que assistimos à escala global, as
quais “aconselham a revitalização da parceria única com os EUA”, incluindo uma
abordagem cooperativa para lidar com os seus principais “competidores”, de
forma a garantir a defesa dos seus valores comuns à escala global.
António Costa não
mencionou a China ou a Rússia, mas também não invocou o novo chavão europeu da
“autonomia estratégica”. Pelo contrário, Angela Merkel elaborou longamente
sobre o tema, na conferência de imprensa final, insistindo que a Europa não
precisa da caução dos EUA para tomar as suas decisões. No seu espírito estava
certamente o Acordo de Investimento com a China e o Nord Stream 2 – duas
manifestações do que Berlim entende ser essa “autonomia”. A Europa está longe
de um consenso sobre as suas relações com os Estados Unidos e com as potências
autoritárias a que Biden se referiu. Seria uma pena se viesse a desperdiçar a
oportunidade que Biden lhe oferece e que não durará para sempre. Como disse
também António Costa, a sua eleição “foi uma vitória da esperança” e “as
decisões que já tomou, bem como a determinação de que a sua administração dá
mostras, são impressionantes”.
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