PINIÃO
O pior é possível
O Chega, o Bloco de Esquerda e o Partido Comunista, tão
diferentes nas suas histórias, tão distintos na sua organização e nas suas
doutrinas, poderão ter, no futuro, se os deixarem, uma enorme capacidade de
destruição dos dois grandes partidos da democracia portuguesa.
ANTÓNIO BARRETO
21 de Novembro de
2020, 0:10
https://www.publico.pt/2020/11/21/opiniao/opiniao/pior-possivel-1940074
A coligação de
esquerda promovida pelo PS de António Costa e a criação do partido Chega de
André Ventura são os dois acontecimentos singulares mais importantes para a
remodelação do panorama político e partidário. Em conjunto, militam seriamente
a favor do pesadelo político que, cada vez mais, se anuncia como inevitável: a
separação do país ao meio, esquerda e direita, ou a criação de dois blocos
compactos, o de esquerda e o de direita, ou ainda a divisão dos portugueses em
dois grupos irreconciliáveis, o de esquerda e o de direita.
Há, todavia, uma
diferença notável entre a criação do Chega e a coligação de esquerda. A
primeira surge das margens e é uma mera borbulha, enquanto a segunda emana do
centro do poder e é um gesto com peso e medida. De comum, têm o facto de
tentarem promover a alteração da vida política e o de estarem na origem de
percepções catastrofistas do futuro do país. Já se berra por aí “abaixo o
fascismo” e “fora o comunismo”!
Há anos que
estava nas cartas, mas que foi sempre sendo recusado. A tão desejada
bipolarização, defendida por muita gente à esquerda e à direita, não era mais
do que isso. Ou antes, era uma versão do que realmente se escondia, o receio do
“bloco central”, considerado este como o alfobre da corrupção, o viveiro do compadrio
e a incubadora da partidocracia. Nos seus tempos mais viçosos, a defesa da
bipolarização utilizava argumentos tentadores. Esclarecia a vida política,
dizia-se. Ficava a saber-se melhor quem era quem, julgava-se. Terminava com as
meias medidas e os meios-tons. Afastava as águas mornas e pantanosas.
Ajuizadamente, nunca se fez realmente. Nem nos tempos de Cavaco Silva ou de
Sócrates. Mas quase se fez nos de Passos Coelho. E agora, mais do que nunca,
está aí à porta.
A divisão do país
entre esquerda e direita, nas actuais circunstâncias históricas, determinará
uma fragmentação partidária muito mais acentuada, assim como a divisão entre o
público e o privado e o fomento da luta das classes a graus desconhecidos há
quarenta anos. A bipolarização não vai permitir mobilizar interesses e classes,
recursos e criatividade suficientes para idealizar e concretizar o progresso do
país nas próximas duas décadas. Depois da pandemia, cujos efeitos não são ainda
totalmente previsíveis, mas que serão sempre piores do que se espera, vai ser
necessário um enorme esforço de reorganização e de investimento. Assim como de
protecção social. E também de paz social. Não de “união nacional”, mas de
convergência maioritária coesa e programática. Ora, infelizmente, nada na actualidade
parece apontar nesse sentido.
O que está em causa é a união das esquerdas e a união das
direitas, a formação de dois blocos irredutíveis, adversários e rivais.
Inimigos, mesmo. Tanto à direita como à esquerda, há quem tal não queira. Mas
são minorias quase insignificantes
Os dois mais
importantes partidos da democracia portuguesa, obviamente o PS e o PSD,
preparam-se para um ciclo terrível de divisões internas. Um porque não tem
poder, outro porque não o tem suficientemente. Um porque se quer chegar à
direita, outro porque quer rumar à esquerda. Mas isso não é importante. O que
realmente conta é a percepção generalizada de que nenhum dos dois poderá jamais
voltar a ter uma maioria absoluta. Pode acontecer, mas é improvável. O
essencial é que os seus eleitores e os seus militantes estão convencidos de que
tal não é possível. Assim, as facções internas e os grupos habituais começaram
a preparar uma batalha que se anuncia sangrenta e longa. Não necessariamente ou
não apenas pelo poder dentro do partido. É muito mais do que isso e muito mais
importante: o que está em causa é a união das esquerdas e a união das direitas,
a formação de dois blocos irredutíveis, adversários e rivais. Inimigos, mesmo.
Tanto à direita como à esquerda, há quem tal não queira. Mas são minorias quase
insignificantes.
Perigo de fascismo? Ridículo. Ameaça de comunismo?
Risível. Possibilidade de aventuras revolucionárias populistas de esquerda ou
direita? Certamente. Mas só terão hipótese de concretização se os dois grandes
partidos, PS e PSD, não forem capazes de suster a deriva populista e a
fragmentação
As divisões
dentro dos dois grandes partidos vão ser perigosas. Não parece haver, em
qualquer deles, personalidade, equipa ou doutrina à altura de forjar a unidade
ou de federar tendências. Além disso, os objectivos de luta não são puramente
internos. Dado que são externos e dizem respeito a toda a direita e a toda a
esquerda, a luta será renhida e provavelmente acabará em mais um processo de
fragmentação, como ainda não houve em Portugal, mas cujos riscos são cada vez
maiores.
Perigo de
fascismo? Ridículo. Ameaça de comunismo? Risível. Possibilidade de aventuras
revolucionárias populistas de esquerda ou direita? Certamente. Mas só terão
hipótese de concretização se os dois grandes partidos, PS e PSD, não forem
capazes de suster a deriva populista e a fragmentação. O Chega, o Bloco de
Esquerda e o Partido Comunista nunca governarão Portugal, mas, por causa deles,
os dois partidos correm riscos de mutação, deslize, afundamento e
descaracterização. É muito pouco provável que qualquer destes partidos tenha uma
influência preponderante no governo do país. Mas têm seguramente enorme
influência no pensamento e nas políticas do PS e do PSD, caso estes dois
partidos não sejam capazes de resistir às suas tentações e aos seus próprios
receios e não tenham força suficiente para se afirmar e defender as suas
políticas. O Chega, o Bloco de Esquerda e o Partido Comunista, tão diferentes
nas suas histórias, tão distintos na sua organização e nas suas doutrinas,
poderão ter, no futuro, se os deixarem, uma enorme capacidade de destruição dos
dois grandes partidos da democracia portuguesa.
Infelizmente,
estes dois grandes partidos não dão sinais de terem percebido o que está em
causa, nem de se prepararem para evitar o declínio, a fragmentação e a divisão.
No PS e no PSD, há “anjos” convencidos de que a melhor maneira de evitar o
Chega, o PCP e o Bloco consiste em trazê-los para a democracia, na convicção de
que mudarão. O mais provável, todavia, é que sejam os dois partidos a mudar e a
aproximar-se mais dos projectos radicais.
Nenhum dos
grandes problemas nacionais do presente se esgota ou resolve com uma política
de esquerda ou de direita. O Serviço Nacional de Saúde, o investimento
económico, a criação de emprego e a protecção social não se compadecem com um
governo de esquerda ou um governo de direita. Também a reforma da Justiça e a
da Educação exigem muito mais do que isso, do que uma política sectária de
esquerda ou de direita.
A divisão da
política portuguesa em dois blocos de esquerda e direita é a destruição de
qualquer hipótese sensata de social-democracia e de socialismo democrático ou
de democracia social. E é uma diminuição das hipóteses e da riqueza da
democracia liberal.
Sociólogo
OPINIÃO
Quando as palavras não servem para nada
Foi a reciclagem do CDS em PP e da extrema-esquerda em
Bloco de Esquerda que levaram ao actual uso corrente da dicotomia
“esquerda-direita”.
JOSÉ PACHECO
PEREIRA
24 de Outubro de
2020, 0:00
https://www.publico.pt/2020/10/24/opiniao/opiniao/palavras-nao-servem-nada-1936529
Há muito tempo
que penso que as classificações assentes na dicotomia esquerda-direita não
servem para grande coisa e, bem pelo contrário, têm um efeito contraproducente.
Mas o seu peso na linguagem política é hoje tão forte que muitas vezes concedo
ao seu uso, por economia de explicações, mas sempre contra vontade.
O próprio facto
de o seu uso ter altos e baixos mostra até que ponto não se trata de
classificações unívocas, mas de modas e ciclos semânticos que dependem do
léxico corrente que, por sua vez, remetem para o modo como se desenvolve a
conflitualidade política e o seu contexto. No pós-25 de Abril, mais do que a
dicotomia esquerda-direita usavam-se classificações como “socialista”,
“comunista”, social-democrata”, “fascista”, “democrata-cristão”,
“progressista”, reaccionário”, “revolucionário” (“conservador” e “liberal” não
eram muito comuns) quer como autoclassificações, quer como invectivas a
adversários. Foi a reciclagem do CDS em PP e da extrema-esquerda em Bloco de
Esquerda que levaram ao actual uso corrente da dicotomia esquerda-direita, ou
seja, Paulo Portas e Francisco Louçã. Em ambos os casos, houve um elemento de
ocultação nesse processo, em particular no caso do abandono do maoísmo e do
trotsquismo por parte dos grupos fundadores do Bloco, a favor da mais cómoda e
vaga e politicamente correcta designação de “esquerda”.
Mas hoje o uso de
“esquerda-direita” é um dos aspectos do geral empobrecimento do debate
político, da sua dependência crescente de palavras gastas e de um simplismo
analítico. Esquerda-direita é mais uma nomeação, uma invectiva, um enunciado
simplista do que uma análise e, por isso, é mais fruto da preguiça do que do
rigor. Em tempos de radicalismo e tribalismo, estas palavras condicionam de tal
maneira o debate que ficamos presos a elas, contribuindo assim para erros
políticos.
Veja-se o modo
como se classifica o actual Governo, e por arrastamento o PS. É possível passar
horas a ouvir numa reunião do PSD os intervenientes a classificar o Governo
como sendo de “extrema-esquerda”. Não se trata sequer de dizer que o Governo,
pela sua política de alianças, colabora com a extrema-esquerda, ou concede à
extrema-esquerda, mas que “é” de extrema-esquerda. É uma classificação errada e
todas as políticas que derivam dessa classificação são-no igualmente. Veja-se,
do outro lado, o que o PCP diz do mesmo Governo, classificando-o como sendo de
direita ou concedendo à direita. É igualmente errado, mas num certo sentido é
menos errado.
Veja-se, na
discussão do projecto do Orçamento, o que leva a direita (cá estamos presos nas
palavras) a dizer que é de esquerda o Governo. Há duas razões principais: uma,
que diz que o Orçamento não dá o papel central na recuperação da economia às
empresas; e a outra, porque distribui “benesses” pelos funcionários públicos e
por certos grupos sociais que seriam a “clientela” do PCP e do BE. Deixando de
lado o aspecto interpretativo do Orçamento, nem uma nem outra coisa são
especialmente de esquerda, a não ser quando se ligam uma à outra; quando se diz
que, por exemplo, o aumento do salário mínimo é uma opção em detrimento dos apoios
às empresas, ou quando se diz que há uma contradição entre os apoios ao Estado
(a que agora se chama “socialismo”, pobre palavra…) e às empresas. Ora alguns
dos países cuja intervenção estatal é maciça são também aqueles em que o mesmo
Estado disponibiliza recursos gigantescos às empresas e as duas coisas estão
interligadas, como, por exemplo, a Turquia e os EUA. Não se estranhe incluir os
EUA, cujo Estado gasta biliões para apoiar o sector privado por via dos gastos
militares, ou agora na indústria farmacêutica. E alguém pensa que a “bazuca”
europeia não vai disparar para o privado? E desde quando aumentar o salário
mínimo, ou as prestações sociais, como fizeram Marcelo Caetano, Sá Carneiro,
Soares, Guterres, Cavaco, Sócrates, é especialmente de esquerda? De facto, como
classificação a dicotomia esquerda-direita serve-nos de pouco.
O resultado é que
as classificações ajudam ao radicalismo no debate político e dão asneira. E
dificultam o caso a caso, mais útil numa negociação, manietando as partes ao medo
de estar a comprometer princípios quando estão apenas a comprometer
classificações, de um modo geral erradas
E ainda menos nos
serve quando vamos ao PCP como classificador, embora o PCP tenha mais razão em
dizer que o Governo é de direita do que o PSD, quando o classifica de
extrema-esquerda. (O Bloco de Esquerda diz algo de semelhante mas de forma
menos clara que o PCP.) Na verdade, as chamadas “linhas vermelhas” do Governo
são todas na fronteira da economia capitalista; o resto é apenas uma questão de
repartição de recursos, ou de estatismo, que não é de esquerda nem de direita.
Refiro-me à recusa de incluir legislação sobre despedimentos que corresponda ao
slogan do cartaz do Bloco “Quem tem lucros não pode despedir” e a tudo o que
diz respeito ao Novo Banco, mesmo que de forma ambígua. Aí o Governo pára na
propriedade e nos mecanismo da economia capitalista e ao colocar aqui as
“linhas vermelhas” (que não coloca noutros sítios) mostra aquilo a que o PCP
chama “posição de classe”, que justifica a classificação de direita.
Confuso, não é?
É, confuso e inútil. Teria mais sentido analisar, medida a medida, o grau e
veemência da recusa de negociação, onde há “abertura negocial” ou não, em vez
de uma classificação geral que acaba por dizer mais sobre quem classifica do
que sobre o que é classificado. Por exemplo, quando no PSD se diz que o
Orçamento é de extrema-esquerda, está-se a deslocar quem classifica muito para
a direita, e no caso contrário, no PCP, muito para a esquerda.
O resultado é que
as classificações ajudam ao radicalismo no debate político e dão asneira. E dificultam
o caso a caso, mais útil numa negociação, manietando as partes no medo de estar
a comprometer princípios, quando estão apenas a comprometer classificações, de
um modo geral erradas.
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