EDITORIAL CORONAVÍRUS
Já entrámos no estado de emergência
Em Março, as imagens que nos chegavam da Itália ou da
Espanha tiveram mais poder de persuasão do que os discursos do Governo. A
responsabilidade individual conquista-se mais pelo pavor do que pelo civismo.
MANUEL CARVALHO
31 de Outubro de
2020, 21:53
https://www.publico.pt/2020/10/31/sociedade/editorial/ja-entramos-estado-emergencia-1937492
O Governo
precisava de dar um novo “abanão” ao país para fazer prova de que o brutal aumento
de novas infecções pelo novo coronavírus está a ser devidamente acompanhado. A
solução que encontrou impõe uma receita que combina o apelo cívico ao
confinamento com a obrigação do teletrabalho ou a restrição no acesso a
restaurantes ou lojas comerciais a 70% dos portugueses. Mas nas entrelinhas do
discurso do primeiro-ministro ficou implícita a ideia de que esta solução é
apenas mais um degrau na escalada das restrições. A menos que o improvável, o
achatamento da curva de infecções, aconteça, o estado de emergência promete ser
o próximo passo para a aflição.
Será necessário?
A pergunta merece discussão não tanto pela velha polémica sobre a aplicação de
medidas lesivas aos nossos direitos e garantias – porque, por muito que António
Costa sublinhe que o problema que enfrentamos “não é um problema de polícia”,
basta ver o aparato das operações policiais nos dois últimos dias nas ruas e
estradas do país para percebermos que é. O que vale a pena então discutir é se
as medidas apresentadas vão ser ou não suficientes para que a responsabilidade
individual dispense o papel paternal ou policial do Estado.
Na frente
sanitária podemos ter, ao menos, uma breve esperança. O envolvimento das
autarquias na aplicação das medidas hoje anunciadas pode garantir uma maior
efectividade. O teletrabalho obrigatório reduz a pressão nos locais de trabalho
ou nos transportes públicos.
Mas não serão
essas as principais causas para o reforço da responsabilidade individual que
tanto o Governo como as autoridades sanitárias não se cansam de pedir: é o medo
provocado com os alertas de hospitais no limiar da sua capacidade de internamento
nas enfermarias ou nos cuidados intensivos. Em Março, as imagens que nos
chegavam da Itália ou da Espanha tiveram mais poder de persuasão do que os
discursos do Governo. A responsabilidade individual conquista-se mais pelo
pavor do que pelo civismo.
Mas se o medo é
um instrumento racional de defesa contra o vírus, é também um factor que
paralisa as decisões e ataca a economia. Com as medidas anunciadas pelo Governo
regressamos ao confinamento e, por muito que António Costa o tente temperar com
idas ao restaurante ou ao teatro, há uma noção de estado de emergência a
germinar sem necessidade de um decreto presidencial.
Mesmo com as
medidas menos intrusivas da situação de calamidade, a economia abrandou em
Outubro. Os restaurantes e as ruas começaram a esvaziar-se. A covid-19
regressou em força às conversas e começa a influenciar comportamentos. Não há
volta a dar: aos poucos estamos a regressar ao princípio do pesadelo.
OPINIÃO
O elogio da instabilidade
A Páscoa, o 25 de Abril, o 1.º de Maio, Fátima, o Avante,
fado, a Fórmula 1, o Dia de Finados, o Dia de Todos os Santos e até o surf na
Nazaré: eis um percurso inesquecível, só comparável ao das negociações
orçamentais com todos os partidos à procura do momento de ruptura proveitosa,
com a vontade obsessiva de não chegar a acordo com nenhum!
ANTÓNIO BARRETO
1 de Novembro de
2020, 7:14
https://www.publico.pt/2020/11/01/opiniao/opiniao/elogio-instabilidade-1937410
Se, dentro de um
mês, as últimas exigências do PCP forem satisfeitas (e tudo leva a crer que
sim), ficará aprovado o Orçamento do Estado. Sem maioria, com abstenções
estratégicas e despeitados votos contrários. Sem se deixar tentar
excessivamente pela chantagem dos defuntos parceiros, o Governo cumpriu o seu
dever. Mas é pouco.
É natural que o
Governo seja impotente e incompetente: a crise é tal que dezenas de outros
países se encontram em situação idêntica ou pior. Por isso o futuro é uma
entidade incerta, como alguns gostam, mas misteriosa, como muitos receiam. Com
o que temos e sabemos, o Governo fez o melhor possível. Mas não é suficiente.
A receita foi
simples: fundos europeus, benefícios sociais e habilidades. Serve para um ano.
Até pode servir para uma legislatura. Mas não serve para uma economia, nem uma
sociedade, muito menos um país. O Governo cumpriu os mínimos. Fez o necessário
para sobreviver. Fez o que era preciso para evitar um quase desastre a curto
prazo. Cumpriu. Mas não chega.
O Governo fez um
orçamento com defeitos. Como não havia melhor, fica este. Como não houve mais,
aprovamos este. Não é certo que fosse possível fazer muito mais e muito melhor!
Países com mais recursos têm dificuldades semelhantes. Parece que ninguém, à
esquerda ou à direita, propôs fazer mais e melhor. Se assim é, ficamos com o
que temos. Mas convém recordar que gesso não trata cadeira partida! E penso rápido
não cura infecção!
Sabemos que um
orçamento não é um plano a prazo. Nem um programa de relançamento da economia.
Muito menos um plano de reformas necessárias. Certo. Mas um orçamento pode
apontar caminhos. Pode ser claramente a programação anual de um plano mais
ambicioso. Pode sugerir uma política de investimento e uma profunda reforma da
administração pública e da Justiça. Pode dar indicações de reformas da
Educação, para já não falar do Sistema Nacional de Saúde actualmente sob enorme
pressão. Pode dar sinais das suas prioridades relativas ao investimento,
privado ou público, interno ou externo, ocidental ou asiático. Não foi esse o
caso. Este Orçamento parece ser tão rico e ambicioso como um código da estrada.
É o que há.
Ninguém, no
Parlamento, brilhou por especial competência ou por justa ambição. Todos
cumpriram os seus deveres mais curtos, limitaram-se a seguir as regras de
trânsito. Perante as iniciativas do Governo, os restantes partidos mostraram
que estavam ali para as sobras, na esperança de um desastre futuro. Naquela
escuridão parlamentar, a luz bruxuleante do Governo distinguiu-se. Foi bom para
ele, mas indiferente para os cidadãos, empresários, trabalhadores ou
funcionários.
Gerir a crise
sanitária com um olho na saúde e outro na política dá isto: descrédito e
desconfiança! Nem sequer com um olho na política de saúde ou na política
económica. Apenas na política. Na política pura.
Sabemos que todos
se esforçam o mais possível e que ninguém tem o monopólio da compaixão ou da
solidariedade. É certo e seguro que nos hospitais, nas escolas e nas empresas
se sofre e receia, como raramente na vida, ao mesmo tempo que sabemos que
muitos dão o que têm e o que não têm para cumprir os seus deveres e cuidar dos
outros. E temos consciência de que as autoridades, mesmo dando a impressão de
que dominam os factos e controlam os cenários, estão sobretudo desnorteadas com
a crise e seus desenvolvimentos. O que dá esta sensação temível de que as
autoridades correm atrás dos acontecimentos e se limitam a prever o passado.
Por outro lado, a
obsessão com a imagem e a disposição para vender a alma a benefício de votos
nas sondagens e de “gostos” nas redes fazem com que tantas decisões sejam e
pareçam inconcebíveis. A Páscoa, o 25 de Abril, o 1.º de Maio, Fátima, o
Avante, fado, a Fórmula 1, o Dia de Finados, o Dia de Todos os Santos e até o
surf na Nazaré: eis um percurso inesquecível, só comparável ao das negociações
orçamentais com todos os partidos à procura do momento de ruptura proveitosa,
com a vontade obsessiva de não chegar a acordo com nenhum!
Sem crise,
estaríamos agora a viver momentos difíceis de recuperação, de relançamento e
provavelmente de instabilidade política. Com a crise sanitária, rapidamente
degenerada em crise social e económica, a instabilidade é uma ameaça fatal —
que nos pode retirar meios e com a qual podemos perder tempo precioso. Sem
maioria parlamentar, sem contrato de governo, sem doutrina, sem bloco social de
apoio, sem capacidade de congregar, sem autoridade democrática fundamentada,
sem esforço colectivo e sem programa não é possível. Parece que ninguém
pretende ceder, a fim de obter as melhores condições para o país. O Governo
deseja que o seu poder, mesmo instável, seja o suficiente para destroçar as
oposições. Estas limitam-se a esperar pela desgraça de todos e pelo desastre do
Governo.
Governar à bolina
é sempre governar à deriva. Sobreviver com acordos pontuais. Governar com
habilidade. Com manha e expedientes. Em vez de governar com programa e
doutrina. E com maioria sólida e estável. O PS, que sempre desejou, sem
confessar, ter uma maioria, mas que cultiva o mito dos governos minoritários de
acordos pontuais, tem culpas nesta cultura da instabilidade. Mas os outros
partidos também. Os seus passos são sempre cálculos muito elaborados: que ganho
eu com isso? O que interessa mais é o bom governo ou o desastre dos rivais?
Como liquidar um pequeno partido? Como influenciar um grande partido? Todos os
partidos da oposição partilham o mesmo sonho: o do desastre do Governo, o famigerado
“quanto pior, melhor”!
O que será
preciso para que, em Portugal, as ideias de acordo de legislatura, de contrato
escrito e de pacto entre partidos não sejam excomungadas e banidas dos
costumes? O que é necessário para que um entendimento temporário entre rivais
possa criar uma maioria parlamentar capaz de tratar de situações
excepcionalmente complexas e de crises particularmente graves? É inevitável que
um esforço de convergência suscite imediatamente os epítetos de união nacional,
de autoritarismo ou de bloco central de corrupção? Noutros países, em outros
locais, em todos os tempos, há experiências de coligação, de maioria articulada
e de convergência que brilharam pela eficácia e pelo contributo que deram ao
país. Em Portugal, são condenados. Para os políticos portugueses, a
instabilidade é uma virtude. Pobre país!
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