domingo, 1 de novembro de 2020

Já entrámos no estado de emergência // O elogio da instabilidade

 



EDITORIAL CORONAVÍRUS

Já entrámos no estado de emergência

 

Em Março, as imagens que nos chegavam da Itália ou da Espanha tiveram mais poder de persuasão do que os discursos do Governo. A responsabilidade individual conquista-se mais pelo pavor do que pelo civismo.

 

MANUEL CARVALHO

31 de Outubro de 2020, 21:53

https://www.publico.pt/2020/10/31/sociedade/editorial/ja-entramos-estado-emergencia-1937492

 

O Governo precisava de dar um novo “abanão” ao país para fazer prova de que o brutal aumento de novas infecções pelo novo coronavírus está a ser devidamente acompanhado. A solução que encontrou impõe uma receita que combina o apelo cívico ao confinamento com a obrigação do teletrabalho ou a restrição no acesso a restaurantes ou lojas comerciais a 70% dos portugueses. Mas nas entrelinhas do discurso do primeiro-ministro ficou implícita a ideia de que esta solução é apenas mais um degrau na escalada das restrições. A menos que o improvável, o achatamento da curva de infecções, aconteça, o estado de emergência promete ser o próximo passo para a aflição.

 

Será necessário? A pergunta merece discussão não tanto pela velha polémica sobre a aplicação de medidas lesivas aos nossos direitos e garantias – porque, por muito que António Costa sublinhe que o problema que enfrentamos “não é um problema de polícia”, basta ver o aparato das operações policiais nos dois últimos dias nas ruas e estradas do país para percebermos que é. O que vale a pena então discutir é se as medidas apresentadas vão ser ou não suficientes para que a responsabilidade individual dispense o papel paternal ou policial do Estado.  

 

 

Na frente sanitária podemos ter, ao menos, uma breve esperança. O envolvimento das autarquias na aplicação das medidas hoje anunciadas pode garantir uma maior efectividade. O teletrabalho obrigatório reduz a pressão nos locais de trabalho ou nos transportes públicos.

 

Mas não serão essas as principais causas para o reforço da responsabilidade individual que tanto o Governo como as autoridades sanitárias não se cansam de pedir: é o medo provocado com os alertas de hospitais no limiar da sua capacidade de internamento nas enfermarias ou nos cuidados intensivos. Em Março, as imagens que nos chegavam da Itália ou da Espanha tiveram mais poder de persuasão do que os discursos do Governo. A responsabilidade individual conquista-se mais pelo pavor do que pelo civismo.

 

Mas se o medo é um instrumento racional de defesa contra o vírus, é também um factor que paralisa as decisões e ataca a economia. Com as medidas anunciadas pelo Governo regressamos ao confinamento e, por muito que António Costa o tente temperar com idas ao restaurante ou ao teatro, há uma noção de estado de emergência a germinar sem necessidade de um decreto presidencial.

 

Mesmo com as medidas menos intrusivas da situação de calamidade, a economia abrandou em Outubro. Os restaurantes e as ruas começaram a esvaziar-se. A covid-19 regressou em força às conversas e começa a influenciar comportamentos. Não há volta a dar: aos poucos estamos a regressar ao princípio do pesadelo.

 


OPINIÃO

O elogio da instabilidade

 

A Páscoa, o 25 de Abril, o 1.º de Maio, Fátima, o Avante, fado, a Fórmula 1, o Dia de Finados, o Dia de Todos os Santos e até o surf na Nazaré: eis um percurso inesquecível, só comparável ao das negociações orçamentais com todos os partidos à procura do momento de ruptura proveitosa, com a vontade obsessiva de não chegar a acordo com nenhum!

 

ANTÓNIO BARRETO

1 de Novembro de 2020, 7:14

https://www.publico.pt/2020/11/01/opiniao/opiniao/elogio-instabilidade-1937410

 

Se, dentro de um mês, as últimas exigências do PCP forem satisfeitas (e tudo leva a crer que sim), ficará aprovado o Orçamento do Estado. Sem maioria, com abstenções estratégicas e despeitados votos contrários. Sem se deixar tentar excessivamente pela chantagem dos defuntos parceiros, o Governo cumpriu o seu dever. Mas é pouco.

 

É natural que o Governo seja impotente e incompetente: a crise é tal que dezenas de outros países se encontram em situação idêntica ou pior. Por isso o futuro é uma entidade incerta, como alguns gostam, mas misteriosa, como muitos receiam. Com o que temos e sabemos, o Governo fez o melhor possível. Mas não é suficiente.

 

A receita foi simples: fundos europeus, benefícios sociais e habilidades. Serve para um ano. Até pode servir para uma legislatura. Mas não serve para uma economia, nem uma sociedade, muito menos um país. O Governo cumpriu os mínimos. Fez o necessário para sobreviver. Fez o que era preciso para evitar um quase desastre a curto prazo. Cumpriu. Mas não chega.

 

O Governo fez um orçamento com defeitos. Como não havia melhor, fica este. Como não houve mais, aprovamos este. Não é certo que fosse possível fazer muito mais e muito melhor! Países com mais recursos têm dificuldades semelhantes. Parece que ninguém, à esquerda ou à direita, propôs fazer mais e melhor. Se assim é, ficamos com o que temos. Mas convém recordar que gesso não trata cadeira partida! E penso rápido não cura infecção!

 

Sabemos que um orçamento não é um plano a prazo. Nem um programa de relançamento da economia. Muito menos um plano de reformas necessárias. Certo. Mas um orçamento pode apontar caminhos. Pode ser claramente a programação anual de um plano mais ambicioso. Pode sugerir uma política de investimento e uma profunda reforma da administração pública e da Justiça. Pode dar indicações de reformas da Educação, para já não falar do Sistema Nacional de Saúde actualmente sob enorme pressão. Pode dar sinais das suas prioridades relativas ao investimento, privado ou público, interno ou externo, ocidental ou asiático. Não foi esse o caso. Este Orçamento parece ser tão rico e ambicioso como um código da estrada. É o que há.

 

Ninguém, no Parlamento, brilhou por especial competência ou por justa ambição. Todos cumpriram os seus deveres mais curtos, limitaram-se a seguir as regras de trânsito. Perante as iniciativas do Governo, os restantes partidos mostraram que estavam ali para as sobras, na esperança de um desastre futuro. Naquela escuridão parlamentar, a luz bruxuleante do Governo distinguiu-se. Foi bom para ele, mas indiferente para os cidadãos, empresários, trabalhadores ou funcionários.

 

Gerir a crise sanitária com um olho na saúde e outro na política dá isto: descrédito e desconfiança! Nem sequer com um olho na política de saúde ou na política económica. Apenas na política. Na política pura.

 

 

Sabemos que todos se esforçam o mais possível e que ninguém tem o monopólio da compaixão ou da solidariedade. É certo e seguro que nos hospitais, nas escolas e nas empresas se sofre e receia, como raramente na vida, ao mesmo tempo que sabemos que muitos dão o que têm e o que não têm para cumprir os seus deveres e cuidar dos outros. E temos consciência de que as autoridades, mesmo dando a impressão de que dominam os factos e controlam os cenários, estão sobretudo desnorteadas com a crise e seus desenvolvimentos. O que dá esta sensação temível de que as autoridades correm atrás dos acontecimentos e se limitam a prever o passado.

 

Por outro lado, a obsessão com a imagem e a disposição para vender a alma a benefício de votos nas sondagens e de “gostos” nas redes fazem com que tantas decisões sejam e pareçam inconcebíveis. A Páscoa, o 25 de Abril, o 1.º de Maio, Fátima, o Avante, fado, a Fórmula 1, o Dia de Finados, o Dia de Todos os Santos e até o surf na Nazaré: eis um percurso inesquecível, só comparável ao das negociações orçamentais com todos os partidos à procura do momento de ruptura proveitosa, com a vontade obsessiva de não chegar a acordo com nenhum!

 

Sem crise, estaríamos agora a viver momentos difíceis de recuperação, de relançamento e provavelmente de instabilidade política. Com a crise sanitária, rapidamente degenerada em crise social e económica, a instabilidade é uma ameaça fatal — que nos pode retirar meios e com a qual podemos perder tempo precioso. Sem maioria parlamentar, sem contrato de governo, sem doutrina, sem bloco social de apoio, sem capacidade de congregar, sem autoridade democrática fundamentada, sem esforço colectivo e sem programa não é possível. Parece que ninguém pretende ceder, a fim de obter as melhores condições para o país. O Governo deseja que o seu poder, mesmo instável, seja o suficiente para destroçar as oposições. Estas limitam-se a esperar pela desgraça de todos e pelo desastre do Governo.

 

Governar à bolina é sempre governar à deriva. Sobreviver com acordos pontuais. Governar com habilidade. Com manha e expedientes. Em vez de governar com programa e doutrina. E com maioria sólida e estável. O PS, que sempre desejou, sem confessar, ter uma maioria, mas que cultiva o mito dos governos minoritários de acordos pontuais, tem culpas nesta cultura da instabilidade. Mas os outros partidos também. Os seus passos são sempre cálculos muito elaborados: que ganho eu com isso? O que interessa mais é o bom governo ou o desastre dos rivais? Como liquidar um pequeno partido? Como influenciar um grande partido? Todos os partidos da oposição partilham o mesmo sonho: o do desastre do Governo, o famigerado “quanto pior, melhor”!

 

O que será preciso para que, em Portugal, as ideias de acordo de legislatura, de contrato escrito e de pacto entre partidos não sejam excomungadas e banidas dos costumes? O que é necessário para que um entendimento temporário entre rivais possa criar uma maioria parlamentar capaz de tratar de situações excepcionalmente complexas e de crises particularmente graves? É inevitável que um esforço de convergência suscite imediatamente os epítetos de união nacional, de autoritarismo ou de bloco central de corrupção? Noutros países, em outros locais, em todos os tempos, há experiências de coligação, de maioria articulada e de convergência que brilharam pela eficácia e pelo contributo que deram ao país. Em Portugal, são condenados. Para os políticos portugueses, a instabilidade é uma virtude. Pobre país!

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