Sócrates nunca existiu e Costa é
um génio
Rui Ramos
2-12-2014 /
OBSERVADOR
A semana passada vimos toda a
oligarquia, da esquerda à direita, colaborar para conter o escândalo da prisão
de um ex-primeiro ministro. Foi a mais brilhante operação política em 40 anos
de democracia
Logo que José
Sócrates foi preso, toda a oligarquia política ficou preocupada com António
Costa. As formas de vida que habitam as profundidades televisivas
desmultiplicaram-se imediatamente em conselhos: acima de tudo, nada de Casas
Pias. O guião ficou escrito no primeiro minuto.
Costa cumpriu a
sua parte por SMS logo na manhã seguinte. Faltava agora compor o ambiente. Em
primeiro lugar, era preciso impedir que o debate público resvalasse para
regiões inconvenientes. A rolha usada foi a venerável figura jurídica da
“presunção de inocência”. É uma garantia processual, que obriga os tribunais a
considerar o acusado como inocente até a sentença transitar em julgado. Durante
esta semana, passou a ser outra coisa: a obrigação de toda a gente proclamar
solenemente a inocência de quem ainda não tenha sido condenado. A prisão de um
ex-primeiro ministro, suspeito de crimes cometidos durante o seu governo, foi
assim reduzida a um caso jurídico, que só os técnicos estavam autorizados a
comentar.
Conseguido isto,
faltava tratar do detido. Não era um manobra fácil. Convinha que não se
sentisse abandonado (sabe-se lá como poderia reagir), mas também não convinha
incorrer em solidariedades comprometedoras. O Dr. Soares foi destacado para a
missão, com excelente efeito. A veemência da sua visita, graças à licença de
excentricidade de que hoje beneficia, não responsabilizou ninguém, mas terá
bastado para consolar o novo inquilino da prisão de Évora, ao ponto de ser ele
próprio, nesse mesmo dia, em comunicado nocturno, a libertar os seus antigos
correligionários de qualquer obrigação. Na FIL, este sábado, o galo pôde cantar
três, seis, nove vezes.
Não devemos
regatear aplausos: esta foi talvez a mais brilhante operação política dos
quarenta anos de democracia. Costa apareceu no congresso à vontade, ao ataque.
Citou Renzi, comentou o Papa, açoitou o governo, remoeu as ideias mais velhas
do regime (qualificação, modernização) como se fossem frescas revelações
divinas — e ignorou Sócrates. No fim, os aplausos continuaram nas páginas dos
jornais, nos ecrãs de televisão. O país político estava encantado. Depois de
superado o choque com Seguro, Costa ultrapassava a prisão de Sócrates, e
proporcionava à nação o espectáculo reconfortante da maior demonstração de
disciplina partidária de que há memória. Houve logo quem, na vaga de
entusiasmo, lembrasse que a Casa Pia antecedera a maioria absoluta.
O estimado
professor Marcelo tentou há dias intrigar o povo com a hipótese de que Costa
fosse um génio. Mas a genialidade está ao alcance de qualquer político quando
todo o regime se reúne para o amparar, a começar pela direita. Desde o PREC que
a direita vê no PS a sua muralha da China. Os mais velhos ainda temem o PCP. Os
mais novos receiam um “Podemos”. A direita dos interesses, que até gostou de
Sócrates, passou a crise a lamentar que o PS não estivesse no governo. Daí o
chuveiro de institucionalismo desse lado. Aprendemos que as pessoas não são as
instituições, que as instituições estão a “funcionar”, que a “normalidade”
nunca foi tão normal. Sim, o Dr. Pangloss fez escola em
Lisboa.
De facto, toda a
oligarquia estava interessada em conter o escândalo. Talvez o ex-primeiro
ministro agora preso seja, como alguns desesperadamente desejam, caso único,
sem igual. Mas este regime deixou-o ascender e, durante seis anos, desempenhar
o cargo que lhe terá permitido, apesar das dúvidas de sucessivas investigações
e processos, praticar os delitos de que é suspeito. O que é que isso diz do
regime? Toda a gente nos ensina agora que as instituições “funcionam”. Mas
nunca funcionaram enquanto o ex-primeiro ministro mandou e, alegadamente,
executava crime atrás de crime. O seu governo acabou, não por causa dos
escândalos e das suspeitas, mas só porque a falta de dinheiro o precipitou na
sequência fatal dos PEC. Que se deve pensar de instituições que precisam de
grandes crises financeiras para “funcionarem”?
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