A presunção de inocência – parte
II
JOÃO MIGUEL
TAVARES 04/12/2014 - PÚBLICO
A consequência desta transferência do princípio jurídico da presunção de
inocência para o espaço público não é neutra – ela transforma-se com a maior
das facilidades num refúgio de gente duvidosa.
Antes que os
leitores mais impacientes comecem a gritar “oh, não, lá vem ele outra vez!”,
deixem-me prometer solenemente que o objectivo deste texto não é voltar a
zabumbar em José Sócrates, mas sim contribuir para o debate em torno da questão
da presunção da inocência e do alargamento de um conceito essencialmente
jurídico ao espaço público.
O meu texto da
passada semana deu origem a um cacharolete de reacções, algumas das quais
civilizadas, como foi o caso de Manuel Carvalho e João Pedro Marques, aqui no
PÚBLICO, ou de Oscar Mascarenhas, no Diário de Notícias. Civilizadas, mas com
frequência absurdas, como quando João Pedro Marques classifica o direito que eu
invoco a presumir a culpabilidade de José Sócrates como um “tipo de juízo” que
“equivale a um linchamento”, ou quando Manuel Carvalho anuncia que a minha
posição “faz regressar a barbárie”.
Dada a
impossibilidade de responder detalhadamente a cada um dos meus críticos,
permitam concentrar-me na argumentação de Oscar Mascarenhas, sobretudo quando
no final do seu longo texto intitulado “Eis que chega a mais patusca teoria da
irresponsabilidade dos colunistas” ele resume a minha posição da seguinte
forma: “João Miguel Tavares limitou-se a afirmar o princípio de que ‘tem todo o
direito a presumir que fulano é culpado’ – mas não passou à prática de afirmar
de peito aberto que é mesmo culpado. Ficou-se pela água chilra, quando prometia
aguarrás.” O curioso nesta observação de Oscar Mascarenhas é que ela é absolutamente
correcta – deixem-me, aliás, agradecer-lhe em público a capacidade que revelou
em resumir de forma tão hábil o meu pensamento. O passo que lhe falta dar para
chegar à perfeição sintética é este: aceitar que eu não me outorgo o direito de
dizer que fulano é culpado quando não tenho provas disso, mas que me outorgo
todo o direito de presumir que fulano é culpado, ou de achar que ele é culpado,
se considerar ter suficientes indícios para tal. Mais: considero até, no caso
de Sócrates, que para ver esses indícios não é necessária a perspicácia de
Sherlock Holmes. Bastará não ter a vesguice dos dois irmãos Dupondt.
***
Eu não quero ser
aguarrás, caro Oscar – pretendo apenas contribuir modestamente para um debate
aberto no espaço público, sem as hipocrisias do costume, nem as premissas que
vestem o casaco de um suposto civismo (“então a presunção de inocência não é um
princípio tão bonito?”) para, na verdade, esconderem a trágica amálgama entre
os campos político e judicial. Amálgama essa, já agora, que José Sócrates
sempre utilizou habilmente, e que lhe permitiu a sua reeleição em 2009 apesar
da longuíssima cauda de casos mal explicados – se nenhum tribunal o tinha
acusado de nada, então nada havia a explicar, não é?
A consequência
desta transferência do princípio jurídico da presunção de inocência para o
espaço público não é neutra – ela transforma-se com a maior das facilidades num
refúgio de gente duvidosa, que se aproveita alegremente da confusão entre o
escrutínio da esfera pública e as regras da investigação judicial. É contra
este equívoco perigosíssimo que eu me insurjo, e me insurgirei sempre. Isto
nada tem que ver com barbárie justicialista. Bem pelo contrário: é uma forma de
lutar contra uma outra barbárie, bem mais insidiosa, porque bastante mais
escondida – a barbárie de uma sociedade domesticada e de cabecinha baixa, em
que tanta gente parece conformada que lhe assaltem a inteligência e ainda
exijam um pedido de desculpas no final.
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