Mudar o regime? Tenham juízo
José Manuel
Fernandes
Rui Rio advoga uma
"ruptura" com o regime. É uma ideia perigosa. E que pode ser inútil. Em
contrapartida, vale a pena pensar em mudanças graduais, e percebermos os vícios
da nossa cultura política.
De repente todos
falam de crise do regime. Ou mesmo de fim do regime. Na entrevista que ocupa
boa parte do livro que lhe é dedicado, Rui Rio quase coloca uma data para o
evento: “O anterior regime caiu em 1974, com 41 anos (a partir da Constituição
de 1933). Nós já comemorámos há algum tempo os quarenta anos deste…”
Tenho dificuldade
em compreender a ligeireza com que se aborda assim o nosso regime – que é,
afinal, a nossa democracia. Será que apenas se pretende uma mudança das regras,
uma eventual passagem desta nossa III República para uma eventual IV República?
Ou será que se acredita mesmo que é a democracia que está em risco? São coisas
substancialmente diferentes – e não se percebe a vantagem de nenhuma delas.
Primeiro: será
que a democracia corre realmente perigo? Ou que o estado de direito está em
causa? Bem sei que, na emoção da detenção de José Sócrates, houve quem se
precipitasse a falar de um “fim de regime” se a Justiça tivesse falhado, mas
foram excitações desejavelmente momentâneas que, creio, em breve serão
esquecidas.
Mais sério é o
receio de que a situação de crise que vivemos – e vamos continuar a viver –
possa por em risco a democracia. É uma preocupação que faz sentido, pois
recordamo-nos como, no século XX, graves crises económicas antecederam derivas
autoritárias em muitos países europeus. Acontece que três anos depois da
chegada da troika, e ultrapassados os piores períodos, não creio que devamos
temer a breve chegada de um proto-ditador. Os sinais, felizmente, não são
esses.
Bem sei que há
quem defenda que já não vivemos sequer em democracia. Bem sei que há quem
defenda que tudo o que sai do Governo é “antidemocrático”, tal como sei que há
quem pense que democracia sem “democracia social” (seja o que for que isso
signifique) não é democracia. Sei, mas não concordo: democracia é sobre regras,
não sobre políticas. Em democracia os eleitores podem escolher políticas mais
liberais ou mais socialistas, sem que dessas opções resulte qualquer dano para
o regime desde que se cumpra a sua regra essencial: quando o povo desejar, pode
substituir os seus governantes e escolher outras políticas de forma pacífica.
A discussão sobre
se necessitamos de outro “regime”, ou de outra “república”, no sentido de mudar
algumas das nossas regras de governo, é mais interessante e mais importante. Primeiro,
porque é indiscutível um certo desencanto, quando não descontentamento, dos
eleitores com o nosso sistema de partidos e a forma como funciona a democracia.
Depois, porque o nosso modelo institucional, com os seus equilíbrios
consagrados na Constituição e nas leis, nem sempre favorece os consensos
necessários ao prosseguimento de políticas reformistas. É nesse sentido que
muitas vezes se fala de “bloqueio” ou de “pântano”.
Regresso por isso
à entrevista de Rui Rio, pois nela defende-se a necessidade de uma ruptura, mas
não uma ruptura qualquer, pois Rio diz não acreditar que essa ruptura possa ser
feita por pequenos passos”. Para ele “a ruptura terá de ser constituída por
muitas medidas, umas pequenas outras maiores, mas que, no seu conjunto,
transformem por completo, num curto espaço de tempo, a nossa realidade
política”.
Não é claro, nem
resulta claro da entrevista, que modelo alternativo de regime defende o antigo
presidente da Câmara do Porto, mas o método é quase revolucionário. Sendo que
também não se percebe muito bem os objectivos de tão radical ruptura. Há uma
proposta reformista para o país? Qual? Há bloqueios insuportáveis? Quais? Há
aliados? Só nos diz ser necessária a convergência entre o Presidente da
República e o líder de um dos grandes partidos, o que é pouco.
Na verdade não é
difícil identificar medidas capazes de melhorarem o nosso regime. No sistema
eleitoral. No equilíbrio entre o poder legislativo e executivo e o poder
judicial, a começar no Tribunal Constitucional. No financiamento dos partidos.
Nas regras de pagamento aos altos quadros da administração e aos titulares de
quadros políticos. Na descentralização e nas competências relativas do poder
central e do poder local. A lista é longa, mas a prudência aconselharia a
mudanças graduais, capazes de permitir que se fossem percebendo as
consequências e avaliando o melhor caminho a seguir. Em democracia o
gradualismo, a possibilidade errar e corrigir o erro, não é defeito, é virtude.
Se pensarmos com
frieza, e sem pulsões revolucionárias, é difícil perceber, por exemplo, se
ficaríamos melhor com um regime mais presidencialista ou trocando o sistema
eleitoral proporcional por um maioritário. Onde é que essas mudanças nos
ajudariam a melhorar a qualidade dos quadros políticos? Onde é que elas nos
ajudariam a tornar o país mais governável, no sentido de o fazer mais propenso
a aceitar reformas? Onde é que clarificariam tanto as condições do debate
político como a possibilidade de construir políticas assentes em amplos
consensos?
É que, apesar de
tudo, os sinais de crise e ingovernabilidade até não são tão graves em Portugal
como por vezes se diz, sobretudo quando nos comparamos com o que se está a
passar noutros países europeus, onde o sistema de partidos está à beira da
implosão, onde surgiram populismos e extremismos de todas as cores, onde há
riscos de independentismos e onde os costumes são frequentemente violentos.
Em contrapartida,
quando tentamos perceber porque é tão difícil fazer reformas em Portugal somos
capazes de encontrar razões bem diferentes daquelas que colocamos sob do chapéu
da “mudança de regime”. Um bom exercício é ler o livro que ex-ministro Álvaro
Santos Pereira acaba de publicar, “Reformar sem medo”. Não para procurar os
detalhes da intriga (que também são importantes), não para concordar com todas
as reformas que propôs ou promoveu, mas para procurar perceber como é tão
grande, tão enorme, a dissonância entre o que preenche os espaços de debate
público e o que muitas vezes está em causa na acção governativa. Para perceber
como a ideia de que tudo tem de ser público e “transparente” acaba por criar
uma espécie de pano de cena que separa o que muitas vezes interessa do que são
apenas prestações teatrais para consumo dos media, algo que é verdade no
Parlamento ou na Concertação Social.
Do testemunho de
Álvaro Santos Pereira resultam duas questões que nos deviam preocupar mais do
que imaginar “rupturas”. A primeira, e talvez a mais importante, tem a ver com
a dificuldade em construir não apenas consensos, como em governar em coligação.
Se o actual governo chegar ao termo do seu mandato, será o primeiro governo de
coligação que vai até ao fim em 40 anos de democracia (e sabe-se como isso
esteve para não acontecer), e esta simples estatística mostra que temos um
problema. Por outro lado, para além de problemas políticos conjunturais, era
importante tentar perceber porque razão os nossos partidos de governo tendem a
ser radicais na oposição e, depois, resultarem demasiado iguais no poder (algo
que foi especialmente evidente nestes anos em que o PS que assinou o memorando
de entendimento se transfigurou em anti-memorando). Isso é corrosivo para a
relação entre eleitos e eleitores.
O outro ponto
importante é o da permeabilidade das nossas instituições ao poder dos lóbis. Lóbis
que tanto podem ser interesses rentistas de grandes empresas, como poderes
sindicais fáticos. A transparência que há a mais na acção política do dia-a-dia
transforma-se aqui em opacidade.
Creio que será
muito mais útil debater este tipo de problemas, e encontrar as boas soluções,
do que falarmos, etérea e perigosamente, de grandes rupturas de regime. Até
porque muitos dos nossos problemas são de cultura política e mediática, pelo
que não desapareceriam de repente apenas por via de uma mudança do número de
círculos eleitorais ou de uma nova lei de segredo de justiça. Não atiremos areia para os nossos próprios olhos.
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